Processo n.º 44/2017. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: A.
Recorrido: Chefe do Executivo.
Assunto: Interpretação do acto administrativo. Poderes dos tribunais na interpretação do acto administrativo. Acção para determinação da prática de acto legalmente devido.
Data da Sessão: 29 de Novembro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – A interpretação do acto administrativo é feita pelo decisor do processo: no procedimento administrativo, é a Administração que interpreta os seus actos. No processo judicial é o juiz que interpreta o acto administrativo.
II - Relativamente à interpretação do acto administrativo, pertence à esfera dos factos, a existência do acto em si e a intenção do autor, pertencendo à esfera do direito as questões de qualificação e de eficácia jurídicas do que se prove ter sido decidido, bem como decidir se os tribunais a quem cabe apurar os factos aplicaram devidamente os critérios legais.
III - O fim da interpretação do acto administrativo é o apuramento do sentido que o seu autor lhe quis dar, mas o resultado da interpretação não pode ir além daquilo que uma pessoa média, colocada na posição concreta do destinatário do acto, poderia compreender.
IV - A interpretação do acto administrativo não se esgota no seu teor literal, sendo elementos igualmente relevantes para a fixação do seu sentido e alcance, as circunstâncias que rodearam a sua prolação, nomeadamente os seus antecedentes procedimentais, o tipo de acto, bem como os elementos posteriores que revelem o sentido que a própria Administração lhe atribuiu.
V - Na acção para determinação da prática de acto legalmente devido não é possível conhecer da impugnação de actos administrativos expressos de indeferimento.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A, instaurou acção para determinação da prática de acto legalmente devido contra o Chefe do Executivo, para que este aprecie pretensão que a autora lhe dirigiu acerca da troca de terrenos da autora, sitos na Zona do Plano da Taipa Norte, por outros, do Estado.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI) julgou improcedente a acção.
Inconformada, interpõe A, recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando a seguinte questão:
- Nulidade do acórdão recorrido por omissão do dever de saneamento;
- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à questão da nulidade do acto;
- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à verificação dos pressupostos da acção;
- Erro do acórdão recorrido na interpretação do acto administrativo.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
II – Os factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
1 - A A. é uma sociedade comercial que tem por objecto o investimento imobiliário, designadamente a aquisição, construção e alienação de prédios, conforme certidão do registo comercial que se junta como documento n.º 1, e que à semelhança dos demais se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos.
2 - Ainda em 1998, a A. e o Governo de Macau iniciaram negociações para a troca de terrenos da A., em regime de propriedade perfeita, por terrenos do Governo de Macau, uns em regime de propriedade perfeita e outros em regime de concessão por arrendamento;
3 - No decurso de negociações, a DSSOPT enviou à A. por ofício n.º 306/6306.01/DSODEP/99, de 19/07/99. a minuta de contrato de troca de três terrenos particulares com a área global de 15.942m2, em regime de propriedade perfeita, sitos na Povoação de Cheok Ka, na ilha da Taipa (cedidos pelo concessionário), por cinco lotes de terreno do Plano da Taipa Norte, com a área global de 9.755m2, em regime de propriedade perfeita (cedidos ao concessionário), e ainda da concessão à A., em regime de arrendamento, dos lotes TN9b, BT29bl e BT29b2 do Plano da Taipa Norte e da Baixa da Taipa, com a área global de 3.132m2, sitos junto à Avenida Dr. Sun Yat Sen, na Ilha da Taipa.
4 - Em 02/05/2001 e 03/10/2003 a A. apresentou nova proposta a solicitar a viabilidade do ajustamento parcial da proposta anterior e o ajustamento da minuta de contrato de acordo com os critérios aprovados pelo despacho do SATOP de 31 de Agosto de 1998, nos seguintes termos.
• A cedência pela A. de dois terrenos, com a área global de 12.755m2, em regime de propriedade perfeita, sitos na Povoação de Cheok Ka, na ilha da Taipa, descritos na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXXX e sob o n.º XXXXX;
• A cedência à A. de cinco lotes do terreno do Plano da Taipa Norte, com a área global de 6.895m2, em regime de propriedade perfeita, designados por lotes TN7, TN10, TN13b, TN13c e TN13d;
• A concessão à A., em regime de arrendamento, de três lotes da terreno do Plano da Taipa Norte e da Baixa da Taipa, com a área global de 3.132m2, designados por lotes TN9b, BT29b 1 eBT29b2.
5 - Em 01/03/2004 e 12/05/2004, a A. apresentou os estudos prévios de aproveitamento dos lotes TN9b, BT29bl e BT29b2 para aprovação,
6 - Em 11/10/2004, a A. apresentou requerimento ao Gabinete do SOPT a solicitar a autorização da troca da parcela “B11”, com 2.079m2, da Taipa Norte, pelos lotes BT29b1 e BT29b2, com 2.232m2, da Baixa Taipa;
7 - Em 29/11/2005, foi elaborada a Informação n.º 57/DSODEP/2005, na qual se propôs o indeferimento do pedido da A. de 11/10/2004;
8 - Em 29/12/2005, foi emitido despacho do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas, exarado na Informação n.º 57/DSODEP/2005, no qual foi solicitada a continuação do processo de troca de terrenos com a A. e a aprovação das condições contratuais da minuta do contrato de troca;
9 - Por Ofício n.º 17/6306.02/DSODEP/2006, de 05/01/2006, foi enviada à A. a nova minuta de contrato de troca de terrenos, na qual se previa a troca de dois terrenos particulares com a área global de 12.755m2, em regime de propriedade perfeita, sitos na Povoação de Cheok Ka, na ilha da Taipa (cedidos pela A.), por cinco lotes de terreno do Plano da Taipa Norte, com a área global de 6.895m2, em regime de propriedade perfeita (cedidos à A.), e ainda da concessão à A., em regime de arrendamento, dos lotes TN9b, BT29b1 e BT29b2 do Plano da Taipa Norte e da Baixa da Taipa, sitos junto à Avenida Dr. Sun Yat Sen, na Ilha da Taipa;
10 - Por requerimento de 17/08/2006, a A. apresentou uma proposta de loteamento e solicitou a respectiva autorização e a revisão da minuta do contrato de troca tendo em conta todos os encargos financeiros, a proposta de melhoria do ordenamento urbano e a importância que o empreendimento representa no apoio aos empresários locais;
11 - 21 de Agosto de 2006, foi solicitada por aqueles serviços, ao Departamento de Planeamento Urbanístico (DPUDEP), DINDEP e ao ex-DTRDEP, a emissão de pareceres sobre o requerimento da A. de 15/08/2006, com um estudo de loteamento, conforme ponto 14 da Informação n.º 025/DSODEP/2015, de 09/02/2015 (p.6);
12 - Por requerimento dirigido em 27/07/2012 ao Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas com entrada n.º 92047/2012, a A. solicitou o prosseguimento dó processo de troca de terrenos situados na Taipa Norte, de acordo com a proposta de loteamento apresentado em 17/08/2006, e a respectiva revisão da minuta do contrato de troca de terrenos;
13 - Em 20/08/2012, a DSSOPT solicitou ao Departamento de Planeamento Urbanístico (DPUDEP) a emissão de parecer sobre o planeamento de aproveitamento daqueles terrenos.
14 - Foi elaborada a Proposta n.º 025/DSODEP/2015, de 09/02/2015 pela técnica superior da Direcção de Serviços de Solos. Obras Públicas e Transportes, de cujo teor se destacam os parágrafos que seguem.
«(...) 19. Desde que a revisão do planeamento urbanístico da Taipa Norte tem vindo a ser estudada pelo DPUDEP, a apreciação da proposta sobre a troca de terrenos sitos na Taipa Norte, apresentada em 2006 pela Sociedade “A” ficou suspensa.
20. Conforme a informação fornecida pelo DPUDEP, os lotes BT29b1 e BT29b2 serão aproveitados com a construção de habitação pública, e não se envolvem na troca de terrenos sitos na Taipa Norte, uma vez que cada lote sito na Taipa Norte será procedido à regularização da situação de terrenos no âmbito do novo plano da Taipa Norte.
21. Conforme as informações de registo da CRP, os dois terrenos particulares encontram-se descritos na CRP sob o n.ºs XXXXX e XXXXX e inscritos a favor da A sob os n.ºs XXXX e XXXXXX. (Anexo 17)
22. De acordo com Acórdão do Tribunal de Última Instância da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) em 2006, a RAEM continua a reconhecer os direitos de propriedade privada de terrenos anteriormente existente, no entanto, não é possível constituir nova propriedade privada de terrenos depois da criação da Região, sob pena de violar a disposição do Artigo 7.º da Lei Básica. (Anexo 18)
23. Ao mesmo tempo, nos termos do n.º 1 do Artigo 84.º da Lei n.º 10/2013 (Lei de Terras), os direitos sobre os terrenos disponíveis objecto de troca só podem ser concedidos em regime de arrendamento ou ocupação por licença, consoante o fim a que se destinem, por isso, não é possível para continuar a seguir a minuta de contrato anterior.
24. Nos termos da alínea b) do n.º 2 do Artigo 103.º do Código do Procedimento Administrativo, o órgão competente para a decisão pode declarar o procedimento extinto quando a finalidade a que este se destinava ou o objecto da decisão se revelarem impossíveis ou inúteis.
25. Tendo em conta os pontos 19 a 24 desta informação, submete-se a presente proposta à consideração superior a fim de:
25.1. arquivar o pedido de troca de terrenos sitos na zona do plano da Taipa Norte, efectuado pela A;
25.2. comunicar à “A” sobre os pontos #22 e #23 e que deve requerer a nova planta de condições urbanísticas com vista ao aproveitamento dos terrenos particulares da Sociedade, situados na zona do Plano da Taipa Norte, tendo em conta que já foi aprovada a revisão do planeamento urbanístico da Taipa Norte”.
15 - O Secretário para os Transportes e Obras Públicas, em 02/04/2015, proferiu o seguinte despacho:
“Concordo com o proposto em 25 desta Informação” (fls. 123).
16 - Foi enviada à autora o Ofício n.º 299/6306.01/DSODEP/2015 da DSSOPT, de 23/04/2015 (fls. 136 dos autos e fls. 21 a 23).
III – O Direito
1. Questões a apreciar
Há que apreciar as questões suscitadas pela recorrente, atrás mencionadas,
2. Interpretação do acto administrativo. Pressupostos de utilização da acção para determinação da prática de acto legalmente devido
Comecemos por apreciar a questão do alegado erro do acórdão recorrido na interpretação do acto administrativo.
A tese da autora de que o Tribunal teria de aceitar a interpretação do acto administrativo, alegadamente acordada pelas partes nos articulados da acção, é errónea.
É que a interpretação não é uma questão de facto, nos termos e para os efeitos do disposto do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Civil.
O facto é o texto do acto administrativo. A sua interpretação é tarefa autónoma do intérprete, de acordo com regras hermenêuticas próprias.
Com efeitos decisórios, a interpretação do acto administrativo é feita sempre pelo decisor do processo: no procedimento administrativo, é a Administração que interpreta os seus actos. No processo judicial é o juiz que interpreta o acto administrativo1. Sem prejuízo de as partes também serem livres de interpretar o acto administrativo, mas sem força decisória, como é óbvio.
Quanto ao poder de cognição dos tribunais, para efeitos do disposto nos artigos 47.º da Lei de Bases da Organização Judiciária e 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, ou seja, saber se a interpretação do acto administrativo é uma questão de facto ou de direito, já o problema é outro. Deve entender-se que surpreender a intenção das partes é uma questão de facto2, para a qual o TUI não tem poder de cognição. Saber se a interpretação do TSI, de um acto administrativo, seguiu ou violou as regras do cânone, já releva de uma questão jurídica.
A distinção faz-se em modos que têm alguma semelhança com o poder de cognição do TUI para interpretar a vontade contratual das partes. No nosso acórdão de 14 de Junho de 2013, no Processo 7/2013, num recurso jurisdicional cível, referimos que o apuramento da vontade real das partes constitui questão de facto, para o qual o TUI não tem poder de cognição. Pertence à esfera dos factos, a existência da declaração em si, pertencendo à esfera do direito as questões de qualificação e de eficácia jurídicas do que se prove ter sido declarado. É questão de direito averiguar se os tribunais de 1.ª e 2.ª instâncias fizeram correcta aplicação dos critérios interpretativos do negócio jurídico fixados na lei.
Relativamente à interpretação do acto administrativo podemos dizer que pertence à esfera dos factos, a existência do acto em si e a intenção do autor, pertencendo à esfera do direito as questões de qualificação e de eficácia jurídicas do que se prove ter sido decidido, bem como decidir se os tribunais, a quem cabe apurar os factos, aplicaram devidamente os critérios legais.
Por outro lado, “o fim da interpretação do acto administrativo é o apuramento do sentido que o seu autor lhe quis dar”3, mas “o resultado da interpretação não pode ir além daquilo que uma pessoa média, colocada na posição concreta do destinatário do acto poderia compreender4”.
Como decidiu o Supremo Tribunal Administrativo português, no acórdão de 3 de Março de 1999, Proc. 041889, “a interpretação do acto administrativo não se esgota no seu teor literal, sendo elementos igualmente relevantes para a fixação do seu sentido e alcance, as circunstâncias que rodearam a sua prolação, nomeadamente os seus antecedentes procedimentais, o tipo de acto, bem como os elementos posteriores que revelem o sentido que a própria Administração lhe atribuiu, na medida em que se deve presumir que esta agiu coerentemente e de boa fé”5.
Sobre esta matéria, entendeu o acórdão recorrido:
« (…) Antes de mais, importa salientar que, ao aprovar o proposto em 25 da informação a que alude, o acto está a apropriar, fazendo-o seu, o conteúdo integral desse ponto 25, ou seja, o ponto 25 propriamente dito e os demais passos da informação nos quais o referido ponto 25 se louva e para os quais remete. Pois bem, esse ponto 25 convoca, como fundamentação das propostas que faz, quanto consta dos pontos 19 a 24. E destes crê-se resultar claro que a troca dos terrenos em causa não pode ser feita, não sendo, por isso, viável dar seguimento à minuta contratual anterior. A troca não pode ser feita porque os lotes BT29b1 e BT29b2 estão destinados a construção de habitação pública (ponto 20), não é possível constituir nova propriedade privada de terrenos após a criação da Região, sob pena de violação do artigo 7.º da Lei Básica (ponto 22), e os direitos sobre os terrenos disponíveis objecto de troca só podem ser concedidos em regime de arrendamento ou ocupação por licença, nos termos do artigo 84.º, n.º 1, da Lei de Terras. Em face destes motivos, que - bem ou mal, não está aqui em discussão - apontam inequivocamente para a inviabilidade legal de operar a pretendida troca, sustenta-se que não é possível dar andamento à minuta contratual e propõe-se o arquivamento do pedido de troca de terrenos.
Tendo sido isto o que foi aprovado ou homologado pelo despacho de 2 de Abril de 2015, temos para nós que o respectivo acto envolve seguramente o indeferimento da requerida troca de terrenos. Mesmo que não se fale concretamente em indeferimento, é essa a decisão que manifestamente se evidencia do acto, a partir do arrazoado que adoptou como seu.
E sendo assim, como cremos, falece o pressuposto da recusa de apreciação da pretensão em que se ancora a petição inicial, não sendo, em tais circunstâncias, admissível o recurso à acção para determinação da prática de acto administrativo legalmente devido.
Resta acrescentar que, na presente acção, dada a sua finalidade e os seus pressupostos (artigos 103.º e 104.º do Código de Processo Administrativo Contencioso), está vedada a declaração de nulidade do acto, tal como vem peticionado subsidiariamente.
Ante o exposto, vai o nosso parecer no sentido da improcedência da acção.”
A posição do Ministério Público é também aquela que nos parece a mais correcta, pelo que a sufragamos e fazemos nossa, com a devida vénia.
Com efeito, se o fundamento da acção se baseava, expressamente, no disposto no art. 103º, nº1, al. c), do CPAC, então isso se deve à circunstância de alegadamente ter sido praticado “um acto administrativo de recusa de apreciação de pretensão”.
Isto é, para a autora aquele acto do Secretário do Governo limita-se a mandar arquivar o pedido de troca de terrenos, sem apreciar o mérito e a legalidade da sua pretensão.
É certo que a referida alínea tem por base a recusa de decisão (é diferente a recusa da prática de acto, a que alude a línea b), do nº1). Recusa que significará uma posição expressa da entidade competente em se negar a conhecer o pedido, apresentando uma justificação para o efeito.
Em tais situações, portanto, a Administração opta por se negar a decidir o caso dizendo porquê. Logo, não existe uma pronúncia sobre o mérito da pretensão, mas existe uma pronúncia para a recusa em tomar a decisão (parece ser este o sentido também de Paula Barbosa, A acção de condenação no acto administrativo legalmente devido, a.a.f.d.l., 2007, pág. 60-61).
E a justificação para a recusa pode ter múltiplas causas. Umas poderão ser de carácter puramente procedimental/formal que possam impedir – ou que poderiam ter impedido no momento próprio – o conhecimento do pedido, tal como sucede, por exemplo, com a incompetência ou ilegitimidade. Outras, poderão assentar nalgum fundamento de discricionariedade quanto à oportunidade de decidir, quanto à determinação dos pressupostos do exercício da competência ou até quanto à própria escolha discricionária ou à liberdade de apreciação (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário…cit., pág. 448; Tb. Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo…cit., pág. 215-216).
Ora, nada disso aqui está presente. Com efeito, o acto em apreço, ao remeter para a Informação/Proposta que o antecede, mostra claramente que o seu autor quis tomar, e verdadeiramente tomou, uma decisão (ao menos implícita; sobre o conceito de acto implícito, ver Lino Ribeiro e José C. Pinho, Código do Procedimento Administrativo de Macau, pág. 636) sobre o mérito da pretensão da autora. E o sentido dessa decisão é este: não satisfazemos o pedido de troca de terrenos, não só por, após a transferência administrativa de Macau, e conforme posição do TUI, não ser possível adquirir a propriedade de terrenos da RAEM, mas ainda por os direitos sobre os terrenos agora só poderem ser concedidos em regime de arrendamento ou ocupação por licença, consoante o fim a que se destinem, e não por troca.
E com essa justificação, isto é, por não ser possível satisfazer a pretensão da autora (daí a invocação do art. 103º, nº2, al. b), do CPA), o procedimento seria “arquivado”.
Portanto, o que verdadeiramente subjaz a esta decisão é uma apreciação intencional sobre o mérito do pedido de troca de terrenos e só por ter sido alcançada a conclusão de que tal era impossível é que o procedimento seria extinto. Foi o mesmo que dizer que, pelas razões expostas, o “pedido em causa era improcedente».
Afigura-se-nos que o acórdão recorrido obedeceu aos cânones interpretativos, não sendo de censurar a sua actividade interpretativa do acto administrativo.
Mas mesmo que tudo isto não fosse exacto, não é verdade que na contestação o Chefe do Executivo tenha aceitado que o acto recusou apreciar a pretensão da autora.
Em conclusão, tendo o acto indeferido a pretensão do interessado, não houve recusa de apreciação da pretensão, com o que se se não verificava o pressuposto mencionado na alínea c) do n.º 1 do artigo 103.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, invocado pela autora para instaurar acção para determinação da prática de acto legalmente devido.
3. Nulidade do acórdão recorrido por omissão do dever de saneamento
Estamos, agora, em condições de apreciar os restantes fundamentos do recurso.
Considera a autora haver nulidade do acórdão recorrido por omissão do dever de saneamento, por haver factos controvertidos relevantes.
Não havia. Face ao visto acima, a acção estava morta à nascença, pelo que não havia qualquer prova a produzir. O Tribunal não pratica actos inúteis (artigo 87.º do Código de Processo Civil).
Improcede a questão suscitada.
4. Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à verificação dos pressupostos da acção
Considera a autora haver nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à verificação dos pressupostos da acção, dado ter invocado subsidiariamente ter havido acto expresso de indeferimento, que seria nulo por ofender o direito de propriedade da autora.
Como diz o Ex.mo Magistrado do Ministério Público no seu parecer, na acção para determinação da prática de acto legalmente devido não é possível conhecer da impugnação de actos administrativos expressos de indeferimento.
Isso resulta, com alguma clareza, dos pressupostos para a propositura da acção, previstos no artigo 103.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo Contencioso:
1. A acção para determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos pode ser proposta quando:
a) Tenha havido lugar a um indeferimento tácito;
b) Tenha sido praticado um acto administrativo de recusa da prática de acto de conteúdo vinculado;
c) Tenha sido praticado um acto administrativo de recusa de apreciação de pretensão.
Assim, o acórdão recorrido, não tinha que se pronunciar sobre questões que ultrapassassem o âmbito processual em questão, como era, manifestamente, a impugnação de acto administrativo expresso, face ao princípio de que o juiz não aprecia questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (n.º 2 do artigo 563.º do Código de Processo Civil).
Improcede a questão suscitada.
5. Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à verificação dos pressupostos da acção
Considera a autora haver nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à verificação dos pressupostos da acção, pois a autora alegou nos artigos 94.º e 95.º da petição inicial, para a possibilidade remota de estar em causa uma decisão de indeferimento tácito.
Não é verdade que a autora alegou na petição inicial, mesmo subsidiariamente, mesmo remotamente, ter havido um acto tácito, mencionando sempre a possibilidade de ter sido praticado acto de indeferimento expresso, nos artigos 68.º e seguintes, embora no artigo 95.º, o último, tenha mencionado a alínea a) do n.º 1 do artigo 103.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, qualificando juridicamente mal, mais uma vez, a questão.
Mas mesmo que a autora tenha alegado então, o que agora diz que alegou, o acórdão recorrido não tinha que abordar a questão do acto tácito, já que entendeu e decidiu que houve um acto expresso, pelo que a questão estava prejudicada (n.º 2 do artigo 563.º do Código de Processo Civil).
Improcede a questão suscitada.
O recurso não merece provimento.
IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 12 UC.
Macau, 29 de Novembro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
1 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Dom Quixote, Lisboa, Tomo III, p. 137.
2 É sabido que o Código de Processo Civil utiliza, por vezes, a mesma expressão jurídica com sentidos diversos. Assim, uma coisa é a distinção entre facto e direito para efeitos da selecção da matéria de facto (artigo 430.º do Código de Processo Civil). Outra coisa é facto e direito para efeitos do poder de cognição do TUI.
3 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito…, Tomo III, p. 138.
4 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito…, Tomo III, p. 138.
5 www. djsi.pt.
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