Processo n.º 52/2016. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrentes: A, B e C.
Recorrido: D.
Assunto: Tribunal de Última Instância. Poder de cognição. Matéria de direito. Matéria de facto. Interpretação da vontade das partes. Artigo 228.º do Código Civil. Declarante. Declaratário. Impossibilidade superveniente culposa imputável ao devedor. Resolução do contrato. Impossibilidade superveniente objectiva não imputável às partes. Restituição segundo as regras do enriquecimento sem causa. Prescrição.
Data do Acórdão: 30 de Julho de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
I - Em recurso jurisdicional cível atinente a 3.º grau de jurisdição, ao TUI apenas compete conhecer de matéria de direito, embora com as seguintes duas excepções, mais aparentes que reais:
- Quando o tribunal recorrido tenha dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência;
- Quando se tenham desrespeitado normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos na lei.
II – O apuramento da vontade real das partes constitui questão de facto, para o qual o TUI não tem poder de cognição.
III – Para os efeitos mencionados na conclusão anterior, pertence à esfera dos factos, a existência da declaração em si, pertencendo à esfera do direito as questões de qualificação e de eficácia jurídicas do que se prove ter sido declarado.
IV - É questão de direito averiguar se os tribunais de 1.ª e 2.ª instâncias fizeram correcta aplicação dos critérios interpretativos do negócio jurídico fixados na lei.
V - No contrato bilateral quando uma das prestações se torne objectiva e superveniente impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa (artigo 784.º, n.º 1, do Código Civil).
VI - Se o acórdão do Tribunal de Segunda Instância decidiu ter havido impossibilidade superveniente objectiva não imputável ao devedor e, erradamente, declarou resolvidos os contratos, quando a consequência desta impossibilidade é a da restituição segundo as regras do enriquecimento sem causa, não é possível o Tribunal de Última Instância decretar esta restituição, dado que no enriquecimento sem causa o direito à restituição prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o credor teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sendo que a prescrição tem de ser invocada pelo interessado, o que os réus não tiveram a possibilidade de fazer, dado que o autor não baseou a acção na impossibilidade superveniente objectiva não imputável ao devedor.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
D intentou três acções declarativas com processo comum ordinário, idênticas, respectivamente, contra A, B e C, pedindo a condenação dos réus no pagamento, respectivamente, de MOP$1.675.331,68, MOP$2.678.298,80 e MOP$3.008.966,57, consistindo na restituição de quantias entregues aos réus, todas acrescidas de juros legais desde a data da interpelação, com fundamento na resolução de três contratos-promessa de compra e venda de terrenos, por incumprimento dos réus e na impossibilidade de cumprimento imputável aos réus.
Por sentença da Ex.ma Juíza Presidente do Tribunal Colectivo, foram julgadas improcedentes as acções e absolvidos os réus dos pedidos.
Os três processos foram apensados.
Recorreu o autor D para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), que concedeu provimento ao recurso, julgando procedentes as acções, com juros desde as citações, com fundamento em impossibilidade objectiva da prestação não imputável a qualquer das partes.
Recorrem, agora, os réus A, B e C, para este Tribunal de Última Instância (TUI), sustentando:
- Da totalidade do acórdão recorrido verifica-se que o mesmo, ao referir-se a "impossibilidade de cumprimento", pretende significar, exclusivamente, "impossibilidade superveniente objectiva" e não uma qualquer "impossibilidade superveniente culposa";
- Mas se assim fosse, não poderia o acórdão recorrido concluir pela aplicabilidade do regime legal previsto para a impossibilidade superveniente culposa, traduzido num direito do Autor à resolução do contrato e consequente restituição das quantias pagas (de acordo com o artigo 790.º do Código Civil actualmente em vigor);
- Concedendo ao Autor um direito (i.e. a resolver o contrato) que apenas lhe assiste no âmbito da impossibilidade superveniente culposa, já que as normas previstas para a impossibilidade superveniente objectiva (artigos 779.º e 784.º, n.º 1, do Código Civil, não conferem ao Autor qualquer direito à resolução do contrato e a restituição das quantias pagas deveria observar o prazo prescricional de 3 anos (artigo 476.º do Código Civil ex vi artigo 784.º, n.º 1, do mesmo Código);
- Estando os poderes de cognição do Tribunal limitados pelos pedidos das partes, não podendo deles extravasar, a condenação dos Réus de acordo com o entendimento acima exposto implica uma nulidade de sentença por condenação em objecto diverso do peticionado, tudo conforme imposto pelo artigo 571.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil, porquanto o Autor, como se disse, apenas pediu a condenação dos Réus – na sequência de resoluções contratuais por si promovidas com base em suposto incumprimento/impossibilidade superveniente culposa destes últimos;
- Não deverão os presentes contratos ser qualificados como “contratos-promessa”, como o fez o acórdão recorrido;
- Pelo que não se verificando qualquer outra causa de incumprimento, os mesmos deverão ser tidos por inteiramente cumpridos.
II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
1. No Processo Principal vêm provados os factos seguintes:
“Da Matéria de Facto Assente:
- Em 29 de Abril de 1992, o Autor e o Réu celebraram um acordo escrito, por via do qual o Autor prometeu comprar e o Réu prometeu vender-lhe três troços de um terreno sito em Coloane, Ká Hó (alínea A) dos factos assentes).
- O Réu manifestou a sua vontade de vender ao Autor esse terreno do tipo de escritura de papel de seda (alínea B) dos factos assentes).
- Terreno e correspectiva escritura de papel de seda que, segundo o que à data foi dito pelo Réu ao Autor, lhe haviam sido ambos deixados pelos seus antepassados (alínea C) dos factos assentes).
- Nos termos da cláusula 4ª do referido acordo escrito, Autor e Réu acordaram que, depois da celebração desse mesmo acordo, o Réu (alínea D) dos factos assentes):
i. Deveria fornecer os respectivos documentos comprovativos; e
ii. Deveria ter as obrigações de ajudar o Autor a tratar das formalidades nos respectivos departamentos do Governo e aproveitar o referido lote de terreno.
- O Autor pagou ao Réu a totalidade o preço de venda acordado, ou seja, HKD$1.626.524,30 (um milhão seiscentos e vinte e seis mil quinhentos e vinte e quatro dólares de Hong Kong e trinta cêntimos) (alínea E) dos factos assentes).
- Nunca foram fornecidos pelo Autor os documentos comprovativos mencionados na acima aludida cláusula 4ª (alínea F) dos factos assentes).
- O Réu nunca exibiu nem nunca entregou ao Autor a escritura de papel de seda (alínea G) dos factos assentes).
- O Réu também não prestou qualquer ajuda ao autor relativa às formalidades constantes da referida cláusula 4ª (alínea H) dos factos assentes).
- O Réu não ajudou ou colaborou com o Autor para este ser reconhecido pelos Departamentos governamentais como o novo titular da escritura de papel de seda e, para que, por conseguinte, perante o Governo de Macau fosse reconhecido como o novo proprietário do terreno nem, igualmente, para que o Autor obtivesse junto dos Departamentos governamentais a autorização para mudar a finalidade do terreno, de rústico para urbanizável (alínea I) dos factos assentes).
- O Réu não promoveu a celebração do contrato definitivo de compra e venda (alínea J) dos factos assentes).
- O contrato definitivo de compra e venda nunca foi celebrado (alínea K) dos factos assentes).
- Mediante notificação judicial avulsa requerida em 16 de Agosto de 2011, o Autor interpelou o Réu para vir cumprir o contrato ou apresentar uma via alternativa à sua resolução (alínea L) dos factos assentes).
- Apesar de interpelado, nada foi respondido ou contraposto pelo Réu (alínea M) dos factos assentes).
- Não tendo sido adoptado pelo Réu nenhum dos dois referidos comportamentos, o Autor promoveu a resolução do contrato mediante comunicação escrita de 20 de Setembro de 2011 recebida pelo Réu (alínea N) dos factos assentes).
- O Réu também não diligenciou desde pelo menos 29 de Abril de 1992 (data do acordo escrito) até 20 de Dezembro de 1999, para promover o reconhecimento judicial por usucapião do direito de propriedade sobre o terreno prometido vender (alínea O) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- O que foi dito pelo R., de que o terreno havia sido deixado pelos seus antepassados, foi atestado pela declaração emitida pela Associação de Auxílio Mútuo dos Moradores da Povoação de Ká-Ó, cuja cópia está junta aos autos a fls. 67, a qual foi anexada ao acordo escrito e dele faz parte integrante (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
- Uma vez que o documento comummente designado por escritura de papel de seda estava, como sempre esteve e ainda hoje está, depositado na sede da mencionada Associação de Auxílio Mútuo dos Moradores da Povoação de Ká-Ó (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
- Facto que era do conhecimento do A. (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- O R. entregou ao A. o terreno que lhe prometeu vender (reposta ao quesito 10º da base instrutória).
- O Autor entregou-se dele assim que pagou a totalidade do preço acordado (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
- O que consta da alínea K) dos factos assentes (resposta ao quesito 13º da base instrutória).
- O A. não intentou acção judicial com vista à aquisição dos terrenos por usucapião nem negociou com a Administração uma concessão por arrendamento de todos esses terrenos (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- Desde 1992, o R. absteve-se de exercer qualquer acto material sobre o terreno porque considerava que já não lhe pertencia (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- Abrindo mão dele, sem reserva, a favor do A. (resposta ao quesito 16º da base instrutória).”
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2. No Apenso A vêm provados os factos seguintes:
“Da Matéria de Facto Assente:
- Em 29 de Abril de 1992, o Autor e o Réu celebraram um acordo escrito, por via do qual o Autor prometeu comprar e o Réu prometeu vender-lhe quatro troços de um terreno sito em Coloane, Ká Hó (alínea A) dos factos assentes).
- O Réu manifestou a sua vontade de vender ao Autor esse terreno do tipo de escritura de papel de seda (alínea B) dos factos assentes).
- Terreno e correspectiva escritura de papel de seda que, segundo o que à data foi dito pelo Réu ao Autor, lhe haviam sido ambos deixados pelos seus antepassados (alínea C) dos factos assentes).
- Nos termos da cláusula 4ª do referido acordo escrito, Autor e Réu acordaram que, depois da celebração desse mesmo acordo, o Réu (alínea D) dos factos assentes):
i. Deveria fornecer os respectivos documentos comprovativos; e
ii. Deveria ter as obrigações de ajudar o Autor a tratar das formalidades nos respectivos departamentos do Governo e aproveitar o referido lote de terreno.
- O Autor pagou ao Réu a totalidade o preço de venda acordado, ou seja, HKD$2.600.206,10 (dois milhões, seiscentos mil duzentos e seis dólares de Hong Kong e dez cêntimos) (alínea E) dos factos assentes).
- Nunca foram fornecidos pelo Autor os documentos comprovativos mencionados na acima aludida cláusula 4ª (alínea F) dos factos assentes).
- O Réu nunca exibiu nem nunca entregou ao Autor a escritura de papel de seda (alínea G) dos factos assentes).
- O Réu também não prestou qualquer ajuda ao autor relativa às formalidades constantes da referida cláusula 4ª (alínea H) dos factos assentes).
- O Réu não ajudou ou colaborou com o Autor para este ser reconhecido pelos Departamentos governamentais como o novo titular da escritura de papel de seda e, para que, por conseguinte, perante o Governo de Macau fosse reconhecido como o novo proprietário do terreno nem, igualmente, para que o Autor obtivesse junto dos Departamentos governamentais a autorização para mudar a finalidade do terreno, de rústico para urbanizável (alínea I) dos factos assentes).
- O Réu não promoveu a celebração do contrato definitivo de compra e venda (alínea J) dos factos assentes).
- O contrato definitivo de compra e venda nunca foi celebrado (alínea K) dos factos assentes).
- Mediante notificação judicial avulsa requerida em 16 de Agosto de 2011, o Autor interpelou o Réu para vir cumprir o contrato ou apresentar uma via alternativa à sua resolução (alínea L) dos factos assentes).
- Apesar de interpelado, nada foi respondido ou contraposto pelo Réu (alínea M) dos factos assentes).
- Não tendo sido adoptado pelo Réu nenhum dos dois referidos comportamentos, o Autor promoveu a resolução do contrato mediante comunicação escrita de 20 de Setembro de 2011 recebida pelo Réu (alínea N) dos factos assentes).
- O Réu também não diligenciou desde pelo menos 29 de Abril de 1992 (data do acordo escrito) até 20 de Dezembro de 1999, para promover o reconhecimento judicial por usucapião do direito de propriedade sobre o terreno prometido vender (alínea O) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- O que foi dito pelo R., de que o terreno havia sido deixado pelos seus antepassados, foi atestado pela declaração emitida pela Associação de Auxílio Mútuo dos Moradores da Povoação de Ká-Ó, cuja cópia está junta aos autos a fls. 70, a qual foi anexada ao acordo escrito e dele faz parte integrante (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
- Uma vez que o documento comummente designado por escritura de papel de seda estava, como sempre esteve e ainda hoje está, depositado na sede da mencionada Associação de Auxílio Mútuo dos Moradores da Povoação de Ká-Ó (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
- Facto que era do conhecimento do A. (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- O R. entregou ao A. o terreno que lhe prometeu vender (reposta ao quesito 10º da base instrutória).
- O Autor entregou-se dele assim que pagou a totalidade do preço acordado (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
- O que consta da alínea K) dos factos assentes (resposta ao quesito 13º da base instrutória).
- O A. não intentou acção judicial com vista à aquisição dos terrenos por usucapião nem negociou com a Administração uma concessão por arrendamento de todos esses terrenos (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- Desde 1992, o R. absteve-se de exercer qualquer acto material sobre o terreno porque considerava que já não lhe pertencia (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- Abrindo mão dele, sem reserva, a favor do A. (resposta ao quesito 16º da base instrutória).”
*
3. No Apenso B vêm provados os factos seguintes:
“Da Matéria de Facto Assente:
- Em 29 de Abril de 1992, o Autor e o Réu celebraram um acordo escrito, por via do qual o Autor prometeu comprar e o Réu prometeu vender-lhe um troço de um terreno sito em Coloane, Ká Hó (alínea A) dos factos assentes).
- O Réu manifestou a sua vontade de vender ao Autor esse terreno do tipo de escritura de papel de seda (alínea B) dos factos assentes).
- Terreno e correspectiva escritura de papel de seda que, segundo o que à data foi dito pelo Réu ao Autor, lhe haviam sido ambos deixados pelos seus antepassados (alínea C) dos factos assentes).
- Nos termos da cláusula 4ª do referido acordo escrito, o Autor e o Réu acordaram que depois da celebração desse, o Réu (alínea D) dos factos assentes):
i. Deveria fornecer os respectivos documentos comprovativos; e
ii. Deveria ter as obrigações de ajudar o Autor a tratar das formalidades nos respectivos departamentos do Governo e aproveitar o referido lote de terreno.
- O Autor pagou ao Réu a totalidade o preço de venda acordado, ou seja, HKD$2.921.232,40 (alínea E) dos factos assentes).
- Nunca foram fornecidos pelo Autor os documentos comprovativos mencionados na acima aludida cláusula 4ª (alínea F) dos factos assentes).
- O Réu não exibiu nem entregou ao Autor a escritura de papel de seda (alínea G) dos factos assentes).
- O Réu não ajudou ou colaborou com o Autor para este ser reconhecido pelos Departamentos governamentais como o novo titular da escritura de papel de seda e, para que, por conseguinte, perante o Governo de Macau fosse reconhecido como o novo proprietário do terreno nem, igualmente, para que o Autor obtivesse junto dos Departamentos governamentais a autorização para mudar a finalidade do terreno, de rústico para urbanizável (alínea H) dos factos assentes).
- O Réu não promoveu a celebração do contrato definitivo de compra e venda (alínea I) dos factos assentes).
- O contrato definitivo de compra e venda nunca foi celebrado (alínea J) dos factos assentes).
- Mediante notificação judicial avulsa requerida em 16 de Agosto de 2011, o Autor interpelou o Réu para vir cumprir o contrato ou apresentar uma via alternativa à sua resolução (alínea K) dos factos assentes).
- Apesar de interpelado, nada foi respondido ou contraposto pelo Réu (alínea L) dos factos assentes).
- Não tendo sido adoptado pelo Réu nenhum dos dois referidos comportamentos, o Autor promoveu a resolução do contrato mediante comunicação escrita de 20 de Setembro de 2011 recebida pelo Réu (alínea M) dos factos assentes).
- O Réu não diligenciou, desde pelo menos 29 de Abril de 1992 até 20 de Dezembro de 1999, para promover o reconhecimento judicial por usucapião do direito de propriedade sobre o terreno prometido vender (alínea N) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- O que foi dito pelo R., de que o terreno havia sido deixado pelos seus antepassados, foi atestado pela declaração emitida pela Associação de Auxílio Mútuo dos Moradores da Povoação de Ká-Ó, cuja cópia está junta aos autos a fls. 139, o que foi anexada ao acordo escrito e dele faz parte integrante (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
- Uma vez que o documento comummente designado por escritura de papel de seda estava, como sempre esteve e ainda hoje está, depositado na sede da mencionada Associação de Auxílio Mútuo dos Moradores da Povoação de Ká-Ó (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
- Facto que era do conhecimento do Autor (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
- O Réu entregou ao Autor o terreno que lhe prometeu vender (reposta ao quesito 9º da base instrutória).
- O Autor entregou-se dele assim que pagou a totalidade do preço acordado (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- O que consta da alínea J) dos factos assentes (resposta ao quesito 12º da base instrutória).
- O A. não intentou acção judicial com vista à aquisição dos terrenos por usucapião nem negociou com a Administração uma concessão por arrendamento de todos esses terrenos (resposta ao quesito 13º da base instrutória).
- Desde 1992, o Réu absteve-se de exercer qualquer acto material sobre o terreno porque considerava que já não lhe pertencia (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- Abrindo mão dele, sem reserva, a favor do Autor (resposta ao quesito 15º da base instrutória).”
III – O Direito
1. As questões a resolver
As questões a resolver são as suscitadas pelos recorrentes.
2. Qualificação dos contratos
Trata-se de saber qual a qualificação dos contratos dos autos, se contratos-promessa de compra e venda, como decidiu o acórdão recorrido ou outra qualquer.
Sobre essa matéria, disse-se no acórdão recorrido:
“Ambas as partes qualificaram esses contratos, de modo expresso, como de promessa de compra e venda, sendo manifesto, pelo título e pelo conteúdo, que se querem vincular à celebração de um contrato de compra e venda, a realizar no futuro, intenção essa que vem dada como provada.
O facto em causa foi aceite plenamente pelos Réus nas suas contestações, procurando aí os Réus, tão-somente afastar qualquer culpa pelo incumprimento, ou seja, defendem que não lhes pode ser imputada qualquer responsabilidade pela não realização da escritura do contrato definitivo.
O que é isto se não o reconhecimento de que o contrato celebrado visava a celebração da escritura de compra e venda translativa da propriedade prometida por si a ser alienada?
Com a posição assumida parece realmente que os Réus querem dar o dito por não dito, adaptando a sua leitura à evolução da situação jurídica e a uma impossibilidade de reconhecimento de uma propriedade privada no post estabelecimento da RAEM.
O facto de o A. ter pagado a totalidade do preço e entrado na posse da coisa não é de modo algum incompatível com as situações jurídicas conformadas por um contrato-promessa, antes se reconhecendo que, muitas vezes, pelas mais variadas razões, nomeadamente fiscais, as partes preferem ficar nesse limbo de indefinição do direito resultante da situação adveniente da celebração do contrato promessa de compra e venda com pagamento da integralidade do preço e entrega das chaves.
Mas não deixam de arrostar com os riscos que daí possam resultar.
Aliás, se não se entendesse que estávamos perante um contrato-promessa, qual o negócio que foi celebrado?
Se negócio transmissivo de direito real – independentemente da caracterização da posse como integrante de uma situação real –, sempre reclamaria a celebração por escritura pública, sob pena de nulidade do negócio, face ao disposto no art. 94º do C. do Notariado, 404º, n.º 2 e 212º do CC.
Podíamos conformar eventualmente a possibilidade de o documento titular a autorização para actos de uma posse precária ou mera detenção, com poderes de aproveitamento da coisa, mas aí ficaria sem sentido o pagamento do preço, determinado em função do valor da coisa e já não das suas meras utilidades e ficariam sem sentido, também, as obrigações que se estabelecem no sentido de favorecimento das condições habilitantes à efectivação da titularidade do direito de propriedade por parte do A., promitente-comprador dos referidos terrenos.
6. Fica então a possibilidade de se pretender enquadrar os contratos como um título de transferência de posse, tal como os Réus agora sustentam, mas essa interpretação levanta-nos três dificuldades: a primeira, é a de que para a constituição de uma situação possessória não é necessário um documento – cfr. art. 1187º do CC; a segunda é a de que se se transmite a posse ela deve corresponder a um direito e parece não haver dúvidas de que o promitente vendedor se arrogava a titularidade do direito de propriedade correspondente a esse exercício – art. 1175º do CC (nesse caso não se pode transmitir a posse sem o direito que lhe corresponde); a terceira, é a de que se se pretende transmitir uma posse correspondente a um direito real, então, nesse caso, passa a ser necessário o documento e ulterior escritura, em face das normas acima citadas.
Na verdade, referir-se em determinado contrato que se quer futuramente alienar e adquirir um bem significa que se visa celebrar um posterior negócio jurídico apto a servir esse fim de transmissão da propriedade. Se ambas as partes, em determinado contrato, indicam o fim - uma visa comprar, a outra vender -, se indicam que o momento para se realizar esse fim não ocorrerá desde logo nesse mesmo contrato, mas em momento posterior, se ambas as partes estipulam que se alguma delas falhar o acordo se aplica o então vigente art. 830.° do CC de 1966, em vigor à data da celebração do contrato, a adequada interpretação de tais declarações negociais das partes implica a qualificação desse contrato como contrato-promessa.
O Tribunal funda o seu entendimento unicamente na circunstância de não existir uma cláusula que refira expressamente o compromisso de celebração futura de escritura de compra e venda, mas importa não esquecer que a interpretação negocial deve ser feita no conjunto dos elementos e circunstâncias que envolvem a celebração da contrato e comuns a ambas as partes, face ao disposto no art. 228º do CC. Nesta conformidade, pensamos que neste particular detalhe não assiste razão à Mma Juíza porquanto consta dos contratos expressamente: “por o primeiro outorgante manifestar a vontade de vender ao 2º outorgante, o terreno … com a área indicada no “anexo”, vem celebrar com o 2º outorgante o presente contrato com as seguintes cláusulas: (…) “
7. Vêm agora os recorridos realçar factos, é verdade, que também invocaram na contestação, como seja o de terem transmitido a posse de um terreno que era seu e tinham recebido dos antepassados, sendo detentores de uma escritura de papel de seda, mas que os notários não reconheciam como elemento bastante para celebrarem as respectivas escrituras, tudo isto, sem enjeitar que fossem os donos e senhores desses terrenos, pelo que se compreende que tenham assinado um contrato-promessa, não se podendo desvincular de responsabilidades na sua não celebração, na medida em que também podiam ter eventualmente invocado usucapião a seu favor, não imaginando eles, nem o promitente comprador, que sobreviria uma Lei Básica impeditiva desse reconhecimento posteriormente ao estabelecimento da RAEM.
As partes bem sabiam que se tratava de um contrato relativo a terrenos de papel de seda com as condicionantes que daí advinham, da dificuldade no reconhecimento dessas situações jurídicas, enfatizando até o conteúdo da cláusula do contrato, onde se diz (…) o 1º contratante terá a obrigação de auxiliar o 2º outorgante a tratar das formalidades para o aproveitamento do supracitado terreno nos serviços do governo”
A tese dos RR. não deixa de ser peregrina, pois, à partida, não se compreende muito bem que alguém pague aqueles milhões por terrenos, na incerteza sobre a titularidade jurídica dos bens e sem garantia de que a situação advinda desses contratos se confirme em termos de estabilidade na ordem jurídica.
Os Réus, sublinha-se, não deixam de aceitar expressamente que existiu um contrato-promessa, bastando ver para tanto, desde logo a confissão que resulta do artigo 1º da contestação.
Não obstante se mencionar no acordo que os terrenos estavam titulados com escrituras de papel de seda, isso por si só não implica automaticamente que o acordo das partes tivesse por objecto apenas a posse e não o direito real sobre o terreno.
Também, do referido acordo não consta, em nenhum lugar, que os Réus só venderam a posse possuída sobre o terreno e que o A. aceitou apenas adquirir a posse que aqueles tinham.
Atento o objecto dessa promessa, os RR. estavam obrigados a emitir uma declaração de vontade de venda do bem prometido ao Autor e este estava no direito de exigir a celebração da respectiva escritura pública”.
Feita esta longa transcrição do acórdão recorrido, recorde-se que no nosso acórdão de 14 de Junho de 2013, no Processo n.º 7/2013, firmámos as seguintes conclusões, que são de manter:
Em recurso jurisdicional cível atinente a 3.º grau de jurisdição, ao TUI apenas compete conhecer de matéria de direito, embora com as seguintes duas excepções, mais aparentes que reais:
- Quando o tribunal recorrido tenha dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência;
- Quando se tenham desrespeitado normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos na lei.
O apuramento da vontade real das partes constitui questão de facto, para o qual o TUI não tem poder de cognição.
Para os efeitos mencionados na conclusão anterior, pertence à esfera dos factos, a existência da declaração em si, pertencendo à esfera do direito as questões de qualificação e de eficácia jurídicas do que se prove ter sido declarado.
É questão de direito averiguar se os tribunais de 1.ª e 2.ª instâncias fizeram correcta aplicação dos critérios interpretativos do negócio jurídico fixados na lei.
A restrição da segunda parte do n.º 1 do artigo 228.º do Código Civil significa que o declarante responde pelo sentido que a outra parte quer atribuir à sua declaração, enquanto esse seja o sentido que ele próprio devia considerar acessível à compreensão dela. O significado que o receptor da declaração atribui a esta, procedendo com a diligência adequada, é praticamente sempre imputável ao declarante, se este tinha a consciência de estar a emitir uma declaração negocial.
Pois bem, aplicando estes princípios aos factos, relativamente à interpretação feita pelo Acórdão recorrido, afigura-se-nos estar a mesma de acordo com o disposto no artigo 228.º do Código Civil.
Na verdade, a interpretação feita é compatível com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante, visto não se ter provado nada que pudesse constituir a restrição da parte final do n.º 1 do artigo 228.º do Código Civil.
Conclui-se, assim, que as partes celebraram contratos-promessa de compra e venda de terrenos.
3. Consequências da impossibilidade superveniente objectiva não imputável a qualquer das partes
Na tese dos réus:
- O autor intentou a acção com fundamento na resolução de três contratos-promessa de compra e venda de terrenos, por incumprimento dos réus e, subsidiariamente, na impossibilidade culposa de cumprimento por parte dos réus;
- O acórdão recorrido decidiu ter havido impossibilidade superveniente objectiva não imputável a qualquer das partes e não culposa;
- Logo, extravasou o acórdão recorrido os seus de poderes de cognição;
- O acórdão recorrido apesar de ter decidido ter havido impossibilidade superveniente objectiva não imputável a qualquer das partes e não culposa, aplicou a norma relativa à impossibilidade culposa (artigo 790.º do Código Civil) e não as aplicáveis à impossibilidade superveniente objectiva (artigos 779.º e 784.º, n.º 1, do Código Civil).
O autor tem razão em todos os pontos.
Na verdade, no contrato bilateral quando uma das prestações se torne objectiva e superveniente impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa (artigo 784.º, n.º 1, do Código Civil).
Ora, o acórdão recorrido decidiu ter o autor direito à resolução e à restituição da prestação por inteiro, se já a tiver realizado, que é a consequência da impossibilidade culposa imputável ao devedor (artigo 790.º do Código Civil).
Quid juris?
Não parece haver condenação em objecto diverso do pedido, já que o autor pediu que se reconhecesse a resolução do contrato, com a restituição dos montantes pagos, o que foi decidido.
Por outro lado, o acórdão recorrido baseou-se nos factos articulados pelo autor nas petições.
Assim, não está em causa nenhuma nulidade do acórdão recorrido, visto também não haver contradição entre os fundamentos e a decisão.
Mas o acórdão recorrido violou a lei dado que decidiu ter havido impossibilidade superveniente objectiva não imputável ao devedor e declarou resolvidos os contratos, que não é a consequência que corresponde aquela impossibilidade.
Como dissemos, no contrato bilateral quando uma das prestações se torne objectivamente impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa (artigo 784.º, n.º 1, do Código Civil).
Ora, no enriquecimento sem causa o direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o credor teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, de acordo com o disposto no artigo 476.º.
A prescrição tem de ser invocada pelo interessado (artigo 296.º do Código Civil), o que os réus não tiveram a possibilidade de fazer dado que o autor não baseou a acção na impossibilidade superveniente objectiva não imputável ao devedor. E, aparentemente, a restituição estava prescrita.
Logo, não se pode decretar a restituição do prestado pelo autor com base no enriquecimento sem causa.
Não parece haver impossibilidade originária da prestação, por falta de factos a tal respeito, caso em que o Tribunal poderia decretar oficiosamente a nulidade e ordenar a restituição do que foi prestado (n.º 1 do artigo 273.º do Código Civil).
Em consequência têm os réus de ser absolvidos, com o que se revoga o acórdão recorrido.
III – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido e absolvem-se os réus dos pedidos.
Custas pelo recorrente, em todas as instâncias.
Macau, 30 de Julho de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
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Processo n.º 52/2016