Processo n.º 84/2019. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorridos: B e C.
Assunto: Início do prazo de prescrição. Artigo 299.º do Código Civil. Abuso de direito. Conhecimento oficioso.
Data do Acórdão: 18 de Setembro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO
I - No âmbito de aplicação do artigo 299.º do Código Civil, o início do prazo da prescrição dá-se de maneira objectiva, independentemente do momento em que o titular do direito teve conhecimento deste.
II – O abuso de direito é uma questão de conhecimento oficioso, a conhecer, mesmo que suscitada, apenas, em recurso.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
B e C intentaram acção declarativa com processo comum ordinário contra A pedindo a:
1) Emissão de sentença constitutiva que produza os efeitos da declaração negocial da R. faltosa, e que, assim, declare vendida pela ré aos autores, a quota indivisa de 3/5 do direito de propriedade do prédio, sito em Macau, [Endereço (1)], descrito sob o n.º XXXX a fls. 26v do Livro X-XX da Conservatória do Registo Predial de Macau, pelo preço de MOP$4,500.00.
2) Condenação da ré ao pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais pelo incumprimento parcial do contrato promessa de MOP$2,000,000.00 (dois milhões patacas), acresida dos juros vincendos à taxa legal, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
3) Subsidiariamente, caso o pedido de execução específica não vier a ser considerado procedente, a declaração do contrato promessa de compra e venda resolvido, por incumprimento definitivo da ré, condenando-se a mesma ao pagamento de uma indemnização no valor de MOP$5,000,000.00 (cinco milhões patacas), acrescida dos juros vincendos à taxa legal, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
4) Sempre reconhecendo o direito de retenção do 1.º autor no que respeita ao prédio descrito sob o n.º XXXX, a fls. 26v do Livro X-XX da Conservatória do Registo Predial de Macau, para garantia desse seu direito de crédito.
O Ex.mo Juiz, por despacho saneador-sentença, de 26 de Janeiro de 2018, declarou prescritos os direitos de execução específica da promessa e indemnização, bem como o direito de retenção, absolvendo a ré dos pedidos
Recorreram os autores B e C para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) que, por acórdão de 7 de Março de 2019, concedeu provimento ao recurso, revogando o despacho saneador-sentença, determinando o prosseguimento dos autos quanto à execução específica da promessa.
Recorre, agora, a ré A para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando a seguinte questão:
- O Tribunal Recorrido fez uma errada interpretação e aplicação da lei ao considerar que, para se iniciar o prazo da prescrição previsto no n.º 1, primeira parte do artigo 299.º do Código Civil é exigível o conhecimento, por parte do titular do direito (parte antagónica do beneficiário da prescrição) de todos os pressupostos de que depende o seu exercício.
II – Os factos
Estão provados os seguintes factos:
A. Por contrato promessa de 09 de Outubro de 1972, E prometeu vender a D, o prédio sito em Macau, [Endereço (1)], descrito sob o n.º XXXX, a fls. 26v do Livro X-XX na Conservatória do Registo Predial de Macau, pelo preço total de MOP$7,500.00 (sete mil e quinhentas mil patacas).
B. O referido contrato foi assinado pela promitente vendedora E.
C. Na data da assinatura do contrato, D pagou a E a quantia de MOP$1,000.00 (mil patacas), a título de sinal e antecipação do preço.
D. Os Autores são os únicos e universais herdeiros de D, nos termos da escritura de habilitação de 23.08.2011, lavrada a fls. 106 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º XXXX do Cartório Notarial das Ilhas.
E. Na altura de celebração da promessa acima mencionada, E era titular de uma quota indivisa de três quintos (3/5) do direito de propriedade do referido prédio.
F. Os restantes dois quintos (2/5) do direito de propriedade pertenciam a F, G e H, cabendo a cada um deles, a quota indivisa de dois quinze avos (2/15) respectivamente.
G. Por isso, E declarou aí que o contrato definitivo de venda seria celebrado 30 dias após o tribunal haver proferido decisão declarando-a titular da restante parte do direito de propriedade sobre o prédio.
H. Em 06 de Dezembro de 1976, E, representada pelo seu mandatário judicial, Dr. I, intentou no Tribunal da Comarca de Macau acção declarativa com processo ordinário, distribuída sob o n.º 122/1976 ao 1.º cartório, a fim de ser declarado que havia adquirido por usucapião a totalidade do direito de propriedade do prédio.
I. A referida acção foi julgada improcedente, havendo a decisão transitado em julgado no dia 04 de Outubro de 1977.
J. E faleceu em 10 de Dezembro de 1981 em Hong Kong.
K. Até à data do óbito, E, não adquiriu os restantes 2/5 do direito de propriedade do prédio, que ainda continuam registados a favor de F, G e H.
L. A quota indivisa de 3/5 do direito de propriedade do prédio, foi transmitida após o seu óbito, para a Ré por sucessão hereditária.
III - O Direito
1. As questões a apreciar
O despacho saneador-sentença declarou prescritos os direitos de execução específica da promessa e indemnização e o direito de retenção, com fundamento em o prazo ter começado a correr em 1977, com o trânsito em julgado da sentença que julgou improcedente a acção proposta pela mãe da ré, a fim de ser declarado que havia adquirido por usucapião a totalidade do direito de propriedade do prédio.
Não há divergência que o prazo de prescrição é de 20 anos.
O acórdão recorrido entendeu que o prazo de prescrição só começou a correr em 2014, ano em que os autores tiveram conhecimento do resultado do mencionado processo judicial.
A questão a decidir é, pois, a de saber quando começou a correr o prazo de prescrição: quando o direito pôde ser exercido ou só quando os titulares do direito tiveram conhecimento de que podiam exercer o direito de execução específica da promessa.
Seguir-se-á o nosso acórdão de 19 de Junho de 2019, no Processo n.º 58/2019, que apreciou o recurso interposto do acórdão de 6 de Dezembro de 2018, do TSI, no Processo 584/2018, a cuja fundamentação o acórdão recorrido aderiu integralmente.
«2. Momento do início do prazo da prescrição
Dispõe o artigo 299.º do Código Civil:
“Artigo 299.º
(Início do curso da prescrição)
1. O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.
2. A prescrição de direitos sujeitos a condição suspensiva ou termo inicial só começa depois de a condição se verificar ou o termo se vencer.
3. Se for estipulado que o devedor cumprirá quando puder, ou o prazo for deixado ao arbítrio do devedor, a prescrição só começa a correr depois da morte dele ou, caso se trate de pessoa colectiva, da sua extinção.
4. Se a dívida for ilíquida, a prescrição começa a correr desde que ao credor seja lícito promover a liquidação; promovida a liquidação, a prescrição do resultado líquido começa a correr desde que seja feito o seu apuramento por acordo ou sentença transitada em julgado”.
Vejamos, agora, o que dispõem quanto ao início do prazo de prescrição os preceitos relativos a dois institutos particulares, o enriquecimento sem causa e a responsabilidade civil extracontratual, os artigos 476.º e 491.º, n.º 1, respectivamente:
“Artigo 476.º
(Prescrição)
O direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o credor teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento”.
“Artigo 491.º
(Prescrição)
1. O direito de indemnização prescreve no prazo de 3 anos, a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, embora com desconhecimento da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.
2. …
3. …
4. …”
Assim o que resulta do cotejo dos três preceitos é o de que na norma geral do início do prazo da prescrição, cujo prazo ordinário é de 15 anos, se estatui que o prazo começa a correr quando o direito puder ser exercido, independentemente do conhecimento do direito por parte do titular, enquanto no enriquecimento sem causa e na responsabilidade civil extracontratual, o prazo só começa a correr “a contar da data em que o credor teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável” (artigo 476.º) e “a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, embora com desconhecimento da extensão integral dos danos” (artigo 491.º, n.º 1).
Importa, ainda notar que estes dois prazos curtos, de 3 anos, cujo início depende do conhecimento do direito, por parte do titular, não prejudica a prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento ou do facto danoso. O que significa, claramente, que o início do prazo de prescrição se dá com o facto objectivo e não com o conhecimento do direito por parte do interessado.
Ou seja, se o prazo da prescrição ordinária (15 anos) já tiver decorrido a contar do enriquecimento ou do facto danoso dá-se a prescrição, mesmo que ainda não tenha decorrido o curto prazo de 3 anos a contar da data em que o lesado teve ou deveria ter tido conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável.
O que quer dizer que o legislador pretendeu que nas situações regra, em que o prazo é longo (15 anos), a contagem do prazo dá-se de maneira objectiva, enquanto que nos prazos curtos do enriquecimento sem causa e da responsabilidade civil extracontratual o prazo só começa a correr a contar da data em que o credor ou o lesado tiveram do conhecimento do direito que lhes compete.
É isso mesmo que explica ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO1, perante normas semelhantes do Código Civil português:
“I. O início do prazo da prescrição é um factor estruturante do próprio instituto: dele, depende, depois, todo o desenvolvimento subsequente. O Direito comparado 2documenta, a tal propósito, dois grandes sistemas:
- o sistema objectivo;
- o sistema subjectivo.
Pelo sistema objectivo, o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que, disso, tenha ou possa ter o respectivo credor. Pelo subjectivo, tal início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito. O sistema objectivo é tradicional3, sendo compatível com prazos longos; o subjectivo joga com prazos curtos4 e costuma ser dobrado por uma prescrição mais longa, objectiva5.
Como vimos, o sistema objectivo dá primazia à segurança e o subjectivo à justiça; a junção dos dois será a melhor solução de iure condendo.
…
VIII. Cumpre ainda sublinhar que, nalguns casos de prescrição, a lei portuguesa já estabelece sistemas subjectivos. É o que sucede no enriquecimento sem causa e na responsabilidade civil - artigos 482.° e 498.°/l - casos em que se prevê uma prescrição de três anos cujo início depende do conhecimento que o credor tenha dos seus direitos6.
O mesmo defende ANA FILIPA MORAIS ANTUNES7
“2. A expressão quando o direito puder ser exercido tem que ser interpretada no sentido de a prescrição se iniciar quando o direito estiver em condições (objectivas) de o titular poder exercitá-lo, portanto, desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação. O critério consagrado é, pois, o da exigibilidade da obrigação.
…
4. O início da prescrição não é impedido pela ignorância do titular acerca da existência do direito ou da sua titularidade. Esta circunstância poderá, no entanto, relevar em matéria de suspensão do curso da prescrição”.
Concluindo, no nosso caso é irrelevante o conhecimento do titular do direito, dado estarmos no âmbito do artigo 299.º, cujo prazo ordinário era, ao tempo, de 20 anos.
Ocorreu, pois, a prescrição».
3. Abuso de direito
Vieram os recorridos alegar, neste recurso, o abuso de direito na invocação da prescrição, com fundamento em que a conduta do devedor obstou ao exercício tempestivo do direito do credor.
Deve começar-se por dizer que os ora recorridos não invocaram este abuso de direito quando, na sua réplica, se opuseram à prescrição do direito, suscitada pela ré na contestação.
Só o fizeram, pela primeira vez, nas alegações de recurso para o TSI.
Não obstante, conhecer-se-á da questão, por se entender, comummente que se trata de questão de conhecimento oficioso.
Mas não resulta dos factos provados que tenha sido a conduta do devedor que obstou ao exercício tempestivo do direito do credor.
Improcede, pois, a alegação de abuso de direito na invocação da prescrição.
IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, revogam o acórdão recorrido, para ficar a subsistir a decisão do despacho saneador-sentença.
Custas pelos recorridos em todas as instâncias.
Macau, 18 de Setembro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
1 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, Coimbra, Almedina, 2005, p. 166 a 169.
2 Designadamente os elementos ponderados em torno da recente reforma da prescrição, na Alemanha; cf. supra, 145 e 146.
3 Assim o artigo 2935.º do Código italiano; cf., sobre este preceito, Paolo Vitucci, La prescrizione cit., 1, 78 ss.
4 Trata-se, como vimos, da solução alemã, após a reforma de 2001/2002 do BGB; §1991/I, 2.
5 Ao estilo dos artigos 482.º e 498.º/1.
6 Cf. uma aplicação em RLx 28-Abr.-1998 (Amaral Barata), BMJ 476 (1998), 473-474.
7 ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, Prescrição e Caducidade, Coimbra Editora, 2008, p. 63 a 64.
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Processo n.º 84/2019