Processo n.º 82/2016. Recurso jurisdicional em matéria penal.
Recorrentes: A, B e C.
Recorrido: Ministério Público.
Assunto: Recurso da matéria de facto em processo penal. Alteração da matéria de facto em recurso em processo penal. Renovação da prova. Ilações. Meios probatórios com força probatória plena. Erro notório na apreciação da prova.
Data do Acórdão: 25 de Setembro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – A lei processual penal não prevê a existência de um recurso da matéria de facto, só sendo possível a impugnação desta matéria por meio da invocação de um dos vícios mencionados no n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
II – O TSI, mesmo oficiosamente, pode conhecer dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal e, nessa medida, conhecer de matéria de facto, designadamente para concluir que houve erro notório na apreciação da prova. Mas, desde que não tenha sido requerida renovação da prova, prevista no n.º 1 do artigo 415.º do Código de Processo Penal, não pode o TSI alterar a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª Instância. Tem de se limitar a reenviar o processo para novo julgamento, nos termos da norma mencionada.
III – Com ou sem invocação de um dos vícios no n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, não pode, em princípio, o TSI alterar a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª Instância. Tem de se limitar a extrair ilações dela, sem a alterar.
IV - O TSI só pode alterar a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª Instância com base em elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento de 1.ª instância, designadamente, em meios probatórios com força probatória plena.
V - Existe erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto uma conclusão inaceitável, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou quando se violam as regras da experiência ou as legis artis na apreciação da prova. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores, isto é, ao homem médio.
Por outro lado, o vício tem de resultar dos elementos constantes dos autos, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum.
Os elementos constantes dos autos são, em primeiro lugar, a própria decisão recorrida e, ainda documentos juntos aos autos de que o tribunal recorrido se serviu ou se podia ter servido para fundamentar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos dos artigos 336.º, 337.º e 338.º do Código de Processo Penal, bem como a documentação da acta da audiência de julgamento.
O Relator
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base absolveu os arguidos A, B e C da acusação da prática em co-autoria, moral, os dois primeiros e material o terceiro, na forma tentada, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelas alíneas c) e g) do n.º 2 do artigo 129.º do Código Penal e dos artigos 21.º, n.º 2, alínea c) e 67.º do mesmo Código.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), julgou procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e:
I. Deu como provados os seguintes factos constantes do despacho de pronúncia:
- D exigiu muitas vezes ao arguido A e aos B e E, através do arguido A, o pagamento das dívidas.
- Uma vez que B e E não eram capazes de pagar os juros dos empréstimos pedido a D, B e E discutiram, via telefone, o homicídio de D e de um homem não identificado, no sentido de evitar o pagamento e responsabilidade pela referida dívida.
- A fim de evitar o pagamento das obrigações e responsabilidade pelas mesmas, os arguidos A e B decidiram arranjar de novo o arguido C para entrar em Macau clandestinamente com objectivo de matar D e queimar os respectivos documentos de empréstimo.
- Assim, o arguido B deslocou-se ao Interior da China para se encontrar com o arguido C e pedir-lhe que viesse para Macau para praticar o homicídio. Ele prometeu ao arguido C uma remuneração depois de ter realizado o acto. Posteriormente, o arguido C prometeu vir para Macau para praticar o acto criminoso.
- A 1 de Abril de 2012, pelas 20:00, o arguido C conseguiu entrar clandestinamente, com sucesso, em Macau e encontrou-se com o arguido B sob instruções deste.
- Os arguidos B e C discutiram o plano sobre o homicídio de D e a queimadura dos documentos na Agência Imobiliária “F Real Estate” relativos aos empréstimos entre D, o arguido A e E.
- A faca afiada encontrada na cintura do arguido C foi a faca que lhe foi dada pelos arguidos A e B para matar D, e pode ser usada como arma de agressão,
- Os arguidos A, B e C agiram de comum acordo e em conjugação de esforços e intentos. Pensaram profundamente e planearam com cuidado o homicídio de D, tendo persistido na intenção de matar por mais de 24 horas, o que apenas não lograram conseguir por razões inteiramente alheias às suas vontades.
II. Passou a condenar o arguido A:
1. Pela prática, em comparticipação e autoria moral e na forma tentada, de 1 crime de homicídio qualificado, p. p. pelo art.º 129.º, n.º 2, al. c), art.º 21.º, n.º 2, al. c) e art.º 67.º do CPM, na pena de 8 anos de prisão;
2. Pela prática, em comparticipação, de 1 crime de auxílio à entrada ilegal, p. p. pelo art.º 14.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2004, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
3. Pela prática, em comparticipação, de 1 crime de acolhimento, p. p. pelo art.º 15.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2004, na pena de 9 meses de prisão.
III. Passou a condenar o arguido B:
1. Pela prática, em comparticipação e autoria moral e na forma tentada, de 1 crime de homicídio qualificado, p. p. pelo art.º 129.º, n.º 2, al. c), art.º 21.º, n.º 2, al. c) e art.º 67.º do CPM, na pena de 8 anos de prisão;
2. Pela prática, em comparticipação, de 1 crime de auxílio à entrada ilegal, p. p. pelo art.º 14.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2004, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão;
3. Pela prática, em comparticipação, de 1 crime de acolhimento, p. p. pelo art.º 15.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2004, na pena de 9 meses de prisão.
IV. Passou a condenar o arguido C pela prática, em comparticipação e autoria material, e na forma tentada, de 1 crime de homicídio qualificado, p. p. pelo art.º 129.º, n.º 2, al. c) e art.º 21.º, n.º 2, al. c) do CPM, na pena de 8 anos de prisão;
Recorrem os três arguidos, para este Tribunal de Última Instância (TUI), suscitando as seguintes questões.
Arguido A:
- O recorrente entende que a decisão recorrida padece do vício previsto no artº 400º, nº 2, al. c) do CPP e viola os princípios in dubio pro reo e da presunção da inocência.
- O Tribunal de Segunda Instância só indicou que a prova foi obtida com base na conversa telefónica descrita na petição de recurso apresentada pelo Ministério Público e que formou a sua convicção directamente a partir da valoração desta prova. O recorrente não se conforma com isso.
- Porquanto do teor da alegada prova – a conversa telefónica entre o recorrente e outro arguido B – não resulta, de qualquer maneira, que o recorrente tinha a intenção de matar a ofendida D.
Arguido B:
- O acórdão recorrido proferiu a decisão baseando-se principalmente no teor do relatório de escuta telefónica constante das alegações escritas que foram apresentadas pelo Ministério Público na qualidade de recorrente. O acórdão recorrido terá proferido a decisão com base na “transcrição literal da conversa telefónica” acima mencionada.
- Tal “transcrição literal da conversa telefónica” não demonstra de forma específica que o recorrente tinha a intenção e/ou tinha praticado os factos que foram dados provados pelo acórdão recorrido.
- Não há dúvida de que, segundo as disposições do CPP, o tribunal de primeira instância não pode proferir decisão condenatória apenas com base na apreciação dos autos, tem que praticar os actos processuais legais de audiência de julgamento, tais como ouvir as alegações e depoimentos de arguidos e de testemunhas, incluindo também a exibição de outros meios de prova. O nosso sistema jurídico exige, em princípio, que os arguidos e testemunhas prestem pessoalmente as suas alegações e depoimentos perante o tribunal.
Arguido C:
- O acórdão recorrido enferma efectivamente do vício de “violação do n.º 1 do art.º 418º do Código de Processo Penal”, já que “por comando do n.º 1 do art.º 418º do Código de Processo Penal interpretado a contrario sensu, este formou convicção por meio da apreciação directa da prova, procedendo à nova apreciação de factos em substituição do Tribunal a quo, com vista a decidir questões de direito”.
- No caso da inexistência do vício factual, o Tribunal ad quem pode convolar, directamente, a decisão face a questão de direito, porém, verificam-se falta de rigor e violação do princípio da livre convicção, se, no caso da existência da questão de facto, o Tribunal ad quem proceder à convolação da decisão da matéria de facto com fundamento em parte dos documentos constantes dos autos, sem ter feito a renovação da prova ao abrigo do art.º 415º do Código de Processo Penal.
- Como entendeu o acórdão recorrido que era necessária a nova e completa apreciação de todos os factos, então, devia o mesmo proceder ao reenvio do processo para novo julgamento, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 418º, e não efectuar o novo julgamento em substituição do tribunal de primeira instância.
- A violação das regras da experiência é, tal como entendida nas sentenças, necessariamente, um erro exagerado e ostensivo, de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores.
- Do acórdão a quo e das respectivas provas se constata que o objectivo dos arguidos era subtrair ou destruir os documentos de empréstimo em causa, a par disso, encontravam-se instrumentos de destruição e armas na posse dos arguidos, em conjugação com parte do conteúdo da conversa entre os mesmos, verifica-se que isto não é suficiente para concluir que os arguidos tentassem praticar o homicídio, não sendo, portanto, uma violação manifesta das regras da experiência comum.
- Face a esta circunstância, em conjugação com o princípio de in dubio pro reo, não se pode considerar que exista erro ostensivo, tal como o acórdão recorrido.
A Ex.ma Procuradora-Adjunta pronuncia-se pela improcedência dos recursos.
Já neste Tribunal a Ex.ma Procuradora-Adjunta mantém o entendimento emitido pelo Ministério Público.
Pela Ex.ma Relatora foi admitido o recurso apenas relativamente ao crime, p. p. pelos artigos 129.º, n.º 2, al. c), 21.º, n.º 2, al. c) e 67.º do Código Penal.
II – Os factos
Os factos provados e não provados pelo TJB e respectiva motivação são os seguintes:
Factos provados:
A partir de Fevereiro de 2012, os arguidos A, B e E perderam a capacidade de pagar os juros decorrentes dos montantes pedidos a D, tendo esta exigido muitas vezes ao arguido A e aos B e E, através do arguido A, o pagamento das dívidas.
Por motivo não apurado, os arguidos A e B decidiram arranjar o arguido C para entrar clandestinamente em Macau.
A pedido do arguido B, o arguido C entrou de novo em Macau.
A 1 de Abril de 2012, pelas 20:00, o arguido C conseguiu entrar clandestinamente, com sucesso, em Macau e deslocou-se à zona ao pé do Restaurante no bairro de Toi San para se juntar ao arguido B sob instruções deste. A seguir, dirigira-se os dois ao Restaurante do Toi San.
Foi encontrada na cintura do arguido C uma faca afiada, que pode ser usada como arma de agressão.
Factos não provados:
Uma vez que B e E não eram capazes de pagar os juros dos empréstimos pedido a D e que E não queria vender a fracção autónoma no Edf. X, B e E discutiram, via telefone, o homicídio de D e de um homem não identificado, no sentido de evitar o pagamento e responsabilidade pela referida dívida.
A fim de evitar o pagamento das obrigações e responsabilidade pelas mesmas, os arguidos A e B decidiram arranjar de novo o arguido C para entrar em Macau clandestinamente com objectivo de matar D e queimar os respectivos documentos de empréstimo.
Assim, o arguido B deslocou-se ao Interior da China para se encontrar com o arguido C e pedir-lhe que viesse para Macau para praticar o homicídio. Ele prometeu ao arguido C uma remuneração depois de ter realizado o acto. Posteriormente, o arguido C prometeu vir para Macau para praticar o acto criminoso.
No citado restaurante, os arguidos B e C discutiram o plano sobre o homicídio de D e a queimadura dos documentos na Agência Imobiliária “F Real Estate” relativos aos empréstimos entre D, o arguido A e E.
A faca afiada encontrada na cintura do arguido C foi a faca que lhe foi dada pelos arguidos A e B para matar D.
Os arguidos A, B e C agiram de comum acordo e em conjugação de esforços e intentos. Por avidez, pensaram profundamente e planearam com cuidado o homicídio de D, tendo persistido na intenção de matar por mais de 24 horas, o que apenas não lograram conseguir por razões inteiramente alheias às suas vontades.
Motivação:
A convicção do Tribunal fundamenta-se na apreciação crítica e comparativa de todos os meios de prova produzidos em audiência de julgamento valorados na sua globalidade, nomeadamente, os depoimentos das testemunhas D (ofendida), G, H, I, J e K (são todos investigadores da PJ), bem como todas as provas documentais constantes dos autos e os objectos apreendidos.
É de mencionar que os 3 arguidos exerceram o direito de silêncio na audiência.
Analisando sinteticamente todas as provas obtidas na audiência, incluindo o registo dos contactos telefónicos dos arguidos, a faca afiada encontrada na cintura do 4º arguido, o diluente e o isqueiro encontrados na mochila deste, e atendendo aos motivos dos arguidos, designadamente às circunstâncias de que os 1º e 2º arguidos ajudaram o 4º arguido a entrar clandestinamente em Macau e da detenção deste (na altura, o arguido estava dirigindo-se ao local de trabalho de D, ou seja Agência Imobiliária “F Real Estate”), o tribunal colectivo, apesar de poder entender, sem dúvida, que na altura dos factos, o 4º arguido C estava dirigindo-se ao local de trabalho de D e iria, bem possivelmente, praticar-lhe acto prejudicial, as conversas telefónicas entre os 3 arguidos expostas na audiência não continham, expressa ou implicitamente, qualquer referência do homicídio de D, e os outros objectos apreendidos e provas, por si só, não deixaram o tribunal colectivo reconstituído reconhecer, sem dúvida, que o 4º arguido C estava dirigindo-se à loja da ofendida para matá-la quando foi interceptado pelos investigadores da PJ.
Factos considerados provados pelo acórdão recorrido:
- D exigiu muitas vezes ao arguido A e aos B e E, através do arguido A, o pagamento das dívidas.
- Uma vez que B e E não eram capazes de pagar os juros dos empréstimos pedido a D, B e E discutiram, via telefone, o homicídio de D e de um homem não identificado, no sentido de evitar o pagamento e responsabilidade pela referida dívida.
- A fim de evitar o pagamento das obrigações e responsabilidade pelas mesmas, os arguidos A e B decidiram arranjar de novo o arguido C para entrar em Macau clandestinamente com objectivo de matar D e queimar os respectivos documentos de empréstimo.
- Assim, o arguido B deslocou-se ao Interior da China para se encontrar com o arguido C e pedir-lhe que viesse para Macau para praticar o homicídio. Ele prometeu ao arguido C uma remuneração depois de ter realizado o acto. Posteriormente, o arguido C prometeu vir para Macau para praticar o acto criminoso.
- A 1 de Abril de 2012, pelas 20:00, o arguido C conseguiu entrar clandestinamente, com sucesso, em Macau e encontrou-se com o arguido B sob instruções deste.
- Os arguidos B e C discutiram o plano sobre o homicídio de D e a queimadura dos documentos na Agência Imobiliária “F Real Estate” relativos aos empréstimos entre D, o arguido A e E.
- A faca afiada encontrada na cintura do arguido C foi a faca que lhe foi dada pelos arguidos A e B para matar D, e pode ser usada como arma de agressão.
- Os arguidos A, B e C agiram de comum acordo e em conjugação de esforços e intentos. Pensaram profundamente e planearam com cuidado o homicídio de D, tendo persistido na intenção de matar por mais de 24 horas, o que apenas não lograram conseguir por razões inteiramente alheias às suas vontades.
III - O Direito
1. As questões a resolver
A 1.ª questão é a de saber se, não tendo o Ministério Público, no recurso para o TSI, pedido a renovação da prova, podia o acórdão recorrido ter revogado a decisão da matéria de facto do acórdão do Tribunal Colectivo de 1.ª Instância, que considerou não terem ficado provados vários factos, designadamente:
- Uma vez que B e E não eram capazes de pagar os juros dos empréstimos pedido a D, B e E discutiram, via telefone, o homicídio de D e de um homem não identificado, no sentido de evitar o pagamento e responsabilidade pela referida dívida.
- A fim de evitar o pagamento das obrigações e responsabilidade pelas mesmas, os arguidos A e B decidiram arranjar de novo o arguido C para entrar em Macau clandestinamente com objectivo de matar D e queimar os respectivos documentos de empréstimo.
- Assim, o arguido B deslocou-se ao Interior da China para se encontrar com o arguido C e pedir-lhe que viesse para Macau para praticar o homicídio. Ele prometeu ao arguido C uma remuneração depois de ter realizado o acto. Posteriormente, o arguido C prometeu vir para Macau para praticar o acto criminoso.
- Os arguidos B e C discutiram o plano sobre o homicídio de D e a queimadura dos documentos na Agência Imobiliária “F Real Estate” relativos aos empréstimos entre D, o arguido A e E.
- A faca afiada encontrada na cintura do arguido C foi a faca que lhe foi dada pelos arguidos A e B para matar D, e pode ser usada como arma de agressão.
- Os arguidos A, B e C agiram de comum acordo e em conjugação de esforços e intentos. Pensaram profundamente e planearam com cuidado o homicídio de D, tendo persistido na intenção de matar por mais de 24 horas, o que apenas não lograram conseguir por razões inteiramente alheias às suas vontades.
Importa, assim, decidir em que circunstâncias pode o TSI alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância e não apenas extrair ilações desta, sem a alterar.
A 2.ª questão consiste em apurar se o acórdão de 1.ª Instância enfermava de erro notório na apreciação da prova.
2. Conhecimento de matéria de facto em recurso para o TSI
A 1.ª questão é a de saber se, não tendo o Ministério Público, no recurso para o TSI, pedido a renovação da prova, podia o acórdão recorrido ter revogado a decisão da matéria de facto do acórdão do Tribunal Colectivo de 1.ª Instância, que considerou não terem ficado provados vários factos, designadamente, que os arguidos A, B e C agiram de comum acordo e em conjugação de esforços e intentos. Pensaram profundamente e planearam com cuidado o homicídio de D, tendo persistido na intenção de matar por mais de 24 horas, o que apenas não lograram conseguir por razões inteiramente alheias às suas vontades.
Importa, assim, decidir em que circunstâncias pode o TSI alterar a matéria de facto fixada em 1.ª instância e não apenas extrair ilações desta, sem a alterar.
Sobre esta matéria já este TUI teve a oportunidade de se pronunciar no acórdão de 1 de Novembro de 2017, no Processo n.º 47/2017, onde dissemos:
«Nos autos houve documentação das declarações prestadas perante o Tribunal Colectivo, por meio de gravação.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 39.º da Lei de Bases da Organização Judiciária, excepto disposição em contrário das leis de processo, o TSI, quando julga em recurso conhece de matéria de facto e de direito.
Mas, no nosso Código de Processo Penal, por opção expressa do legislador, tal conhecimento de matéria de facto é, na prática, muito limitado.
O TSI, mesmo oficiosamente, pode conhecer dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal e, nessa medida, pode conhecer de matéria de facto, designadamente para concluir que houve erro notório na apreciação da prova. Mas, desde que não tenha sido requerida renovação da prova, prevista no n.º 1 do artigo 415.º do Código de Processo Penal, não pode o TSI alterar a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª Instância. Tem de se limitar a reenviar o processo para novo julgamento, nos termos da norma mencionada. É o que resulta dos n.os 1 e 2 do artigo 415.º, onde se dispõe:
Artigo 415.º
(Renovação da prova)
1. Quando tenha havido documentação das declarações prestadas oralmente perante o tribunal singular ou o tribunal colectivo, o Tribunal de Segunda Instância admite a renovação da prova se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 400.º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo.
2. A decisão que admitir ou recusar a renovação da prova é definitiva e fixa os termos e a extensão com que a prova produzida em primeira instância pode ser renovada.
3. Se for determinada a renovação da prova, o arguido é convocado para a audiência.
4. Salvo decisão do tribunal em contrário, a falta de arguido regularmente convocado não dá lugar ao adiamento da audiência.
Neste sentido, decidiu, aliás, o TUI no seu acórdão de 7 de Fevereiro de 2001, no Processo n.º 14/2000.
Recurso da matéria de facto, em sentido próprio, não está previsto na lei processual penal.
Por outro lado, com ou sem invocação de um dos vícios no n.º 2 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, não pode, em princípio, o TSI alterar a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª Instância. Tem de se limitar a extrair ilações dela, sem a alterar.
O TSI só pode alterar a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal de 1.ª Instância com base em elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento de 1.ª instância, designadamente, em meios probatórios com força probatória plena.
Isto é, não pode o TSI, com base em elementos probatórios do processo, alterar a decisão do Tribunal de 1.ª instância, desde que no processo não estejam reproduzidos a totalidade dos meios probatórios à disposição do julgamento de 1.ª instância, sendo certo que a lei não permite a utilização da gravação da audiência, para esse efeito. Isto, sem prejuízo dos casos em que elementos dotados de força probatória plena se sobreponham à convicção do tribunal de 1.ª instância.
Ou seja, dito de outra forma, o TSI só pode alterar a matéria de facto fixada se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base ou se tiver havido renovação da prova.
O acórdão recorrido invocou em seu abono o acórdão deste TUI, de 31 de Outubro de 2001, no Processo n.º 13/2001. Tal invocação é despropositada.
No mencionado acórdão deste TUI, de 31 de Outubro de 2001, decidiu-se que o TSI podia extrair ilações de factos dados como provados pelo tribunal de 1.ª instância, para concluir pela existência de facto não expressamente afirmado pelo tribunal de 1.ª instância. No caso em questão o TUI aceitou que, apesar de não constar da acusação e dos factos provados na sentença que o arguido, condenado por tráfico de droga, sabia que o produto traficado era estupefaciente, o TSI não extravasou os seus poderes ao julgar que ele conhecia as características do produto como sendo estupefaciente.
Já no caso dos autos, o acórdão recorrido não extraiu ilações de factos dados como provados pelo tribunal de 1.ª instância, para concluir pela existência de facto não expressamente afirmado pelo tribunal de 1.ª instância. O que fez foi considerar que na parte em que este tribunal deu como não provado o dolo dos arguidos, tal dolo estava provado, o que é completamente diferente. O acórdão recorrido não aditou facto, mas alterou a matéria de facto.
Logo, no caso dos autos, não podia o acórdão recorrido ter revogado a decisão da matéria de facto do acórdão do Tribunal Colectivo de 1.ª Instância, que considerou não ter ficado provada a intenção de apropriação ilegítima por parte da arguida, passando a considerar provado que se verificou tal intenção».
No nosso caso, o acórdão recorrido não extraiu ilações de factos dados como provados pelo tribunal de 1.ª instância, para concluir pela existência de factos não expressamente afirmados pelo tribunal de 1.ª instância. O que o acórdão recorrido fez foi considerar que na parte em que este tribunal deu como não provado que os arguidos A, B e C combinaram matar D, esse plano teve efectivamente lugar.
Este vício do acórdão recorrido deveria conduzir a que os autos voltassem ao TSI para, com os mesmos Juízes, reapreciar o recurso interposto.
Sucede que isso não é possível, dado que um dos Ex.mos Juízes que interveio já não é Juiz em Macau.
Por outro lado, os recorrentes impugnam a substância da apreciação da matéria de facto e a sua qualificação como erro notório na apreciação da prova, pelo que se passará a conhecer dessa matéria.
3. Erro notório na apreciação da prova
O Tribunal de Última Instância tem entendido que existe erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto uma conclusão inaceitável, quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou tarifada, ou quando se violam as regras da experiência ou as legis artis na apreciação da prova. E tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passe despercebido ao comum dos observadores, isto é, ao homem médio.
Por outro lado, o vício tem de resultar dos elementos constantes dos autos, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum.
Os elementos constantes dos autos são, em primeiro lugar, a própria decisão recorrida e, ainda documentos juntos aos autos de que o tribunal recorrido se serviu ou se podia ter servido para fundamentar a decisão sobre a matéria de facto, nos termos dos artigos 336.º, 337.º e 338.º do Código de Processo Penal, bem como a documentação da acta da audiência de julgamento.
Para considerar ter havido existe erro notório na apreciação da prova por parte da decisão de 1.ª Instância e para ter alterado completamente a matéria de facto provada, entendeu o acórdão recorrido:
«Porém, segundo o entendimento acompanhado por maioria de votos, tendo sido especificadas na petição de recurso do MP as diversas conversas telefónicas entre os arguidos A e B legalmente interceptadas pela PJ durante o inquérito, conjugando com os factos provados, nomeadamente os factos praticados pelos 3 arguidos A, B e C contra a ofendida D, pode este Tribunal entender, conforme as regras de experiência e o senso comum, que o tribunal de 1ª instância também incorreu no erro notório acima referido ao apreciar de novo os factos constantes do despacho de pronúncia que não tinham sido provados no primeiro julgamento.
Na verdade, nas conversas telefónicas entre os 2 arguidos A e B que foram interceptadas, estes dois mencionaram que não eram capazes de pagar as dívidas e acordaram, usando gírias, em resolver tal problema por meio de matar o credor D. Não obstante a forma implícita, o conteúdo das conversas permite concluir que os 2 arguidos decidiram e planearam contratar outra pessoa para matar a ofendida D em Macau.
…
O tribunal a quo incorreu no erro notório na apreciação da prova.
Entendeu o tribunal a quo no acórdão recorrido que “as conversas telefónicas entre os 3 arguidos expostas na audiência não continham, expressa ou implicitamente, qualquer referência do homicídio de D, e os outros objectos apreendidos e provas também não deixaram o tribunal colectivo reconhecer, sem dúvida, que o 4º arguido C estava dirigindo-se à loja da ofendida para matá-la quando foi interceptado pelos investigadores da PJ”.
O tribunal a quo avaliou mal a força probatória de um elemento de prova elaborado durante a fase de inquérito e constante dos autos».
Ou seja, o acórdão recorrido, com base no registo das conversas telefónicas entre os arguidos A e B que foram interceptadas, sustentou que estes dois mencionaram que não eram capazes de pagar as dívidas e acordaram, usando gírias, em resolver tal problema por meio de matar o credor D. Não obstante a forma implícita, o conteúdo das conversas permite concluir que os 2 arguidos decidiram e planearam contratar outra pessoa para matar a ofendida D em Macau.
Acontece que do registo de tais conversas telefónicas entre os dois arguidos não é possível concluir, com um mínimo de certeza exigível a uma condenação penal, que eles planearam matar a D.
Assim, a decisão de 1.ª Instância não violou regras da experiência ou as legis artis na apreciação da prova. E, muito menos praticou erro ostensivo, na apreciação da prova.
Ou seja, não incorreu em erro notório na apreciação da prova.
Impõe-se, deste modo, a revogação do acórdão recorrido, na medida em que decidiu em sentido contrário.
IV – Decisão
Face ao expendido, julgam-se procedentes os recursos, na parte em que estes foram admitidos, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que revogou a decisão da matéria de facto do acórdão do Tribunal Colectivo de 1.ª Instância e em que decidiu julgar provados factos e na parte em que decidiu que este acórdão enfermava de erro notório na apreciação da prova e absolvem-se os arguidos da prática em co-autoria, na forma tentada, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelas alíneas c) e g) do n.º 2 do artigo 129.º do Código Penal e pelos artigos 21.º, n.º 2, alínea c) e 67.º do mesmo Código.
Sem custas.
Macau, 25 de Setembro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
3
Processo n.º 82/2016
23
Processo n.º 82/2016