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Processo nº 964/2019 Data: 31.10.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “peculato”.
Crime de “abuso de confiança”.
Troca – desvio – de fichas de jogo por croupier.
Qualificação jurídica.


SUMÁRIO

1. Os elementos constitutivos do crime de “peculato” abrangem os elementos do “furto”, (subtracção ilegítima de coisa móvel alheia), e do “abuso de confiança”, (apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que tenha sido entregue ao agente ou esteja na sua posse).

2. Entre o “peculato” e o “abuso de confiança” há uma relação de concurso aparente de especialidade, aplicando-se o tipo legal de peculato, por ser um crime especial pela qualidade do agente.

3. Um croupier de 1 casino que, no âmbito das suas funções, se apropria de fichas de jogo, incorre na prática do crime de “peculato”, p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 do C.P.M..

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 964/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A e B, (1ª e 2°) arguidos com os restantes sinais dos autos, responderam em audiência colectiva no T.J.B. sob a acusação da prática como co-autores de 4 crimes de “peculato”, p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 e 336°, n.° 2, al. c) do C.P.M., vindo, a final, a ser condenados como co-autores, e em concurso real, da prática de 4 crimes de “abuso de confiança”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 1 e 201°, n.° 2 do C.P.M., na pena (individual) e especialmente atenuada de 7 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única (e individual) de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos; (cfr., fls. 208 a 217 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, recorreu o Ministério Público, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “errada qualificação jurídica”, pedindo a condenação dos ditos arguidos como co-autores de 4 crimes de “peculato”, p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 e 336°, n.° 2, al. c) do C.P.M., como acusados tinham sido; (cfr., fls. 226 a 228-v).

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Respondendo, dizem os arguidos que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 231 a 237-v).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação (cfr. fls.226 a 228v dos autos), a magistrada do Ministério Público assacou um erro de subsunção ao Acórdão em questão (cfr. fls.208 a 217v dos autos), traduzido em infringir as disposições no n.°1 do art.340° ex vi na alínea c) do n.°2 do art.336° do Código Penal de Macau (CPM).
Sem embargo do muito respeito pela opinião diferente, inclinamos a entender que o recurso em apreço merece provimento.
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Note-se que num caso em que na devida altura, a arguida exercia funções de croupier num Casino sediado na RAEM e, mancomunado com outros, se apropriou sempre de fichas de jogo pertencentes à sua entidade patronal, que estavam na sua posse, como instrumento de trabalho e como produto do trabalho, o Venerando TUI fixou a iluminativa orientação jurisprudencial de que “Entre o peculato e o abuso de confiança e entre o peculato e o furto simples há uma relação de concurso aparente de especialidade, aplicando-se o tipo legal de peculato, por ser um crime especial pela qualidade do agente.” (vide. Acórdão no Processo n.°42/2016)
A condenação operada pelo Venerando TUI nesse Acórdão torna iniludível que o "croupier" dos casinos exploradores do jogo de fortuna e azar na RAEM se equipara ao funcionário para os efeitos previstos na alínea c) do n.°2 do art.336°do CPM. A nossa leitura semeia-nos a ideia de que a maioria da jurisprudência do TSI vem andando no sentido de encaixar o "croupier" no alcance da alínea c) do n.°2 do art.336° do CPM (vide. veredictos decretados designadamente nos Processos n.°260/2010, n.°828/2011, n.°870/2016 e n.°835/2017).
Subsumindo os factos dados por provados no Acórdão recorrido em conformidade com as sensatas jurisprudências acima citadas, afigura-se-nos que infringe os preceitos no n.°1 do art.340° e na alínea c) do n.°2 do art.336° do CPM a subsunção efectuada pelo Tribunal a quo que procedeu à convolação do crime indicado na Acusação.
Por todo o expendido acima, propendemos pela procedência do presente recurso”; (cfr., fls. 251 a 251-v).

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Nada parecendo obstar, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 210 a 211-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Como se deixou relatado, vem o Ministério Público recorrer do Acórdão prolatado pelo T.J.B., insurgindo-se contra a decisão de condenação dos arguidos como co-autores, e em concurso real, da prática de 4 crimes de “abuso de confiança”, p. e p. pelo art. 199°, n.° 1 e 201°, n.° 2 do C.P.M., na pena (individual) e especialmente atenuada de 7 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única (e individual) de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos.

Considera que o Acórdão recorrido padece do vício de “erro na qualificação jurídico-penal” da matéria de facto dada como provada, pedindo a condenação dos ditos arguidos como co-autores de 4 crimes de “peculato”, p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 e 336°, n.° 2, al. c) do C.P.M., como acusados foram.

Identificada que assim fica a “questão” – apenas de direito – a tratar e decidir no âmbito do presente recurso, vejamos, sendo de consignar desde já que o recurso se nos apresenta como merecedor de provimento.

Com efeito, sem prejuízo do respeito por entendimento em sentido diverso, (cfr., v.g., sobre a questão, L. Cavaleiro de Ferreira in “O jogo, a fraude e o crime”, comunicação apresentada na “10 Conferência Internacional – As Reformas Jurídicas de Macau no Contexto Global – O Direito do Jogo”, B.F.D.U.M., Ano XXII, n.° 43, 2018, pág. 231 e segs.), e como se salienta no douto Parecer do Ministério Público, está a posição do ora Recorrente em sintonia com a maioria das decisões dos vários Tribunais de Macau sobre a matéria, sendo também a que a este Colectivo se mostra de adoptar, valendo, igualmente, a pena aqui realçar o (citado) Acórdão do Vdo T.U.I. de 22.07.2016, Proc. n.° 42/2016, onde, perante factualidade análoga à dada como provada nos presentes autos, e apreciando idêntica questão à agora trazida a esta Instância, considerou o que segue:

“(…).
Pratica o crime de furto “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa” (n.º 1 do artigo 197.º do Código Penal), sendo que se o valor da coisa exceder 150 000 patacas, o crime é qualificado e a pena correspondente a de 2 a 10 anos deprisão [alínea b) do artigo 196.º e alínea a) do n.º 2 do artigo 198.º].
Por outro lado, “Quem se apropriar ilegitimamente de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa” (n.º 1 do artigo 199.º do Código Penal), por estar em causa a prática de crime de abuso de confiança.
Se o valor da coisa exceder 150 000 patacas, o crime de abuso de confiança é qualificado e a penalidade correspondente a de 1 a 8 anos de prisão [alínea b) do artigo 196.º e alínea b) do n.º 4 do artigo 199.º].
Importa distinguir os crimes de abuso de confiança e de furto.
Como explica JORGE FIGUEIREDO DIAS «Abuso de confiança é, segundo a sua essência típica, apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio; é, vistas as coisas por outro prisma … violação da propriedade alheia através de apropriação, sem quebra de posse ou detenção (por isso sendo este crime chamado, em várias ordens jurídicas de diferente linguagem, “apropriação indevida”)».
E «O crime de abuso de confiança ganha autonomia e especificidade perante o crime de furto logo na contemplação do bem jurídico protegido, que é aqui exclusivamente a propriedade. Com efeito, no furto protege-se a propriedade, mas protege-se também e simultaneamente a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel, o que oferece, em definitivo, um carácter complexo ao objecto da tutela. Diferentemente, no abuso de confiança só a propriedade como tal é objecto de tutela e constitui assim integralmente o bem jurídico protegido. Dito com as palavras sugestivas de MAIWALD, diferentemente do que sucede com o ladrão, “ao abusador de confiança poupa-se o esforço de ter de ‘subtrair’ a coisa”».
Finalmente, o Código Penal prevê, a título do crime de peculato, que “O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal” (n.º 1 do artigo 340.º).
Os elementos constitutivos do crime de peculato abrangem os elementos do furto (subtracção ilegítima de coisa móvel alheia) e do abuso de confiança (apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que tenha sido entregue ao agente ou esteja na sua posse).
«Pode dizer-se que o crime de peculato é um crime de furto qualificado em razão da qualidade especial do agente (ou especial função que desempenha, onde se engloba a sua relação com os bens objecto do presente crime) … ou um crime de abuso de confiança qualificado em razão da qualidade de funcionário».
Põe-se, assim, a questão da existência de concurso entre os crimes de peculato e de furto e entre os crimes de peculato e de abuso de confiança.
Entre o peculato e o abuso de confiança há uma relação de concurso aparente de especialidade, aplicando-se o tipo legal de peculato, por ser um crime especial pela qualidade do agente.
Entre o peculato e o furto simples sucede o mesmo, por idênticas razões.
Já quanto ao crime de furto qualificado a relação com o peculato é de concurso aparente de subsidiariedade expressa, não se aplicando a penalidade do peculato, mas a do furto qualificado, mais grave, face ao disposto na parte final do n.º 1 do artigo 340.º do Código Penal”; (tendo-se, a final, confirmado a condenação do arguido dos autos como autor de 1 crime de “peculato”, p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 do C.P.M.).

Ora, sendo – como se disse – também este o entendimento que neste T.S.I. é o maioritariamente assumido, (cfr., v.g., entre outros, o Ac. de 19.01.2017, Proc. n.° 870/2016, de 09.11.2018, Proc. n.° 634/2018 e, mais recentemente, o de 25.07.2019, Proc. n.° 668/2019), e clara se nos afigurando assim a solução que se deixou exposta para a “questão”, necessárias não nos parecem mais alongadas considerações.

De facto, como se consignou no referido acórdão deste T.S.I. de 25.07.2019, Proc. n.° 668/2019:

“Os elementos constitutivos do crime de “peculato” abrangem os elementos do “furto”, (subtracção ilegítima de coisa móvel alheia), e do “abuso de confiança”, (apropriação ilegítima de coisa móvel alheia que tenha sido entregue ao agente ou esteja na sua posse).
Entre o “peculato” e o “abuso de confiança” há uma relação de concurso aparente de especialidade, aplicando-se o tipo legal de peculato, por ser um crime especial pela qualidade do agente.
Um croupier de 1 casino que, no âmbito das suas funções, se apropria de fichas de jogo, incorre na prática do crime de “peculato”, p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 do C.P.M.”.

Dest’arte, nenhum argumento se tendo avançado para uma (eventual) alteração da(s) pena(s) aos arguidos aplicadas, e, atenta a factualidade dada como provada, censura também não merecendo a decisão na parte em questão, resta pois decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso.

Custas pelos arguidos ora recorridos, com a taxa de justiça individual de 4 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 31 de Outubro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa (Vencido por entender de que as sociedades que exploram os jogos de fortuna ou azar deixam de ser em regime de exclusivo, e em consequência, os seus funcionários não podem ser equiparados como funcionários)
Proc. 964/2019 Pág. 12

Proc. 964/2019 Pág. 1