Processo nº 1092/2018
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 17 de Outubro de 2019
Descritores:
-Revisão de sentença
-Divórcio
- Regulação do poder paternal
SUMÁRIO:
I. Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
II. Quanto aos requisitos relativos à competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do nº1, do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
Proc. nº 1092/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
A, do sexo masculino, de nacionalidade chinesa, titular do BIRPM n.º … emitido pela DSI, residente em Macau, na…, contactável por telemóvel n.º …,
Vem instaurar acção especial de revisão de decisões proferidas por tribunais ou árbitros do exterior de Macau, contra:
B, do sexo feminino, de nacionalidade chinesa, titular do BIR da RPC n.º …, com último endereço de contacto na China, na … do Distrito Shunde da Cidade de Foshan da Província de Guangdong (中國廣東省佛山市順德區…), contactável através do telemóvel n.º ….
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Citada, a ré não contestou.
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O digno Magistrado do MP não se opôs ao deferimento da pretensão.
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Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.
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III – Os Factos
1. Em 10 de Julho de 2017, o requerente e a requerida contraíram casamento em Macau.
2. Em 2018, os mesmos divorciaram-se no Tribunal Popular do Distrito Shunde da Cidade de Foshan da Província de Guangdong da China, processo de divórcio n.º (2018)Yue0606MinChu13818.
3. O divórcio foi decretado no supra aludido processo a 12 de Setembro de 2018.
4. A decisão tem o seguinte teor:
Tribunal Popular do Distrito Shunde da Cidade de Foshan da Província de Guangdong
Sentença Cível
N.º (2018)Yue 0606 MinChu 13818
A autora: B, do sexo feminino, nascida a 23 de Julho de 1993, de etnia Han, residente na … do Distrito Shunde da Cidade de Foshan da Província de Guangdong, titular do BIR n.º ....
O réu: A, do sexo masculino, nascido a 24 de Abril de 1991, residente na … do Distrito Shunde da Cidade de Foshan da Província de Guangdong, residente da RAEM, titular do BIRPM n.º ….
O processo de divórcio litigioso entre a autora B e o réu A foi actuado a 24 de Julho de 2018 neste Tribunal, onde o julgamento teve lugar em processo comum de acordo com a lei. A pedido da autora e do réu, o julgamento realizou-se em privado a 13 de Agosto de 2018, estando presentes ambas as partes. O julgamento já acabou.
A autora B pediu ao Tribunal que: 1. fosse decretado, de acordo com a lei, o divórcio entre a autora e o réu; 2. a filha C ficasse com a autora, devendo o réu pagar mensalmente 1500 yuan a título de pensão de alimentos; 3. as custas processuais ficassem a cargo de ambas as partes. São os seguintes os factos e fundamentos: a autora B e o réu A contraíram casamento a 10 de Julho de 2017 em Macau. Após o casamento, o réu recusava viver em casa sob vários pretextos, deixando a mulher grávida sozinha. Ele dizia mentiras à autora, fazendo com que o casal vivesse em situação de separação. Durante a gravidez, a mulher sentia-se desconfortável com o corpo e precisava de cuidados, mas o marido ignorou as suas necessidades. Durante o parto, o réu, com o fim de poupar dinheiro e sem ter em consideração a segurança da mulher e da filha, recusou a cesariana proposta pelo médico, causando o parto distócico e sangramento maior da autora. Após o parto, a autora precisava de tratamento médico por ficar com lesões deterioradas e com diversas sequelas de parto, mas o autor também não ligou. Um mês após o nascimento da filha, o réu mudou a fechadura da casa quando a autora foi, sozinha, ao hospital, fazendo com que ela não conseguisse voltar para casa. O réu também detinha o documento de identificação da filha, o que impediu as necessidades da vida desta. Após o nascimento da filha, o réu visitou-a, no máximo, cinco vezes. O incumprimento da responsabilidade do pai privou a menor do amor paterna, causando impacto negativo no seu crescimento. A falta de cumprimento dos deveres do marido resultou em grandes sofrimentos, físicos e psicológicos, da autora, e no rompimento da relação conjugal. Por as partes terem celebrado o casamento no regime de separação de bens, o casal não tem bem comum. Após o nascimento da filha, o réu abandonou a família, pelo que o casal se encontrou sempre em situação de separação, tendo sido sempre a autora que prestou alimentos à criança. Todas as despesas alimentícias foram pagas pela autora e nada tiveram a ver com o réu, o qual dificultou a vida da autora. Razão pela qual, o réu deve reembolsar a pensão de alimentos do período entre o segundo mês após o nascimento da criança e dia da autuação do processo de acordo com o montante acordado.
O réu A afirmou não se opor aos pedidos da autora.
As partes apresentaram os elementos de prova acerca dos pedidos de acordo com a lei. Este Tribunal procedeu à troca de elementos de prova e à produção da prova. São os seguintes o elemento de prova apresentado pela autora e o parecer do réu:
1. Uma cópia da escritura pública provando o casamento celebrado entre a autora e o réu.
O réu não se opôs.
São os seguintes o elemento de prova apresentado pelo réu e o parecer da autora:
1. O original da certidão de nascimento, o que prova o tempo de nascimento da filha legítima C.
Este Tribunal formou a seguinte convicção: dado que as partes não se opuseram aos elementos de prova apresentados por cada uma, este Tribunal deu-os como provados.
Realizado o julgamento, deu-se como assente a seguinte factualidade: a autora B e o réu A contraíram casamento a 10 de Julho de 2017 em Macau no regime de separação de bens. A filha C nasceu a 23 de Setembro de 2017. Ambas as partes alegaram no julgamento que a filha era criada junto da autora desde o nascimento.
Afigura-se-nos que se trata de divórcio litigioso e, por o réu A ser residente da RAEM, de litígio cível que envolve Macau. Nos termos do artigo 27.º da Lei da República Popular da China sobre a Escolha de Lei para Relações Civis relacionadas com o Estrangeiro, ao divórcio litigioso é aplicável a lei do local do tribunal. Por conseguinte, no caso vertente é aplicável a lei do interior da China.
No que tange à questão de se deve ser decretado o divórcio, nos casos de divórcio litigioso, o critério para decidir deve basear-se no rompimento ou não do relacionamento conjugal. Para determinar se o relacionamento conjugal realmente se rompeu, devem ser tidos em consideração vários aspectos, entre os quais a base matrimonial, o relacionamento do casal após o casamento, o motivo do divórcio, a situação actual da relação conjugal, bem como a possibilidade de recuperação do relacionamento. Ambas as partes afirmaram concordar com o divórcio, dizendo não desejarem continuar o casamento, o qual basta para provar o rompimento do relacionamento do casal. Por isso, este Tribunal decreta o divórcio. No que toca à questão de alimentos da filha C, que nasceu a 23 de Setembro de 2017, porquanto é geralmente mais adequado que as crianças com menos de dois anos de idade vivam com a mãe, afigura-se-nos mais apropriado que a filha fique a residir e seja criada pela autora. Quanto à pensão de alimentos, o réu já afirmou não se opor ao pedido aduzido pela autora, o qual se trata de auto-disposição do seu direito, que é reconhecido por este Tribunal. Acresce que, a autora e o réu acordaram por escrito o regime de separação de bens. Ao abrigo do artigo 19.º, n.º 1 da Lei Matrimonial da RPC, «os cônjuges podem acordar que os bens adquiridos na constância do casamento e os bens prévios ao matrimónio pertençam ao domínio de cada um deles, sejam possuídos em comunhão ou fiquem parcialmente no domínio de cada um deles e parcialmente em comunhão, devendo o acordo ser feito por escrito. Em caso de falta de acordo ou ambiguidade deste, é aplicável o disposto nos artigos 17.º e 18.º do presente diploma.» Durante o julgamento, tanto a autora como o réu alegaram que a filha C era criada pela autora desde o nascimento, e o réu não apresentou prova de ele ter pago a pensão de alimentos. Pelo que é de suportar o pedido da autora no sentido de o réu pagar mensalmente 1500 yuan a título de pensão de alimentos da filha a partir do segundo mês após o nascimento desta, isto é, desde o dia 23 de Outubro de 2017, perfazendo um montante total de 15000 yuan no período compreendido entre 23 de Outubro de 2017 e 22 de Agosto de 2018 (1500yuan por mês x 10 meses). No que respeita ao direito de visita, tendo em consideração a vontade de ambas as partes e o crescimento salubre da menor, o réu pode visitar a filha a qualquer tempo, com hora e local concretos a acordar pelas partes.
Face ao exposto e ao comando do disposto no artigo 19.º, n.º 1, artigo 32.º e artigo 34.º, todos da Lei Matrimonial da RPC, artigo 27.º da Lei da República Popular da China sobre a Escolha de Lei para Relações Civis relacionadas com o Estrangeiro, artigo 2.º dos Diversos Pareceres Específicos do Supremo Tribunal Popular sobre a Abordagem dos Tribunais Populares em Matéria de Alimentos de Criança no Julgamento de Casos de Divórcio, e artigo 92.º, n.º 1 da Interpretação do Supremo Tribunal Popular sobre a Aplicação do Direito Processual Civil da RPC, decide-se:
1. Decretar o divórcio entre a autora B e o réu A; e que,
2. após o divórcio, a filha legítima C fica a residir com a autora, a quem o réu se obriga a pagar, dentro de 10 dias contados a partir do dia de produção de efeitos jurídicos pela presente sentença, o montante de 15000 yuan a título de pensão de alimentos devida durante o período compreendido entre 23 de Outubro de 2017 e 22 de Agosto de 2018 e; a partir de 23 de Agosto de 2018, pagar mensalmente 1500 yuan a título de pensão de alimentos da filha antes do dia 22 de cada mês; o réu tem o direito de visitar a filha a qualquer tempo, com os detalhes específicos (hora, local e modo de vista) a acordar por ambas as partes; a filha poderá escolher se viver com o pai ou com a mãe quando completa 18 anos de idade.
Em caso de incumprimento da obrigação do pagamento dentro do prazo acima referido, é duplicada a taxa dos juros de mora nos termos do artigo 253.º do Direito Processual Civil da RPC.
Fixam-se as custas processuais em 300 yuan (já adiantadas pela autora), a pagar pela autora.
Podem a autora e o réu, querendo, recorrer da presente sentença, nos prazos de 15 dias e de 30 dias, respectivamente, para o Tribunal Popular Intermédio da Cidade de Foshan da Província de Guangdong, com petição de recurso a apresentar junto deste Tribunal, com número de cópia correspondente ao número da contraparte.
Juiz-chefe …
Juiz …
Juiz …
Aos 12 de Setembro de 2018
Escrivão …
5 – A sentença transitou em julgado em 15 de Outubro do mesmo ano.
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IV – O direito
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida; 342/2009 28/34
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública. 2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
Neste tipo de processos não se conhece do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, uma vez que o Tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento, nem da questão de facto, nem de direito.
Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
Ora, os documentos constantes dos autos reportam e certificam a situação de divórcio entre requerente e requerido, que foi decretada por decisão do tribunal competente da RPC.
Revelam, além da autenticidade, a inteligibilidade da decisão que decretou o divórcio entre o requerente e a requerida.
Por outro lado, a decisão em apreço não conduz a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública (cfr. art. 20º e 273º do C.C.).
Assim, cremos estarem reunidos os requisitos de verificação oficiosa do art. 1200º, n.1, als. a) e f), do CPC.
Além destes, não se detecta que os restantes (alíneas b) a e)) constituam aqui qualquer obstáculo ao objectivo a que tendem os autos. Na verdade, o trânsito da decisão já ocorreu em 15/10/2018.
A decisão foi proferida por entidade competente e não versa sobre matéria exclusiva da competência dos tribunais de Macau, face ao que consta do art. 20º do Cód. Proc. Civil.
Também não se vê que tivesse havido violação das regras de litispendência e caso julgado ou que tivessem sido violadas as regras da citação no âmbito daquele processo ou que não tivessem sido observados os princípios do contraditório ou da igualdade das partes.
Posto isto, tudo se conjuga para a procedência do pedido (cfr. art. 1204º do CPC).
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V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder a revisão e confirmar a senteça judicial acima transcrita, proferida pelo Tribunal Popular do Distrito Shunde da cidade de Foshan, da Província de Guandong, Republica Popular da China.
Custas pelo autor.
T.S.I., 17 de Outubro de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1092/2018 10