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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 15 / 2008


Recorrentes: A
B, C, D, E
Recorridas: as mesmas







1. Relatório
   No processo comum colectivo n.º CR1-06-0042-PCC, a arguida F foi julgada e condenada pela prática de um crime de homicídio por negligência previsto nos art.ºs 134.º, n.º 1 do Código Penal e 66.º, n.º 1 do Código da Estrada na pena de um ano e seis meses de prisão e de uma contravenção prevista no art.º 22.º, n.º 1 e punido pelo art.º 70.º, n.º 3, ambos do Código da Estrada na multa de 2000 patacas, convertível em 13 dias de prisão caso não for paga ou substituída por trabalho.
   Em cúmulo, foi condenada nas mesmas penas de prisão e de multa, com a pena de prisão suspensa por dois anos.
   Mais foi condenada na suspensão da validade da licença de condução pelo período de seis meses.
   Em relação ao pedido de indemnização civil formulado pelas mulher e três filhas da vítima do acidente, foram as demandada cíveis, A e a arguida, condenadas a pagar aos sucessores da vítima no valor de MOP$1.064.000,10 e os juros legais contados desde o trânsito da sentença até ao seu pagamento integral, sendo o montante de MOP$1.000.000,00 a cargo da A e o restante da arguida.
   Inconformada com o acórdão de primeira instância, A recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 31 de Janeiro de 2008 proferido no processo n.º 761/2007, o recurso foi julgado parcialmente procedente, baixando o valor de indemnização por perda de salários futuros da vítima de MOP$1.663.200,00 para MOP$1.100.000,00 e mantendo os restantes valores parciais de indemnização. Assim, fixou o valor global de indemnização em MOP$895.040,00, a pagar exclusivamente pela A.
   
   Deste acórdão vem a A interpor recurso agora para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões na motivação do recurso:
   “1. Verifica-se inequivocamente uma insuficiência da matéria de facto constante da acusação e do pedido de indemnização cível que impede a decisão de direito de imputar à arguida qualquer responsabilidade pela produção do acidente em apreço.
   2. Os factos expressos na acusação e no referido pedido de indemnização são meramente conclusivos e não encontram qualquer sustentação na restante matéria de facto dada provada pelo TJB, não podendo, pois, ser minimamente valorados.
   3. Subtraindo esses factos puramente conclusivos, não existe, pois, qualquer outra matéria de facto dada como provada que seja capaz de demonstrar a culpa da arguida condutora.
   4. Não sendo assim possível fazer a ilação judicial de que a arguida tivesse violado o dever de cuidado ou sequer o dever de circular com uma velocidade moderada e adequada, concluindo-se que a mesma não contribuiu minimamente para a ocorrência dos factos.
   5. Inexistindo assim factos demonstrativos da culpa por parte da arguida, o TJB e o TSI não poderiam deixar de concluir pela culpa exclusiva da vítima na produção do acidente em causa em face do circunstancialismo em que o mesmo ocorreu – a vítima saiu por entre dois autocarros parados na faixa esquerda de circulação – e das próprias condições do local – via rodoviária que se pode caracterizar como uma longa recta e uma “via rápida”; existência de uma passagem aérea para peões e ainda de um separador central provisório no meio da mesma via –, determinando assim a consequente absolvição da seguradora (e da arguida) do pedido de indemnização civil.
   6. A decisão recorrida comporta ainda o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto (art.º 400.º, n.º 2, al. a), do CPP), sendo que a matéria de facto provada não é suficiente para a decisão de direito acolhida pelo tribunal recorrido, designadamente no tocante ao juízo de repartição de culpas pela produção de acidente a que chegou, tomando em consideração o disposto no art.º 564.º, n.º 1, do Código Civil.
   7. Pelo que a decisão recorrida não podia deixar de pugnar pela culpa exclusiva de vítima na produção do acidente ora em discussão.
   8. O que, nos termos do art.º 564.º, n.º 2, do Código Civil de Macau seria causa de exclusão de responsabilidade da arguida e, consequentemente, da ré seguradora.
   9. A matéria respeitante à “velocidade” e “distância” alegada em sede das contestações apresentadas pela arguida e pela ora recorrente (cfr., art.ºs 9.º a 13.º, 34.º e 92.º da contestação da arguida e art.ºs 18.º e 30.º da contestação da ora recorrente) em nada contradizem a matéria dada como assente pelo TJB, concluindo-se assim que, ao contrário do decidido pelo TSI, aqueles factos não foram, em bom rigor, dados como não provados pelo tribunal de 1.ª instância.
   10. Neste prisma, dúvidas não restam que o TJB não se pronunciou sobre aquela matéria, não investigando, como lhe competia e dentro dos seus poderes de cognição, aqueles elementos por forma a apurar se era humanamente possível à arguida ter evitado o acidente, procedendo para o efeito à imobilização do veículo, tomando em linha de conta que a vítima proveio de um local encoberto.
   11. O Tribunal recorrido não se socorreu a critérios de equidade para efeitos de cálculo do quantum indemnizatório pela supressão do direito à vida da vítima, concluindo-se assim que o valor de MOP$800.000,00 confirmado pelo TSI, a título de perda do direito à vida, mostra-se excessivo e exagerado, ficando muito acima do normalmente atribuído pelos tribunais de Macau, sobretudo se levarmos em linha de conta a diminuta factualidade provada e relevante quanto à pessoa da vítima para a decisão sobre esta temática.
   12. A decisão recorrida, nesta parte, infringiu claramente os art.ºs 3.º, al. a), 487.º e 489.º, n.º 3, do Código Civil e não respeitou ainda os valores correntes adoptados pela jurisprudência quanto a esta matéria, devendo ser arbitrado no caso sub judice, e a esse título, o valor de MOP$500.000,00, valor perfeitamente adequado e equitativo e que se mostra conforme com aquelas disposições normativas do Código Civil e com os valores correntes adoptados pela jurisprudência relativamente a esta matéria.
   13. Os valores arbitrados pelo TJB, a título de “pretium doloris” da 1.ª demandante e das suas três filhas, mostram-se igualmente excessivos e exagerados, ficando muito acima dos normalmente atribuídos pelos tribunais de Macau, não tendo o Tribunal recorrido, também aqui, lançado mão a critérios de equidade para efeitos de cálculo do respectivo quantum indemnizatório.
   14. Conclui-se ainda que a decisão recorrida nesta parte infringiu, de forma clara, os art.ºs 3.º, al. a), 487.º e 489.º, n.º 3, do Código Civil, não respeitando ainda os valores correntes adoptados pela jurisprudência quanto a esta matéria, entendendo-se que, em face da factualidade alegada considerada provada, os danos referentes a “pretium doloris” da 1.ª demandante e das suas três filhas seriam calculados em montante global não superior a MOP$375.000,00, sendo MOP$150.000,00 para a esposa do falecido e MOP$75.000,00 para cada uma das filhas (art.º 489.º, n.º 2, do Código Civil).
   15. Tomando em linha de conta que a vítima sofreu apenas de dores durante alguns minutos durante o período que mediou entre o acidente e a sua entrada no hospital, altura em que já se encontrava em coma (cfr. relatório médico de fls. 8), haveria que reduzir o montante da indemnização reclamada a título de “pretium doloris” da vítima para cerca de MOP$20.000,00.
   16. Os familiares da vítima (viúva e filhas) não têm direito a qualquer indemnização a título de perda de salários futuros por parte daquele falecido, devendo, pois, decair o montante indemnizatório de MOP$1.100.000,00 fixado pelo Tribunal recorrido, revogando-se nessa parte a sentença posta agora em crise.
   17. Mas mesmo que, por mera hipótese de raciocínio, se entendesse que a indemnização arbitrada fosse a título de alimentos que as demandantes poderiam exigir do falecido, nos termos do n.º 3 do art.º 488.º do Código Civil, não se mostrava possível ao Tribunal arbitrar qualquer indemnização nessa parte na medida em que aquelas não indicaram sequer o montante contributivo prestado pela vítima a favor da sua família.
   18. Por outro lado, condição liminar para que os danos futuros possam ser atendidos é que eles sejam previsíveis e, desde logo, determináveis, nos termos do art.º 558.º, n.º 2, do CCM, havendo que dispôr nos autos de qualquer elemento que estabeleça essa previsibilidade.
   19. Ora, o Tribunal recorrido arbitrou danos futuros por um período de 14 anos à razão de MOP$330,00 por dia, ignorando os critérios de verosimilhança, de probabilidade e de equidade que deveriam ter condicionado a sua pretensão, mormente a idade das filhas da vítima que naquele altura já terão 30, 23 e 22 anos de idade, danos esses que, em hipótese alguma, poderiam revelar-se minimamente previsíveis.
   20. Decisão que colide frontalmente com o estipulado nos art.ºs 488.º, n.º 3, e 558.º, n.º 2, do CCM e que não poderá deixar de ser revogada.
   21. O dever de indemnizar por danos patrimoniais compreende o dano emergente que se define como o prejuízo efectivo causado nos bens ou nos direitos existentes na esfera jurídica do lesado.
   22. No caso sub judice, não houve qualquer prejuízo na esfera patrimonial das demandantes civis no que concerne às despesas médicas (MOP$7.336,00) visto que esses encargos ainda se encontram por liquidar, como reconhece a própria sentença recorrida.
   23. Concluindo-se assim que a decisão recorrida nesta parte infringiu, de forma clara, os art.ºs 477.º e 487.º do Código Civil, devendo a mesma ser igualmente revogada no sentido da recorrente ser absolvida no tocante ao pagamento da quantia em causa, a título de despesas médicas.”
   Pedindo que seja revogada a sentença recorrida e decidido o seguinte:
   - a culpa do acidente deve ser atribuída exclusivamente à vítima e a recorrente absolvida do pedido cível;
   - ou ser a recorrente condenada a pagar às demandantes 30% das quantias de MOP$500.000,00, MOP$375.000,00 e MOP$20.000,00, a título de indemnização, respectivamente, pela perda do direito à vida da vítima e de pretium doloris das demandantes cíveis e da própria vítima, nada havendo mais a pagar a título de danos morais; e
   - ser a recorrente absolvida do pedido de indemnização a título de perda de salários futuros da vítima e de despesas médicas.
   
   As demandantes cíveis apresentaram recurso subordinado, terminando a sua motivação do recurso com as seguintes conclusões:
   “A. As recorrentes consideram que tais danos não apareçam se não ocorresse o presente acidente. Assim, o tribunal de primeira instância atribuiu a indemnização às mesmas com fundamento em que são elas como sucessores legais a receber os salários auferidos pela vítima após a sua morte. Tal indemnização nada se relaciona com o direito a alimentos a que as recorrentes seriam titulares.
   B. Se não concordasse com a referida posição, por cautela se apresenta os seguintes fundamentos:
   1. Não é difícil de chegar a seguinte conclusão: o lesado não podia deixar de contribuir todo o seu vencimento à sua mulher como doméstica para pagar as diversas despesas da vida e da escola de toda a família com cinco membros.
   2. Pelo contrário, entre os factos provados dos autos, nenhum é capaz de provar ou demonstrar que o lesado não se destinava todo o seu vencimento às despesas familiares.
   3. Na falta de factos ou elementos em sentido contrário, é desprovida de fundamento a redução efectuada pelo tribunal superior. Igualmente não se pode descontar subjectivamente, sob pena de interferir demasiado na globalidade dos factos provados.
   4. De facto, o julgador não pode equacionar factos sem ter sido provados, na falta de pressuposto mínimo de facto ou elemento.
   5. Embora o julgador pode fixar os montantes de indemnização de acordo com o princípio de equidade (art.ºs 3.º, al. a), 487.º e 560.º, n.º 5 do Código Civil), deve tomar os factos como base, sob pena de proferir decisão injusta.
   6. Mais ainda, no pedido de indemnização civil, as recorrentes calcularam o montante de indemnização ao referido título até aos 65 anos de idade do lesado. No entanto, o tribunal de primeira instância considerou apenas que o lesado manteria a capacidade de trabalho até 55 anos, para fixar o valor indemnizatório em MOP$1.663.200,00, sem poder negar o bom estado de saúde do lesado antes da sua morte, tendo em conta a característica de o trabalho do lesado precisar de grande esforço físico.
   7. Daí que, em relação aos salários futuros do lesado, o tribunal de primeira instância já procedeu à valoração segundo a matéria de facto provada. Por isso, o tribunal de segunda instância não devia descontar através de valoração sem fundamento.
   8. Assim, o acórdão recorrido violou os art.ºs 558.º, 556.º e 487.º do Código Civil.”
   Pedindo o provimento do recurso e a revogação da decisão do Tribunal de Segunda Instância na parte respeitante à indemnização por perda de salários futuros, com a manutenção do valor fixado pela primeira instância.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Matéria de facto
   Foram dados como provados os seguintes factos pelos Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância:
   “No dia 5 de Outubro de 2004, pelas 9:00 horas da manhã, a arguida conduzia o veículo automóvel ligeiro com a matrícula MI-XX-XX na Avenida da Amizade, procedente do Terminal Marítimo em direcção ao Hotel Lisboa, e circulava na via direita. Ao aproximar-se do poste de iluminação no. 240D04, verificou que o peão G (a vítima identificada na fls. 9) saia de entre dos autocarros parados na via esquerda da faixa de rodagem, atravessando a via do lado esquerdo para o lado direito, e a arguida, devido a alta velocidade em que conduzia, não conseguiu travar o veículo a tempo e embateu naquele peão, projectando-o para a via esquerda da faixa de rodagem.
   Do embate resultou directo traumatismo craneano à vítima, tendo a mesma perdido os sentidos e caído no chão. Para o socorro, foi a vítima transportada para o Hospital Conde de S. Januário, onde confirmou a sua morte às 12:00 do mesmo dia. Os referidos documentos, tais como o relatório médico, certidão de óbito e relatório de autópsia constantes das fls. 8, 27, 28, 52, 53 e 54 do processo fazem parte integral da acusação.
   Na altura do acidente o tempo era bom, o pavimento estava normal e o trânsito era denso.
   O acidente em questão foi devido à infracção da arguida às disposições do n.° 1 do art.° 22.° do Código da Estrada, não prestando atenção ao estado da via e não controlando adequadamente a velocidade do seu veículo, pelo que não conseguiu fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar o obstáculo que lhe surgiu em condições normalmente previsíveis, causando o acidente de que resultou a morte directa da vítima.
   O acto da arguida foi praticado voluntária e criteriosamente, sabendo plenamente que tal acto não é permitido por lei e que fica sujeita às sanções legais.
   A arguida é trabalhadora da função pública, auferindo um vencimento mensal correspondente ao índice 375.
   É divorciada e tem um filho ao seu encargo.
   A arguida não admite o facto acusado e é delinquente primária.
   Na ocorrência do acidente, a vítima tinha 41 anos de idade.
   A demandante F pagou a quantia de MOP$25.786,00 para as despesas funerárias e MOP$345,00 para obtenção dos documentos necessários, incluindo certidão de óbito, certidão de casamento e assento de nascimento.
   Até agora não pagou ao Hospital Conde de S. Januário as despesas médicas no valor de MOP$7.336,00.
   Os factos referidos nos artigos 14.° a 16.°, 24.° a 28.°, 34.° a 37.° e 39.° a 40.° constantes das fls. 150 a 163 dos autos.
   O facto referido no artigo 33.° da contestação da arguida, constante das fls. 202 a 234 dos autos.
   Os factos referidos nos artigos 21.°, 23.° 25.°, 26.°, 27.°, 29.°, 35.° a 37.° da contestação da A constante das fls. 235 a 246 dos autos.
   A vítima era operário do estaleiro de construção, auferindo um salário diário de MOP$330,00.
   Os sucessores legais da vítima requereram apoio judiciário, pedindo que lhes seja dispensado o pagamento de custas e preparos.
   Nos termos do n.° 1 do art.° 1.° e n.° 1, al. f) do art.° 6.° do D.L. No. 41/94/M, foi-lhe concedido o apoio judiciário.
    No dia em que ocorreu o acidente, o veículo automóvel que a arguida conduzia, de matrícula MI-XX-XX, estava coberto com seguro de responsabilidade civil junto da A, através da apólice no. XX-XXXXXX.(cfr. fls. 197 dos autos).”
   
   Factos não provados:
   Os outros factos relevantes constantes do pedido cível e da contestação que não correspondem aos factos provados.
   
   
   2.2 Insuficiência da matéria de facto constante da acusação e do pedido de indemnização civil. Questão nova
   A recorrente começou por alegar que se verifica uma insuficiência da matéria de facto constante da acusação e do pedido de indemnização civil para demonstrar a culpa da arguida, a violação do dever de cuidado ou de circular com velocidade adequada, para lhe imputar qualquer responsabilidade pela produção do acidente, por constarem apenas factos conclusivos. Deviam assim os Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância concluir pela culpa exclusiva da vítima na produção do acidente, determinando a absolvição da seguradora do pedido de indemnização civil.
   
   Sobre a suficiência dos factos para sustentar a acusação e o pedido de indemnização civil é uma questão que, embora seja possível conduzir ao vício de erro de julgamento por enquadramento jurídico incorrecto dos factos provados, a seguradora recorrente nunca tinha posto no anterior recurso para o Tribunal de Segunda Instância, constituindo assim uma questão nova para o presente recurso que não iremos conhecer dela, pois os recursos não se destinam a apreciar questões novas, salvo as de conhecimento oficioso do tribunal.
   
   
   2.3 Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
   A seguradora recorrente continua a invocar o vício da insuficiência da matéria de facto provada para a repartição de culpas, pois não resulta provadas a velocidade aproximada do veículo conduzido pela arguida nem a distância que esta apercebeu da vítima, alegando que apenas resulta do acórdão de primeira instância de que não provados ficaram apenas os restantes factos relevantes não correspondentes aos factos provados. Uma vez que a referida matéria não entrou em conflito com os factos dados como provados pelo Tribunal Judicial de Base, este não investigou nem pronunciou sobre a matéria.
   
   A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada consiste numa lacuna no apuramento da matéria de facto, dentro do objecto do processo, de modo que a matéria de facto provada apresente insuficiente ou incompleta para fundamentar a decisão proferida.
   Para apreciar a questão suscitada, é essencial atender à expressão que anuncia os factos não provados no acórdão de primeira instância: “Os outros factos relevantes constantes do pedido cível e da contestação que não correspondem aos factos provados.”
   Embora seja pouco feliz esta forma de referir os factos não provados, em vez de os indicar com maior clareza, ficou claro que o colectivo do Tribunal Judicial de Base não considerou provados os outros factos relevantes diferentes dos factos provados, em que se inclui a referida matéria alegada pela seguradora recorrente sobre a velocidade e distância, o que implica que o tribunal de primeira instância chegou a investigar tal matéria e concluiu que não ficou provada a respectiva matéria.
   Assim, não havendo lacuna no apuramento da matéria de facto, fica improcedente o vício imputado.
   
   
   2.4 Indemnização por perda do direito à vida
   Para a seguradora recorrente, o valor de indemnização por morte da vítima confirmado pelo tribunal recorrido em MOP$800.000,00 é excessivo e exagerado, ficando muito acima do normalmente atribuído pelos tribunais de Macau. Entende que o valor de MOP$500.000,00 se mostra mais adequado e equitativo.
   
   Prescreve assim o art.º 489.º do Código Civil (CC):
   “1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
   2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de facto e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, ao unido de facto e aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
   3. O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 487.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior.”
   São referidas no art.° 487.° do CC as circunstâncias como o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
   
   De acordo com a matéria de facto provada, a vítima, ao atravessar a Avenida da Amizade, sem atender às situações do trânsito do local, saindo entre os autocarros, foi colido e veio a morrer no hospital três horas depois do acidente.
   No local existe uma passagem aérea para peões e vedação com barreira plástica colocada ao longo da linha longitudinal no central da avenida.
   Na altura do acidente, a vítima tinha 41 anos, era trabalhador de construção civil, auferindo diariamente MOP$330,00. É o único sustento económico de toda a família.
   
   O Tribunal de Segunda Instância tem fixado como valores da perda de vida quantias que variam entre MOP$250.000,00 e MOP$1.100.000,00.
   No processo n.° 6/2007 recentemente julgado pelo Tribunal de Última Instância, foi fixado o tal valor em MOP$900.000,00.
   
   Tendo em conta todas as circunstâncias do acidente, nomeadamente o modo da sua ocorrência, a culpa por parte da vítima e a sua situação pessoal, entendemos que é equitativo o valor fixado em MOP$800.000,00 pelas instâncias.
   
   
   2.5 Indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelas demandantes civis
   A seguradora recorrente também considera que o valor global de MOP$1.000.000,00 atribuído a esse título à mulher (MOP$400.000,00) e às suas três filhas (MOP$200.000,00 para cada uma delas) da vítima mostram-se totalmente excessivos e exagerados, ficando muito acima dos normalmente atribuídos pelos tribunais de Macau, em violação dos art.°s 3.°, al. a), 487.° e 489.°, n.° 3 do CC. Entende que os danos referentes a pretium doloris das demandantes civis seriam calculados em montante global não superior a MOP$375.000,00, sendo MOP$150.000,00 para a mulher da vítima e MOP$75.000,00 para cada uma das filhas.
   
   Segundo os factos provados, verifica-se especialmente o seguinte:
   A mulher da vítima não trabalhava por ter problemas de saúde e fica em casa a cuidar as três filhas.
   A família vive em situação de carência económica.
   A vítima mantinha boa relação com a família.
   Na altura do acidente, as filhas tinham 8 a 16 anos de idade.
   A mulher e as filhas da vítima sofreram bastante com a morte desta.
   
   Face a estas circunstâncias, é mais equilibrado fixar os valores de indemnização a esse título em MOP$300.000,00 para a mulher da vítima e MOP$150.000,00 para cada uma das suas filhas, no total de MOP$750.000,00.
   
   
   2.6 Indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima
   Em relação a esta parte de indemnização, foi fixado o valor em MOP$50.000,00 pelas instâncias. A seguradora recorrente considera tal montante excessivo e deve ser reduzido a cerca de MOP$20.000,00, porque esta indemnização teve por base um período de três horas em que supostamente a vítima sofreu de dores e a vítima deu entrada no hospital escassos minutos após o acidente já em estado de coma.
   
   Dos factos provados resulta que a vítima era ainda consciente depois do acidente e sofreu grande dor.
   É de manter, portanto, o valor de MOP$50.000,00 fixado para os danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes da sua morte.
   
   
   2.7 Indemnização por perda de salários futuros da vítima
   A seguradora recorrente entende que os familiares da vítima não têm direito a qualquer indemnização a título de perda de salários futuros da vítima. Mesmo que se entendesse que a indemnização arbitrada fosse a título de alimentos que as demandantes civis poderiam exigir do falecido nos termos do art.° 488.°, n.° 3 do CC, o tribunal não podia arbitrar qualquer indemnização nesta parte por não ter sido indicado o montante contributivo prestado pela vítima à favor da sua família. E sublinhou que devia descontar à indemnização eventualmente fixada a esse título os subsídios recebidos do Instituto de Acção Social.
   
   Em recurso subordinado, os demandantes civis continuam a sustentar que teriam direito a receber indemnização pelos salários que a vítima deixou de poder receber após a sua morte. E mais alega que a vítima contribuía todo ou pelo menos a maior parte do seu salário para o sustento da família.
   
   Em relação à possibilidade de atribuir indemnização por lucros cessantes que a vítima obteria após a sua morte, o Tribunal de Última Instância já pronunciou sobre esta questão no processo n.° 7/2004 no sentido de que com a morte, a vítima não adquire os vencimentos que viria presumivelmente a auferir na sua vida activa, a título de lucros cessantes, pois a morte faz extinguir a personalidade jurídica.
   Na realidade, após a morte da vítima, esta nunca pode adquirir mais direitos por cessação de personalidade jurídica, tal como os salários que deixa de receber por causa da sua morte.
   Assim, as demandantes civis não podem obter indemnização por perda de salários futuros da vítima.
   
   Apenas por meio do disposto no art.° 488.°, n.° 3 do CC a lei garante o direito a indemnização aos que podiam exigir alimentos ao lesado ou àqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
   No presente caso, todas as demandantes civis, como cônjuge e descendentes da vítima, têm direito a alimentos a prestar por esta (art.º 1850.º, n.º 1, al.s a) e b) do CC).
   
   No que respeita à questão em apreço, da matéria apurada resulta apenas que a vítima era trabalhador de construção civil, auferindo salário diário de MOP$330,00 e é o único sustento económico de toda a família.
   É de atender as idades das demandantes civis, a dificuldade da mulher da vítima de trabalhar por causa do estado de saúde e da necessidade de cuidar as filhas menores, e o montante de subsídios do Instituto de Acção Social que a mulher da vítima podia receber.
   Ponderadas todas as circunstâncias, não é nada de excessivo o valor de indemnização nesta parte fixado em MOP$1.100.000,00 pelo tribunal recorrido.
   
   
   2.8 Indemnização por despesas médicas
   Quanto às despesas médicas de MOP$7.336,00 que não foram ainda liquidadas pelas demandantes civis, a seguradora alega que estas não têm legitimidade para reclamar o pagamento deste valor por falta de prejuízo efectivo.
   
   Não se suscita dúvidas de que tais despesas médicas resultam do acidente em causa e o responsável deste deve suportá-las, tal como acontece com as despesas de funeral, por exemplo.
   A falta de liquidação destas despesas pelas demandantes civis não implica que estas ficariam isentas do seu pagamento. De qualquer modo, provada a culpa de agente, A está sempre obrigada a proceder ao seu pagamento, se não forem liquidadas pelo lesado, ou directamente para o hospital, ou indirectamente através de indemnização ao ofendido, ao abrigo dos termos do seguro.
   Assim, as despesas médicas podem ser calculadas como parte de indemnização a fim de proceder ao seu pagamento.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em:
   - Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela A, alterando os valores de indemnização por danos não patrimoniais para MOP$300.000,00 para a mulher da vítima e MOP$150.000,00 para cada uma das suas filhas, no total de MOP$750.000,00, mantendo os restantes valores de indemnização fixados.
   Atendendo a repartição da culpa, é a Companhia condenada a pagar o valor total de MOP$820.040,10 às demandantes civis.
   - Negar provimento ao recurso subordinado.
   Custas pelas recorrentes em proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário já concedido.
   Fixa-se os honorários do patrono nomeado das demandantes civis em MOP$2.000,00.
   
   
   Aos 27 de Junho de 2008.




Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

Processo n.° 15 / 2008 1