Processo n.º 116/2019
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: Chefe do Executivo da RAEM
Recorridos: A e B
Data da conferência: 29 de Novembro de 2019
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Assuntos: - Fundamentação do acto administrativo
- Insuficiência de fundamentação
SUMÁRIO
1. Nos termos dos art.ºs 114.º e 115.º do CPA, a Administração deve fundamentar os seus actos administrativos, através da sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, sendo que equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
2. Para haver falta de fundamentação, não basta qualquer obscuridade, contradição ou insuficiência dos fundamentos invocados, sendo necessário ainda que eles não possibilitem um “esclarecimento concreto” das razões que levaram a autoridade administrativa a praticar o acto.
3. A fundamentação deve ter conteúdo adequado a suportar formalmente o acto administrativo, capaz de revelar a ponderação dos factos e pressupostos legais determinantes para a tomada da decisão.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A e B, melhor identificados nos autos, interpuseram recurso contencioso do despacho do Senhor Chefe do Executivo, de 26 de Setembro de 2017, que indeferiu o seu pedido de fixação de residência temporária na RAEM.
Por Acórdão proferido em 13 de Junho de 2019, o Tribunal de Segunda Instância decidiu julgar procedente o recurso, anulando o despacho recorrido por insuficiência de fundamentação.
Deste Acórdão vem agora o Senhor Chefe do Executivo recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O acórdão do TSI de 13.06.2019, tirado nos autos do recurso contencioso n.º 1065/2017, errou ao anular o acto administrativo por insuficiência da fundamentação;
2. Em primeiro lugar, o referido acórdão errou ao julgar que o órgão administrativo tinha o dever de se pronunciar sobre um mero argumento produzido pelos interessados no procedimento administrativo em abono da sua pretensão;
3. Só existe dever de decisão (ou, se preferirmos, dever de pronúncia) sobre questões jurídicas, não sobre meros argumentos utilizados para defender determinada solução para a questão jurídica (neste caso, para defender o deferimento do requerimento);
4. A questão jurídica sobre a qual o órgão administrativo tinha de se pronunciar era a da relevância ou irrelevância, para efeitos do RA 3/2005, do investimento em causa;
5. Essa questão foi devidamente apreciada e decidida pelo despacho do CE impugnado no recurso contencioso;
6. O despacho do CE não tinha que incluir na sua fundamentação qualquer pronúncia sobre cada um dos argumentos apresentados pelos interessados no procedimento administrativo;
7. Em segundo lugar, o tribunal a quo errou também ao equiparar a suposta “omissão de pronúncia” a insuficiência da fundamentação do acto administrativo;
8. Dever de decisão e dever de fundamentação são coisas diferentes, e a violação de cada um desses deveres gera vícios igualmente diferentes;
9. A “omissão de pronúncia”, se se tivesse verificado, teria gerado violação do dever de decisão, ou do direito de audiência, mas nunca violação do dever de fundamentação;
10. O acto administrativo que foi impugnado perante o TSI está devidamente fundamentado, contendo os motivos de facto e de direito da decisão, e sendo facilmente compreensível pelo destinatário normal;
11. Entre os fundamentos do acto administrativo não é suposto incluir qualquer pronúncia sobre os argumentos invocados pelos particulares a favor do seu requerimento;
12. Além disso, aquilo que não é motivo de uma decisão administrativa não faz parte da respectiva fundamentação;
13. O tipo de culinária oferecida pelo restaurante dos particulares não pesou na motivação do órgão requerido, pelo que não havia que o incluir na fundamentação do acto;
14. O RA 3/2005 incumbe o CE de julgar discricionariamente o que é, e o que não é, investimento relevante para efeitos de concessão de autorização de residência;
15. Compreender a fundamentação é coisa diferente de concordar com ela, sendo a concordância com a fundamentação irrelevante para aquilatar da sua suficiência;
16. Os erros acima apontados consubstanciam violação pelo tribunal a quo dos art.ºs 11.º, n.º 1, 100.º, 114.º e 115.º do CPA.
Não contra-alegaram os recorridos.
E o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, no sentido de procedência do recurso jurisdicional, com revogação do acórdão recorrido.
2. Factos Provados
Foram apurados nos autos os seguintes elementos com interesse para a decisão da causa:
1) - Em 19 de Outubro de 2015, os ora recorridos requereram, junto do IPIM, autorização de fixação de residência temporária na RAEM, com fundamento em investimento relevante (Processo n.º PXXXX/2015).
2) - No âmbito desse procedimento, foi o 1.º recorrido notificado, em 20 de Outubro de 2016, para exercer o seu direito à Audiência Prévia, dado que “Em relação aos documentos entregues foi feita uma análise e...” concluiu o IPIM que “...a situação poderia ser desfavorável ao pedido de autorização de residência temporária...” (cfr. Documento n.º 2).
3) - O recorrido apresentou a sua Audiência Escrita (cfr. Documento n.º 3), a 28 de Outubro de 2016, onde rebateu os argumentos invocados pelo IPIM no Oficio do IPIM de 20 de Outubro de 2016, demonstrando que o seu investimento era (e é) relevante para a RAEM, porquanto não existe na Região outro restaurante a fornecer pratos gastronómicos da Região do Algarve, elaborados com os condimentos próprios e típicos desta região de Portugal, alegando ainda:
a) - Pelo que não poderiam proceder os argumentos invocados pelo IPIM,
b) - Reiterando, a final, o deferimento do pedido de autorização de residência temporária.
c) - De notar é o facto de o processo de autorização de residência temporária junto do IPIM ter sido iniciado em 19 de Outubro de 2015 e, volvidos mais de 2 anos, tal procedimento ainda não ter encontrado o seu desfecho.
4) - Em 19 de Outubro de 2017, foi o 1.º recorrido notificado do Despacho de Indeferimento do Pedido de Fixação de Residência Temporária (cfr. Documento n.º 4), cujo teor aqui se transcreve:
O interessado seguinte, nos termos da alínea 2 do artigo 1.º do RA n.º 3/2005, requer a autorização de residência temporária na RAEM para si e para o membro do seu agregado familiar, por meio do investimento relevante. O interessado fica, através da transmissão da quota, titular de 99% das quotas de uma companhia que se dedica a negócios relativos a comidas, snack-food, bar, restaurante e os estabelecimentos do tipo semelhante. Nos termos do projecto do investimento da Companhia apresentado pelo interessado, o montante do orçamento do investimento do ano 2016 é de MOP 3,379,724.37, porém, considerando que já existem na RAEM as actividades económicas referidas e o investimento não contribui notavelmente para promoção da diversificação económica de Macau, o investimento referido não deve ser qualificado como investimento relevante de particular interesse para a RAEM, por esta razão, indefere-se o requerimento de autorização da residência temporária.
N.º
Nome
Relação
1
A
Requerente
2
B
Cônjuge
O Chefe do Executivo
26 de Setembro de2017”
3. Direito
Com o acórdão recorrido, foi anulado o acto administrativo impugnado por insuficiência de fundamentação.
Alega a entidade recorrente que o acórdão ora recorrido errou ao julgar que o órgão administrativo tinha o dever de se pronunciar sobre um mero argumento produzidos pelos interessados no procedimento administrativo em abono da sua pretensão e ao equiparar a suposta “omissão de pronúncia” a insuficiência da fundamentação do acto administrativo, erros estes que consubstanciam violação dos art.ºs 11.º n.º 1, 100.º, 114.º e 115.º do CPA.
A questão suscitada prende-se tão só com a fundamentação do acto administrativo impugnado.
Nos termos do art.º 114.º do CPA, a Administração tem o dever de fundamentar os actos administrativos por si praticados.
E dispõe o art.º 115.º o seguinte:
Artigo 115.º
(Requisitos da fundamentação)
1. A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas que constituem neste caso parte integrante do respectivo acto.
2. Equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
3. Na resolução de assuntos da mesma natureza, pode utilizar-se qualquer meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que tal não envolva diminuição das garantias dos administrados.”
Daí decorre que a Administração deve fundamentar os seus actos administrativos, através da sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, sendo que equivale à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
A lei exige que a fundamentação seja congruente, clara e suficiente.
E para haver falta de fundamentação, não basta qualquer obscuridade, contradição ou insuficiência dos fundamentos invocados, sendo necessário ainda que eles não possibilitem um “esclarecimento concreto” das razões que levaram a autoridade administrativa a praticar o acto.1
Sobre o dever de fundamentação, o Tribunal de Última Instância foi chamado por várias vezes para se pronunciar, tendo expendido o seguinte entendimento:2
“A fundamentação consiste num discurso aparentemente capaz de fundar uma decisão administrativa, um discurso ou juízo justificativo.3
A exigência legal da menção expressa dos fundamentos fácticos e jurídicos da decisão administrativa corresponde aos diversos objectivos que demonstram a sua indispensabilidade não só para os interesses dos particulares, mas também para os públicos.”
E “é reconhecida à obrigatoriedade da fundamentação uma dimensão formal autónoma que se apresenta como uma condição de validade dos actos administrativos, em termos de que a sua falta pode ter por consequência a anulação deles, mesmo que não contenham, ou independentemente de conterem ou não, vícios substanciais.4
Como um discurso justificativo, a fundamentação deve ter conteúdo adequado a suportar formalmente o acto administrativo, capaz de revelar a ponderação dos factos e pressupostos legais determinantes para a tomada da decisão”.
Expostas tais considerações, é de voltar ao caso dos presentes autos.
Constata-se no acórdão recorrido que, relativamente ao vício de falta (ou insuficiência) de fundamentação da decisão e após uma transcrição das alegações feitas pelo recorrente (ora recorrido) na audiência escrita, o Tribunal recorrido fez consignar o seguinte:
“Realce-se que os Recorrentes alegaram que pretendiam montar um restaurante de comida típica do Algarve, se bem que único restaurante especializado para esta comida, em Macau ou até na Ásia. Eis a particularidade ou singularidade do caso, o que deve ser objecto de análise por parte da entidade competente. Mas, não assim aconteceu.
Como sobre este ponto a Entidade Recorrida não chegou a pronunciar-se nem tocou nele, o que não deixa de constituir uma situação de “omissão de pronúncia”, ou seja, a Entidade Recorrida não analisou todos os fundamentos invocados pelos Recorrentes, e como tal há insuficiência de fundamentação, o que impõe necessariamente à anulação da decisão ora posta em crise, por violar os artigos 11º/1, 98º, 114º/-c) e 124º do CPA.”
Na tese do acórdão recorrido, a entidade ora recorrente não analisou todos os fundamentos invocados pelos recorridos, não se pronunciando sobre a particularidade ou singularidade da pretensão dos recorridos que queriam montar um restaurante de comida típica do Algarve, único restaurante especializado para esta comida, em Macau ou até na Ásia.
Desde logo, é de salientar que, tal como afirma a entidade recorrente, não se impõe à Administração o dever de se pronunciar sobre todos os argumentos deduzidos pelos interessados para fundamentar a sua pretensão, o importante, e necessário, é que os órgãos administrativos emita devidamente pronúncia sobre todos os assuntos que lhes sejam apresentados pelos particulares, apreciando as questões suscitadas e tomando decisão (art.º 11.º n.º 1 do CPA).
Os “assuntos” sobre os quais tem a Administração o dever de pronúncia são diferentes de “argumentos” invocados pelos interessados, pois para fundamentar a sua pretensão, de ver resolvidos os “assuntos”, podem os interessados deduzir vários argumentos. Equivalem os “assuntos” a “questões” submetidas aos órgãos administrativos para apreciação e decisão.
No caso ora em discussão, o assunto posto à decisão da Administração é a pretensão de autorização de residência temporária, formulada pelos recorridos com fundamento em investimento relevante.
Nos termos das al.s 1) e 2) do art.º 1.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, podem requerer autorização de residência temporária na RAEM os titulares de projecto de investimento ou os titulares de investimentos “que sejam considerados relevantes para a Região Administrativa Especial de Macau”.
Constata-se no despacho sindicado nos presentes autos que, tomando em consideração o tipo da actividade da empresa de que o recorrido é titular de 99% das quotas e que se dedica a negócios relativos a comidas, snack-food, bar, restaurante e os estabelecimentos do tipo semelhante, o montante do investimento orçamental para o ano de 2016 e que “já existem na RAEM as actividades económicas referidas e o investimento não contribui notavelmente para promoção da diversificação económica de Macau”, a entidade recorrente concluiu pela não qualificação do investimento feito pelo recorrido como investimento relevante de particular interesse para a RAEM, pelo que indeferiu a pretensão de autorização da residência temporária dos recorridos.
Ora, é verdade que a entidade recorrida não tocou na “tipicidade” do restaurante de comida algarvia, que alegadamente até é o único restaurante de comida da Região do Algarve em Macau. No entanto, não se nos afigura que tal é mesmo necessário até que conduz à anulação da decisão administrativa por insuficiência de fundamentação.
Tal como afirma o Digno Magistrado do Ministério público no seu parecer, a fundamentação, enquanto exigência de forma, basta-se com uma sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, sendo-lhe alheia a obrigatoriedade de ponderação de todos os argumentos do administrado, bem como a exigência da exactidão e correcção dos fundamentos no plano substantivo.
Mesmo que a não referência à “particularidade ou singularidade” do caso constitua uma situação de “omissão de pronúncia”, na medida em que a Administração não analisou um dos argumentos deduzidos pelo interessado, tal omissão não implica a anulação do acto por vício de fundamentação.
Na nossa leitura, tal omissão revela precisamente a atitude da Administração, de considerar não relevante o argumento em causa, já que, como é bem de compreender, mesmo considerando a tipicidade da comida algarvia, o restaurante que o recorrido pretende montar não contribui muito para a “diversificação económica” da RAEM, não obstante a sua contribuição, isso sim, para a diversificação de comidas na área de restauração.
Acrescentando, é de dizer que, com a abordagem da particularidade do caso concreto respeitante à tipicidade da comida que o restaurante pretende prestar, ficaria sem dúvida mais bem fundamentado e perfeito o despacho posto em causa; a falta de tal abordagem não implica, no entanto, a anulabilidade do despacho em causa, cuja fundamentação satisfaz devidamente a exigência legal.
Reitere-se que, para haver falta de fundamentação, não basta qualquer insuficiência dos fundamentos invocados, sendo necessário ainda que eles não possibilitem um “esclarecimento concreto” das razões que levaram a autoridade administrativa a praticar o acto.
E a fundamentação deve ter conteúdo adequado, capaz de revelar a ponderação dos factos e pressupostos legais determinantes para a tomada da decisão.
Com a fundamentação da entidade recorrida, que revela os factores determinantes tomadas em atenção, ficam concretamente esclarecidas as razões da sua decisão.
E qualquer destinatário normal fica a saber não só o sentido decisório do despacho que indeferiu o pedido de autorização de residência temporária mas também os fundamentos que levaram a entidade recorrida a tomar a decisão.
Não se vislumbra o vício de insuficiência de fundamentação do acto administrativo.
É de julgar procedente o recurso jurisdicional.
4. Decisão
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao presente recurso jurisdicional, revogando-se o acórdão recorrido e negando-se provimento ao recurso contencioso.
Sem custas pela isenção da entidade recorrente.
Macau, 29 de Novembro de 2019
Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
1 Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho, Código do Procedimento Administrativo de Macau, anotado e comentado, p. 639 e 640.
2 Cfr. Ac. do TUI, de 6 de Dezembro de 2002, Proc. n.º 14/2002.
3 Cfr. Vieira de Andrade, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1991, p. 228 a 232.
4 Cfr. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 27.
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Processo n.º 116/2019