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Processo nº 897/2019(I)
(Autos de recurso penal)
(Incidente)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. No âmbito dos presentes Autos de Recurso Penal proferiu o ora relator a seguinte “decisão sumária”:

“Relatório

1. A, (1°) arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenado como co-autor material e em concurso real da prática de 2 crimes de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelo art. 14° e 13°, n.° 1 da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão cada, e 2 outros de “sequestro”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 1 ano e 9 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos de prisão, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 6 anos; (cfr., fls. 211 a 218-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu, imputando à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”, pugnando pela sua absolvição quanto ao crime de “sequestro” e alegando que a sua conduta devia ser considerada como a prática de um “crime continuado” quanto ao crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, com a consequente redução da pena; (cfr., fls. 255 a 258-v).

*

Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 260 a 262-v).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Recorre A do acórdão exarado a fls. 211 e seguintes dos autos, que o condenou na pena conjunta de 4 anos de prisão, em resultado do cúmulo jurídico das penas parcelares de 2 anos e 9 meses aplicadas por cada um dos dois crimes de usura com exigência de documentos e de 1 ano e 9 meses por cada um dos dois crimes de sequestro de que ia acusado.
Imputa ao acórdão erro notório na apreciação da prova relativamente aos crimes de sequestro e erro de direito quanto ao número de crimes de usura com exigência de documentos.
Na sua minuta de resposta, o Ministério Público na primeira instância pronuncia-se pela improcedência do recurso, rebatendo inteiramente os argumentos recursivos do recorrente, muito mais não havendo a acrescentar a quanto disse.
Vejamos quanto ao erro notório.
Diz o recorrente que o tribunal considerou que ele cometeu os crimes de sequestro com base nas declarações das ofendidas e com base no vídeo, mas que deste resulta que, pelas 12:16:50 horas do dia 17 de Abril de 2018, as ofendidas não estavam no interior do quarto 707 do Hotel Grand Hyatt, mas no corredor exterior contíguo a esse quarto. E, a partir desta afirmação, entende que não ficou provado que as ofendidas foram perturbadas na sua liberdade, pelo que deveria ter sido absolvido dos crimes de sequestro, o que só não aconteceu devido ao erro notório na apreciação da prova.
O recorrente está equivocado quando considera que o facto de as ofendidas terem sido vistas no corredor significa que elas não estavam coarctadas na sua liberdade de locomoção, enquanto liberdade de deslocação incondicional ou de mudança de local. Tal como está equivocado quando pretende extrair idêntica conclusão do facto de elas, ofendidas, poderem utilizar o telemóvel. É evidente que ao serem conduzidas do casino para os quartos de hotel, primeiro para o quarto 1072 do Hotel COD, depois para o quarto 707 do Hotel Grand Hyatt, as ofendidas tiveram que passar por espaços exteriores aos quartos, o que não significa, nem pouco mais ou menos, que caminhavam e se dirigiam aos quartos de livre vontade, sendo pois abusiva a conclusão que o recorrente retira da circunstância de as ofendidas terem sido vistas no corredor contíguo a um desses quartos. Também a circunstância de as ofendidas terem usado telemóvel não significa que estivessem livres e no gozo do seu direito de locomoção e deslocação, pois é sabido que os sequestradores toleram o uso de telemóveis, e chegam a instar as vítimas a utilizarem-nos, como forma de lograrem atingir os objectivos de cobrança de dívidas. De resto, como a Exm.a colega vincou na sua resposta, as ofendidas não estavam desacompanhadas no corredor, continuando sim a ser guardadas à vista.
Improcede, pois, este fundamento do recurso, sem necessidade de mais aprofundados argumentos.
No que toca ao erro de direito relativamente ao número dos crimes de usura, pretende o recorrente que os factos dados como provados apontam para um crime continuado.
O artigo 29.°, n.° 2, do Código Penal, dispõe que constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. Pois bem, vista a factualidade apurada, parece óbvio que não está caracterizado o indispensável quadro de uma mesma solicitação exterior necessário à diminuição considerável da culpa. O recorrente começou por abordar as ofendidas, propondo-se emprestar-lhes dinheiro para jogo, posto o que, combinadas as condições do negócio e assinado um documento de dívida, lhes emprestou HKD $100,000.00 cuja aplicação posteriormente fiscalizou, com a ajuda do outro arguido, nomeadamente com vista à cobrança de juros. Esgotado tal montante, que as ofendidas perderam no jogo, o recorrente propôs-se emprestar-lhes uma nova quantia, desta feita de HKD $50,000.00, o que levou a nova negociação e à assinatura de uma nova declaração de dívida.
Temos, pois, que, em ambas as situações se desenrolou um processo de motivação e de execução, o que afasta a hipótese de crime continuado e justifica a condenação por duas infracções. Não se vislumbra, atendendo à posição do arguido e recorrente, que é a que interessa para efeitos do preenchimento dos elementos do crime continuado, onde possa residir aquele quadro de uma mesma solicitação exterior susceptível de diminuir acentuadamente a culpa, o que era de todo imprescindível, nos termos do artigo 29.°, n.° 2, do Código Penal, para se poder falar de crime continuado. Parece, até, que o recorrente está a tentar inverter os papéis, colocando-se no lugar das vítimas, estas, sim, aliciadas a pedir empréstimo para matar o vício do jogo.
Improcede também este fundamento.
Ante o exposto, o nosso parecer vai no sentido de ser negado provimento ao recurso”; (cfr., fls. 319 a 320-v).

*

Em sede de exame preliminar constatou-se da “manifesta improcedência” do presente recurso, e, nesta conformidade, atento o estatuído no art. 407°, n.° 6, al. b) e 410°, n.° 1 do C.P.P.M., e tendo-se presente que a possibilidade de “rejeição do recurso por manifesta improcedência” destina-se a potenciar a economia processual, numa óptica de celeridade e de eficiência, visando, também, moralizar o uso (abusivo) do recurso, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 213 a 214-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como co-autor material e em concurso real da prática de 2 crimes de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelo art. 14° e 13°, n.° 1 da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão cada, e 2 outros de “sequestro”, p. e p. pelo art. 152°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 1 ano e 9 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos de prisão, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo por 6 anos.

É de opinião que a decisão recorrida padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” quanto ao crime de “sequestro”, alegando também que a sua conduta devia ser considerada como a prática de um “crime continuado” quanto ao crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”.

Evidente se apresenta porém a improcedência do presente recurso.

Vejamos.

No que toca ao “erro notório na apreciação da prova”, temos entendido que o mesmo apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.10.2018, Proc. n.° 803/2018, de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018 e de 07.03.2019, Proc. n.° 93/2019).

Como também já tivemos oportunidade de afirmar:

“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 24.01.2019, Proc. n.° 905/2018, de 21.02.2019, Proc. n.° 34/2019 e de 06.06.2019, Proc. n.° 476/2019).

In casu, e como é evidente, nenhum “erro” – muito menos notório – existe.

Com efeito, o (mero) facto de no vídeo, as ofendidas surgirem a andar no corredor do hotel, não implica que não estivessem “sob a guarda” do arguido, a serem conduzidas para o quarto onde estiveram sequestradas, nenhuma censura merecendo assim a decisão de que, já aí, estavam, como elas próprias o declararam, “privadas da sua liberdade”.

Assim, mais não é preciso dizer para se ver de falta de razão do recorrente na parte em questão.

Continuemos, passando-se para a alegada continuação criminosa no que toca ao crime de “usura”.

Nos termos do art. 29° do C.P.M.:

“1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

E como já tivemos oportunidade de consignar:

“A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir: a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou resolução inicial; b) um só crime, na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores”; (cfr. v.g., o Ac. da Rel. de Porto de 25.07.1986, in B.M.J. 358°-267, aqui citado como mera referência, e os recentes Acs. do ora relator de 23.11.2017, Proc. n.° 810/2017, de 12.07.2018, Proc. n.° 534/2018 e de 11.04.2019, Proc. n.° 289/2019).

Do mesmo modo, Maia Gonçalves, (referindo-se a idêntico artigo do C.P. Português), considera que com o preceito em questão – o art. 30° – se perfilha “o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime. (...) É claro que embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura (dolo ou negligência). Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verificam um ou mais crimes, e se sob a forma dolosa ou culposa. Isto se deduz do uso do advérbio efectivamente e dos princípios basilares sobre a culpa”; (vd., “C.P.P. Anotado”, 8ª ed., pág. 268).
“Posto que para que uma conduta seja considerada delituosa se torna necessário que para além de antijurídica seja, igualmente, culposa, a culpa apresenta-se – assim – como elemento limite da unidade da infracção, pois que sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes o mesmo tipo legal de crime se torna aplicável, de onde se nos depare uma pluralidade de infracções.
Assente, então, que sempre que se verifique uma pluralidade de resoluções criminosas, se verifica uma pluralidade de juízos de censura, a dificuldade residirá, apenas, em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação criminosa”.

Isto é, o critério teleológico (e não naturalístico) adoptado pelo legislador na destrinça entre unidade e pluralidade de infracções, pressupõe o juízo de censurabilidade, pelo que haverá tantas infracções quantas as vezes que a conduta que o preenche se tornar reprovável.

No mesmo sentido, e em relação ao Código de 1886 afirmava já E. Correia que:

“Se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídicos e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções. Mas porque a acção, além de antijurídica, tem de ser culposa, pode acontecer que uma actividade subsumível a um mesmo tipo mereça vários juízos de censura. Tal sucederá no caso de à dita actividade corresponderem várias resoluções, no sentido de determinações de vontade, de realização do projecto criminoso”, e que “certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime e às quais presidiu pluralidade de resoluções devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam considerável diminuição da culpa. Tal sucederá, quando a repetição da actividade for facilitada, de modo considerável, por uma disposição exterior das coisas para o facto”; (cfr., “Direito Criminal”, Vol. 2, págs. 201, 202, 209 e 210, e ainda em “Unidade e Pluralidade de Infracções”, pág. 338).

Por sua vez, e tratando mais especificamente da matéria do “crime continuado”, também já teve este T.S.I. oportunidade de afirmar que:

“O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 12.04.2018, Proc. n.° 166/2018, de 11.10.2018, Proc. n.° 716/2018 e de 30.05.2019, Proc. n.° 453/2019).

Também por douto Acórdão de 24.09.2014, Proc. n.° 81/2014, (e com abundante doutrina sobre a questão), voltou o Vdo T.U.I. a afirmar que:

“O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”, e que,
“Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior”.

E, como – bem – se nota no referido Parecer do Ministério Público e vale a pena aqui realçar: “O recorrente começou por abordar as ofendidas, propondo-se emprestar-lhes dinheiro para jogo, posto o que, combinadas as condições do negócio e assinado um documento de dívida, lhes emprestou HKD $100,000.00 cuja aplicação posteriormente fiscalizou, com a ajuda do outro arguido, nomeadamente com vista à cobrança de juros. Esgotado tal montante, que as ofendidas perderam no jogo, o recorrente propôs-se emprestar-lhes uma nova quantia, desta feita de HKD $50,000.00, o que levou a nova negociação e à assinatura de uma nova declaração de dívida.
(…)”.

Resulta assim claramente que foi o próprio arguido a “propor” um novo empréstimo, como que criando ele próprio as condições para o cometimento de um novo crime, não se nos apresentando assim viável a consideração de que verificados estão os necessários pressupostos para se considerar que a sua conduta integra a reclamada “continuação criminosa”.

Decisão

4. Em face do exposto, decide-se rejeitar o presente recurso.

Pagará o arguido a taxa de justiça que se fixa em 4 UCs, e como sanção pela rejeição do recurso o equivalente a 3 UCs; (cfr., art. 410°, n.° 3 do C.P.P.M.).

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
(…)”; (cfr., fls. 322 a 331-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, veio o recorrente reclamar do decidido, alegando que o seu recurso não devia ser considerado manifestamente improcedente, (e rejeitado), insistindo também no entendimento que em sede do seu recurso tinha deixado exposto; (cfr., fls. 339 a 342-v).

*

Sobre este expediente, assim opinou o Exmo. Representante do Ministério Público:

“O recorrente A reclama para a conferência da decisão sumária de 30 de Setembro de 2019, que rejeitou o seu recurso por manifesta improcedência.
Pelo acórdão exarado a fls. 211 e seguintes dos autos tinha sido condenado, em primeira instância, na pena global de 4 anos de prisão, em resultado do cúmulo jurídico de quatro penas parcelares, duas de 2 anos e 9 meses e duas de 1 ano e 9 meses, aplicadas, respectivamente, pela prática de dois crimes de usura com exigência de documentos e dois crimes de sequestro.
Tendo imputado ao acórdão erro notório na apreciação da prova relativamente aos crimes de sequestro e erro de direito quanto ao número de crimes de usura com exigência de documentos, continua a clamar, desta feita contra a decisão sumária que manteve a decisão de primeira instância.
E fá-lo reafirmando, nos seus precisos termos, quase ipsis verbis, os argumentos expendidos na sua alegação de recurso.
Porque assim é, seja-nos permitido remeter para o nosso parecer exarado a fls. 318 e seguintes dos autos, e reafirmar os considerandos aí expendidos, através dos quais analisámos os fundamentos da motivação do recurso e deixámos expressos os motivos da nossa discordância quanto às pretensões recursivas do ora reclamante.
A esses considerandos, levados em linha de conta na douta decisão sumária, acrescentou esta um conjunto apreciável de razões para justificar a adequabilidade do julgado em primeira instância, tendo para o efeito analisado e desmontado os argumentos do recorrente, com citação de variada e pertinente jurisprudência e doutrina, concluindo pela rejeição do recurso por manifesta improcedência, mediante decisão sumária plenamente conforme às disposições conjugadas dos artigos 410.°, n.° 1, e 407.°, n.° 6, alínea b), do Código de Processo Penal.
Pois bem, através da apontada reafirmação, quase ipsis verbis, dos argumentos expendidos na sua alegação de recurso, nada de relevante traz o recorrente/reclamante ao processo para infirmar os fundamentos da decisão sumária que pretende ver revertida.
Daí que, ante quanto sucintamente se alinha, não alcancemos reparo a dirigir à decisão sumária objecto de reclamação, cujo sentido deve ser mantido, indeferindo-se a reclamação”; (cfr., fls. 346 a 346-v).

*

Por despacho do ora relator, foram os presentes autos conclusos para visto dos Mmos Juízes-Adjuntos e, seguidamente, inscritos em tabela para decisão em conferência; (cfr., fls. 347).

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Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

2. Invocando a faculdade que lhe é legalmente reconhecida pelo art. 407°, n°. 8 do C.P.P.M., vem o recorrente reclamar da decisão sumária nos presentes autos proferida e atrás transcrita.

Porém, evidente é que não se pode reconhecer mérito à sua pretensão, muito não se mostrando necessário aqui consignar para o demonstrar.

Com efeito, a decisão sumária agora reclamada apresenta-se clara e lógica na sua fundamentação – nela se tendo efectuado correcta identificação e tratamento das questões colocadas – e acertada na solução.

Na verdade, pelos motivos que na referida decisão sumária se deixaram expostos, e como bem observa o Ministério Público na Resposta que se deixou transcrita, patente se mostra que justo e adequado foi o decidido no Acórdão do Colectivo do T.J.B. objecto do recurso pelo ora reclamante trazido a este T.S.I., o que, por sua vez, implica, a necessária e natural conclusão de que se impunha, como sucedeu, a sua total confirmação.

Dest’arte, e mais não se mostrando de consignar, já que o ora reclamante se limita a repisar o já alegado e adequadamente apreciado da decisão sumária agora em questão, inevitável é a improcedência da apresentada reclamação.

Decisão

3. Nos termos que se deixam expostos, em conferência, acordam julgar improcedente a reclamação apresentada.

Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 24 de Outubro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 897/2019-I Pág. 12

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