Processo nº 762/2019 Data: 24.10.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “burla”.
Erro notório.
Princípio da livre apreciação da prova.
Pena.
SUMÁRIO
1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
2. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art. 65°, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.
O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detectar incorrecções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais que a regem.
O relator,
______________________
José Maria Dias Azedo
Processo nº 762/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A e B, (1a e 2°) arguidos com os restantes sinais dos autos, responderam no T.J.B., vindo a ser condenados como co-autores materiais da prática de 1 crime de “burla de valor elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 3, 196°, al. a) e 201°, n.° 1 do C.P.M., na pena individual de 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano; (cfr., fls. 173 a 177-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformados, vieram os arguidos recorrer para dizer que o Acórdão recorrido padecia de “erro notório na apreciação da prova”, “errada aplicação de direito” no que toca à “qualificação jurídico-penal” da sua conduta, e que “excessiva” era a pena que lhes foi aplicada, alegando também a (1ª) arguida A que o Acórdão recorrido padecia de violação do art. 116° do C.P.P.M.; (cfr., fls. 186 a 190-v e 191 a 196-v).
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Respondendo, diz o Ministério Público que os recursos não merecem provimento; (cfr., fls. 202 a 205-v e 206 a 209-v).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Nas Motivações de fls.186 a 196v dos autos, os dois recorrentes solicitaram a revogação do Acórdão em escrutínio (cfr. fls.173 a 177v), assacando-lhe a violação do preceito no art.116º do CPP, o erro notório na apreciação de prova, e o erro nos pressupostos de facto da aplicação dos arts.40º e 65º do Código Penal de Macau.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega na Resposta (cfr. fls.202 a 209 verso dos autos).
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Relativamente à arguição da violação dos pressupostos prescritos no art.116º do CPP, basta-nos acompanhar a observação do ilustre colega que apontou “在審判聽證中證人C作出聲明,在案發後,該證人接到由第二嫌犯(即本案第一嫌犯的丈夫)打來的電話,第二嫌犯向證人說,第一嫌犯拿了證人手錶,對不起,要求證人上班時不要講第一嫌犯拿了證人手錶的事。另外,在上班時,第一嫌犯也向證人講不好意思。” “由此可見,證人C所聲明的內容,是其親耳所聽的內容,而相關內容出自第一嫌犯及第二嫌犯口中。故此,證人C所作證言的內容,並非聽說或傳聞的事情。”
O que torna inquestionável que o depoimento da testemunha C não é indirecto, por isso não se verifica a arrogada violação do preceito no art.116º do CPP.
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No que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é pacífica, no actual ordenamento jurídico de Macau, a seguinte jurisprudência (cfr. a título meramente exemplificativo, Acórdãos do Venerando TUI nos Processo n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014): O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
De outro lado, não se pode olvidar que o recorrente não pode utilizar o recurso para manifestar a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo ponderou a prova produzida, pondo em causa, deste modo, a livre convicção do julgador (vide Acórdão do TUI no Processo n.93/2001).
Com efeito, “sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vicio, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.” (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.°470/2010)
No caso sub judice, acolhemos as perspicazes observações da ilustre colega, no sentido de que “經過了審判聽證,原審法庭在客觀綜合分析各名證人之聲明、結合在審判聽證中審查的書證後,認定上訴人所爭議的上述事實獲證明。對於如何認定該等事實,原審法庭也在「事實之判斷」中作出闡述。” “根據證人C所聲明的上下班時間、其放置手錶的時間、地點及位置,第一嫌犯的上下班時間,再結合卷宗其他的書證,以及兩名嫌犯在案發後就取去手錶一事向證人道歉,足以認定「獲證明之事實」第1點獲證明。” “正如前面已提及,第二嫌犯打電話向證人C表示,第一嫌犯拿了證人手錶。由此可見,第一嫌犯已將拾獲證人手錶一事,告知第二嫌犯。隨後,涉案手錶由第一嫌犯手交到第二嫌犯手上,由第二嫌犯把涉案手錶典當及將所得款項存入第一嫌犯的XX銀行帳戶,均有書證證明。因此,足以認定「獲證明之事實」第2點獲證明。” “上訴人向押店職員出示手錶要求典當,該押店職員誤以為第二嫌犯是物主,才會接受典當。相反,倘若押店職員明知第二嫌犯不是物主或非法取得,仍然接受典當,則其有可能觸犯贓物罪,以及相關手錶會被警方扣押,造成押店損失。按照生活經驗,押店職員犯不著冒觸犯刑事犯罪及造成押店損失的風險,且卷宗內無任何跡象顯示該職員在該典當事情上可獲不法利益。因此,原審法庭認定上述事實獲證明,並無明顯錯誤。” “關於上訴人所爭議的「獲證明之事實」第6點及第7點,……,根據「獲證明之事實」第1至5點,可以得出結論,上述主觀事實得以認定獲證明。”
Tudo isto leva-nos a concluir tranquilamente que não se verifica o assacado erro notório na apreciação de prova. Pois bem, a apreciação e valoração das provas pelo Tribunal a quo são sintéticas e estão conformes com as regras de experiência, bem como com as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis.
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A atenciosa leitura do douto Acórdão in questio impulsiona-nos a acompanhar a prudente conclusão extraída pela ilustre colega, no sentido de que ao graduar as penas concretas para os dois recorrentes, o Tribunal a quo mencionou as disposições nos arts.64º e 65º do CPM e ponderou todas as circunstâncias pertinentes para os devidos efeitos. Importa ter presente que os dois recorrentes nunca mostraram sinceros remorsos.
Sabe-se que no ordenamento jurídico de Macau, é adquirida a douta jurisprudência que tem asseverando que nos arts.64º e 65º do CPM, o legislador acolhe a teoria da margem de liberdade (a título exemplificativo, vide. Acórdãos do TSI nos Processos n.°293/2004, n.°50/2005 e n.°51/2006). E entendemos ser prudente o veredicto que afirma “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial recorrida.” (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.°817/2016)
Nesta linha de perspectiva, à luz das sensatas jurisprudências supra citadas, entendemos que o Acórdão recorrido não infringe as disposições nos arts.40° e 65° do CPM, e a pena de seis meses de prisão com a suspensão da execução por período de um ano se mostra justa e equilibrada, por isso é incuravelmente inviável o pedido de redução desta pena.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 227 a 228-v).
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Nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 174 a 174-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos, (não havendo factos por provar).
Do direito
3. Vem os arguidos recorrer do Acórdão que os condenou como co-autores materiais da prática de 1 crime de “burla de valor elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 3, 196°, al. a) e 201°, n.° 1 do C.P.M., na pena individual de 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano.
Como se referiu, consideram os arguidos que o Acórdão recorrido padece de “erro notório na apreciação da prova”, “errada aplicação de direito” no que toca à “qualificação jurídico-penal” da sua conduta, sendo “excessiva” a pena que lhes foi aplicada, alegando, também, a (1ª) arguida A, que o Acórdão recorrido padecia de violação do art. 116° do C.P.P.M..
–– E começando pela alegada “violação do art. 116° do C.P.P.M.”, cabe dizer que acertada se nos mostra o que sobre a questão se considerou na Reposta e Parecer do Ministério Público (atrás transcrito).
Com efeito, verificando-se que o “depoimento” em questão foi da (própria) ofendida que relatou ao Tribunal conversas pessoalmente tidas com os arguidos, e que estes, estando presentes na audiência, tiveram toda a oportunidade de exercer o contraditório, afigura-se-nos que nada obstava a que fosse o dito depoimento objecto de livre apreciação pelo Tribunal a quo, como foi, o caso; (sobre a questão, e como referência, vd. o Ac. do T. Constitucional português n.° 440/99, de 08-07, Proc. n.° 268/99, in D.R. II Série, de 09.11.1999, onde se considerou, nomeadamente, que a livre valoração do Tribunal de depoimentos indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido).
Daí, improceder o recurso da 1ª arguida na parte em questão.
–– No que toca ao “erro notório na apreciação da prova”, temos entendido que o mesmo apenas existe quando “se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 17.01.2019, Proc. n.° 812/2018, de 07.03.2019, Proc. n.° 93/2019 e de 19.09.2019, Proc. n.° 730/2019).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Com o mesmo, consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas excepções decorrentes da “prova vinculada”, (v.g., caso julgado, prova pericial, documentos autênticos e autenticados), estando sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova e o do “in dubio pro reo”.
Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e que se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevantes para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
O acto de julgar é do Tribunal, e tal acto tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção.
Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva.
Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência, a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade), a da dúvida inultrapassável, (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.
A oralidade da audiência, (que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam, v.g., por gestos, comoções e emoções, da voz.
A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.
É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 21.02.2019, Proc. n.° 34/2019, de 06.06.2019, Proc. n.° 476/2019 e de 10.10.2019, Proc. n.° 822/2019).
Com efeito, importa ter em conta que “Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum”; (cfr., o Ac. da Rel. de Coimbra de 13.09.2017, Proc. n.° 390/14).
E como se consignou no Ac. da Rel. de Évora de 21.12.2017, Proc. n.° 165/16, “A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.
No caso dos presentes autos, não vislumbramos nenhum “erro”, (muito menos, “notório”), pois que não se divisa nenhuma violação às regras sobre a prova legal, regras de experiência ou legis artis, tendo a convicção do Tribunal claro e cabal suporte nos elementos probatórios apreciados, nomeadamente, (o referido) depoimento da ofendida, do representante da casa de Penhor onde o relógio desta foi empenhado e de onde foi recuperado, e o depoimento do agente policial que relatou as diligências investigatórias que levaram à identificação dos arguidos, ora recorrentes.
Nesta conformidade, também na parte em questão, vista está a solução.
Continuemos.
–– Nos termos do art. 211° do C.P.M.:
“1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. Se o prejuízo patrimonial resultante da burla for de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
4. A pena é a de prisão de 2 a 10 anos se:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b) O agente fizer da burla modo de vida; ou
c) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica”.
E, como temos considerado:
“A construção do crime de “burla” supõe a concorrência de vários elementos típicos: (1) o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado; (2) a fim de determinar outrem à prática de actos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial – (elementos objectivos) – e, por fim, (3) a intenção do agente de obter para si ou terceiro um enriquecimento ilegítimo (elemento subjectivo).
Impõe-se, assim, num primeiro momento, a verificação de uma conduta (intencional) astuciosa que induza directamente em erro ou engano o lesado, e, num segundo momento, a verificação de um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro.
O que caracteriza o crime de “burla” é a acção do agente que, astuciosamente, provoca no sujeito passivo erro ou engano sobre quaisquer factos, e assim determina que o mesmo pratique actos que causem prejuízo a ele ou a outra pessoa.
Por erro deve entender-se a falsa (ou a nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima.
É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou quando o burlão altera ou dissimula factos verdadeiros, e (actuando com destreza) pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 27.04.2017, Proc. n.° 275/2017, de 28.02.2019, Proc. n.° 61/2019 e de 06.06.2019, Proc. n.° 1018/2018, e o Ac. do Vdo T.U.I. de 02.03.2017, Proc. n.° 73/2015).
O que efectivamente caracteriza o crime de “burla” é a acção do agente que, astuciosamente, provoca no sujeito passivo erro ou engano sobre quaisquer factos, e assim determina que o mesmo pratique actos que causem prejuízo a ele ou a outra pessoa.
Por “erro” deve entender-se a falsa (ou a nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima.
É usada “astúcia” quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou quando o burlão altera ou dissimula factos verdadeiros, e (actuando com astúcia e/ou destreza) pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado, de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.
A astúcia é, materialmente, algo mais que mentira; é um plus que lhe acresce e que lhe empresta, sob a forma de cenário criado, uma mise-en-scène, que tem por fim dar crédito à mentira e enganar.
As regras da experiência comum e os ditames da boa fé constituem elementos de suma importância para se concluir pela tipicidade e ilicitude da “burla”; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. do S.T.J. de 17.01.2007, Proc. n.° 3152, in “www.dgsi.pt”).
Ora, percorrida a factualidade provada, que nos dá conta que os arguidos agiram em conluio e em conjugação de esforços, dando de penhor um relógio propriedade da ofendida ilicitamente obtido, mas, como se seu fosse, obtendo, assim, um enriquecimento ilegítimo, visto está que censura não merece a qualificação jurídica operada.
–– Quanto à “pena”.
Pois bem, e como se deixou relatado, os arguidos foram condenado pela prática de 1 crime de “burla de valor elevado”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 3, 196°, al. a) e 201°, n.° 1 do C.P.M. – ao qual cabia a pena de prisão até 3 anos e 4 meses ou pena de multa até 400 dias – na pena individual de 6 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano.
Nos termos do art. 40° do C.P.M.:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
Por sua vez, nos termos do art. 64° do mesmo C.P.M., “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Em sede de determinação da pena, tem este T.S.I. entendido que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 11.04.2019, Proc. n.° 289/2019, de 30.05.2019, Proc. n.° 453/2019 e de 10.10.2019, Proc. n.° 861/2019).
Como igualmente decidiu o Tribunal da Relação de Évora:
“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 09.05.2019, Proc. n.° 403/2019, de 12.09.2019, Proc. n.° 698/2019 e de 10.10.2019, Proc. n.° 701/2019).
No mesmo sentido se decidiu também que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. deste T.S.I. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).
E, como se tem igualmente decidido:
“O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 24.07.2017, Proc. n.° 17/16).
“O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detectar incorrecções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto da pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Guimarães de 25.09.2017, Proc. n.° 275/16).
No caso, atenta a moldura penal aplicável, ao dolo directo e intenso dos arguidos, ponderada também a sua “postura processual”, e fortes sendo as necessidades de prevenção criminal, cremos que nenhuma censura merece a decisão recorrida no que toca à “espécie” e “medida” da pena que aos arguidos foi aplicada, apresentando-se integralmente respeitados os art°s 40°, 64° e 65° do C.P.M..
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento aos recursos.
Custas pelos 1ª e 2° arguidos, com a taxa de justiça de 6 e 5 UCs, respectivamente.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 24 de Outubro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 762/2019 Pág. 10
Proc. 762/2019 Pág. 11