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Proc. nº 498/2019
Recurso Jurisdicional em Matéria Cível
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 31 de Outubro de 2019
Descritores:
- Causa de pedir
- Limites da condenação
- Enriquecimento sem causa
- Nulidade de sentença
- Princípio do contraditório
- Nulidade processual
- Art. 770º do Código Civil
- Juros remuneratórios e moratórios

SUMÁRIO:

I - O que integra a causa de pedir são os factos e não a figura jurídica ou o instituto legal que o autor elege como fundamento de direito para a pretensão (art. 417º, nº4, CPC).

II - Tendo o autor da acção preenchido a causa de pedir com factos densificadores do enriquecimento sem causa, pode o tribunal decidir o caso segundo as regras do incumprimento do mandato, se os mesmos factos invocados, e provados, puderem levar a essa convolação (art. 567º do CPC).

III - Mesmo que se entenda que comete a violação do princípio do contraditório previsto no art. 5º do CPC, a sentença que procede à aplicação das regras de direito, desviando-se da causa de pedir, sem ouvir previamente as partes, a sanção a determinar não será a nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, mas eventualmente a nulidade processual, que deve, expressa e autonomamente, ser arguida no prazo legal.

IV - O preceito do art. 770º do CC - que afirma que o não pagamento de uma das prestações, importa o imediato vencimento das restantes – não é imperativo e pode ser afastado por convenção das partes ou por vontade do próprio credor em não exigir o vencimento imediato de todas as restantes.

V - O art. 770º, portanto, implica a interpelação do devedor no sentido do pagamento imediato de toda a dívida.

VI - Sendo feita essa interpelação, deixam de ser devidos os juros remuneratórios convencionados contáveis com referência a cada uma das prestações, embora sejam devidos os juros moratórios convencionados a partir do termo do prazo certo em que a dívida se deveria ter por inteiramente paga.



Proc. nº 498/2019

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I - Relatório
A, do sexo masculino, solteiro, maior, da nacionalidade chinesa, titular do BIRM n.º XXX, residente no XXX, Taipa, instaurou no TJB (Proc. nº CV3-16-0095-CAO)---
Acção declarativa de condenação, com processo ordinário contra: ---
B, do sexo feminino, casada com C no regime da comunhão de adquiridos, da nacionalidade chinesa, titular do BIRM n.º XXX, residente em Macau, na XXX ---
Pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de MOP$1.438.840,00 e juros de mora respectivos, com fundamento em enriquecimento sem causa.
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Por sentença de 16/11/2018 foi a acção julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar ao A. a quantia de MOP$ 820.687,89 e juros de mora à taxa legal.
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Contra essa sentença vem agora o presente recurso jurisdicional interposto pela ré, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. Excesso de pronúncia
1. O recorrido sustentou que a recorrente devia ser condenada, por enriquecimento sem causa, a restituir-lhe o benefício indevidamente recebido, no valor de MOP$1.407.868,89, acrescido de juros de mora.
2. A recorrente se defendeu por excepção, argumentando que após a dedução da quantia emprestada, juros e respectivas despesas, e realizado o apuramento de conta pelas partes, a recorrente já pagou ao recorrido o saldo devido no valor de HKD$480.069,00.
3. O recorrido não logrou provar que o acto da recorrente é negócio jurídico abstracto. Ao apreciar os pedidos formulados pelo mesmo, o Tribunal a quo, embora não tenha absolvido a recorrente, sublinhou que a restituição de benefício não devia ter sido peticionada com base em enriquecimento sem causa.
4. Porém, também indicou que por se tratar de negócio jurídico causal, o recorrido podia ter recorrido ao instituto de procuração para efectivar a cobrança das dívidas incorridas pela recorrente para com ele devido ao incumprimento de obrigações na execução dos poderes que lhe eram conferidos. Por isso, julgou procedentes os pedidos do recorrido.
5. O recorrido, enquanto autor, nunca suscitou a supra referida causa de pedir, nem na petição inicial, nem na réplica, quer dizer que nunca sustentou que a recorrente estava obrigada a restituir-lhe (ou seja, o mandante) o preço do bem imóvel por ela ter actuado como mandatária dele, com os seus actos sujeitos às obrigações do mandatário. Pelo contrário, só invocou enriquecimento sem causa por parte da recorrente.
6. Assim sendo, à luz da regra de o juiz ocupar-se apenas das questões suscitadas pelas partes (primeira parte do artigo 563.º, n.º 3 do CPC), o Tribunal a quo obviamente incorreu em excesso de pronúncia ao fundar a sua decisão numa causa de pedir diversa da colocada pelo recorrido. Ou seja, conheceu duma questão de que não podia tomar conhecimento.
7. Por conseguinte, o TSI deve declarar nula a sentença recorrida ao abrigo do disposto no artigo 564.º, n.º 1 e artigo 571.º, n.º 1, al. d) (segunda parte).
8. Na verdade, ao abrigo do disposto no artigo 467.º do CC, cabe ao credor que invoque enriquecimento sem causa provar: 1. O devedor enriqueceu. 2. Ele enriqueceu à custa do credor. 3. Enriqueceu sem causa justificativa. Os factos provados no caso vertente, contudo, não são suficientes para provar essas circunstâncias.
9. Além disso, o artigo 468.º do CC atribui claramente a essa obrigação uma natureza subsidiária. O recorrido só pode invocar enriquecimento sem causa após ter provado a impossibilidade de obter a restituição através de outro meio legalmente facultado. No entanto, o recorrido não logrou provar que o acto da recorrente é negócio jurídico abstracto.
10. Por conseguinte, por manifestamente não se encontrarem preenchidos os requisitos de enriquecimento sem causa, os pedidos formulados pelo recorrido contra a recorrente devem ser indeferidos.
II. Violação do princípio do contraditório
11. O Tribunal a quo decidiu que ao caso vertente é aplicável o regime de mandato sem ter dado a oportunidade de se pronunciar à recorrente, incorrendo assim numa infracção processual, ou seja, violou o princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
12. Por a referida omissão ter influído na decisão da causa, o tribunal superior deve, nos termos do artigo 147.º, n.º 1 do CPC, declarar a nulidade da sentença recorrida e dar à recorrente a oportunidade de se pronunciar sobre a falada questão.
13. Mesmo que assim se não entenda, a recorrente ainda entende que o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento, por haver incorrecção na decisão da matéria de facto (artigo 599.º, n.º 1, al. a) do CPC).
III. Erro de julgamento
14. Mesmo que assim se não entenda, a recorrente ainda entende que o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento, por haver incorrecção na decisão da matéria de facto (artigo 599.º, n.º 1, al. a) do CPC). (sic)
15. Compulsadas as alíneas C) a F), e O) dos factos assentes e a resposta ao quesito 3º da base instrutória, designadamente a escritura de hipoteca constante dos autos (anexo 3 à petição inicial), constata-se aqui que se celebrou entre as partes um mútuo a que se refere o artigo 1070.º do CC, com juros à taxa anual de 2,75% e juros de mora à taxa de 3%. Também foi acordado que a obrigação poderia ser liquidada em 6 prestações, não devendo a primeira ser efectuada depois de 6 de Abril de 2015.
16. No entanto, até 6 de Setembro de 2015, o recorrido ainda não reembolsou nenhum montante. Nos termos dos artigos 770.º e 794.º do CC, a referida obrigação constituída entre a recorrente e o recorrido, com o capital de três milhões de dólares de Hong Kong (HKD$3.000.000,00), considerou-se integralmente vencida já em 6 de Abril de 2015.
17. Portanto, em sintonia com o disposto no artigo 795.º do CC, desde 6 de Abril de 2015, ou seja, o dia de vencimento, até 5 de Julho de 2016, o recorrido deveria ter pago à recorrente os juros acordados, no valor de HKD$215.625,00 (3.000.000,00X5,75%X15/12=215.625,00), equivalente a MOP$222.093,75, e não HKD$103.068,00, como indicado pelo Tribunal recorrido (resposta ao quesito 2º da base instrutória). (negritos e sublinhados nossos)
18. Em face do vício de erro de julgamento de que padece o Tribunal a quo, o TSI deve decidir, nos termos do artigo 629.º, n.º 1, al. a) do CPC e com base nos factos assentes, nomeadamente as alíneas C) a F), e O), alterar a decisão recorrida no sentido de condenar a recorrente a pagar ao recorrido a quantia de MOP$704.754,18, acrescida de juros à taxa legal contados a partir do dia seguinte ao da presente decisão.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exªs doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência,
(1) declarar nula a sentença do Tribunal a quo por violação do disposto no artigo 563.º, n.º 3 e artigo 564.º, n.º 1 do CPC, e indeferir todos os pedidos formulados pelo recorrido contra a recorrente. Ou,
(2) julgar que o Tribunal recorrido infringiu o princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC e, ao abrigo do disposto no artigo 147.º, n.º 1 do mesmo Código, declarar nula a sentença impugnada e pedir à recorrente que se pronuncie sobre a respectiva questão. Ou,
(3) julgar que a sentença recorrida padece do vício de errado julgamento e, nos termos do disposto no artigo 629.º, n.º 1, al. a) do CPC, condenar o recorrido(sic) a pagar à recorrente(sic) a quantia de MOP$704.754,18, acrescida de juros à taxa legal contados a partir do dia seguinte ao da presente decisão.”
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O autor respondeu ao recurso, sem formular conclusões, pugnando pelo seu improvimento.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu como provada a seguinte factualidade:
“Factos assentes:
- No dia 27 de Novembro de 2013, o autor adquiriu, através da escritura de compra e venda, a fracção autónoma A12 (doravante designado por fracção em causa) destinada a habitação do edifício PAK WAI FA YUEN, sito na Avenida do Conselheiro Ferreira de Almeida, n.º 102 a 138, Estrada Coronel Nicolau de Mesquita, n.º 9 a 9-L, Rua do Governador Albano de Oliveira, n.º 1 a 3, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 21654-A e inscrito na matriz predial sob o n.º 071030. (alínea A) dos factos assentes)
- O autor efectuou em 12 de Dezembro de 2013 o registo da fracção em causa junto da Conservatória do Registo Predial. (alínea B) dos factos assentes)
- No dia 6 de Março de 2015, o autor pediu emprestado à ré a quantia de três milhões de dólares de Hong Kong (HKD$3.000.000,00). (alínea C) dos factos assentes)
- O autor, mediante escritura de hipoteca, constituiu hipoteca a favor da ré sobre a falada fracção em garantia do dito empréstimo. (alínea D) dos factos assentes)
- De acordo com o contrato de hipoteca, o capital foi de três milhões de dólares de Hong Kong (HKD$3.000.000,00), com juros à taxa anual de 2,75% e juros de mora à taxa de 3%. (alínea E) dos factos assentes)
- Também foi acordado que o capital deveria ser liquidado no prazo de 6 meses, sendo cada mês uma prestação, no total 6 prestações, não devendo a primeira ser efectuada depois de 6 de Abril de 2015. (alínea F) dos factos assentes)
- No mesmo dia, o autor assinou uma procuração especial lavrada na forma de termos de autenticação, através da qual conferiu à ré poderes para praticar, em nome dele, acto de venda do referido bem imóvel. (alínea G) dos factos assentes)
- A fim de obter capital para restituir à ré o dinheiro emprestado, o autor celebrou, em 12 de Maio de 2016, um contrato-promessa de compra e venda de imóvel com D (do sexo feminino, casada com E no regime da separação de bens, da nacionalidade portuguesa, titular do BIRM n.º XXX). (alínea H) dos factos assentes)
- Após a celebração do falado contrato-promessa de compra e venda, o autor recebeu da promitente-compradora D o sinal no valor de quatrocentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong (HKD$450.000,00). (alínea I) dos factos assentes)
- O referido contrato-promessa tem por objectivo o bem imóvel em causa. (alínea J) dos factos assentes)
- Em 5 de Julho de 2016, a ré, no uso dos poderes de representação que lhe tinham sido conferidos pelo autor, celebrou com D uma escritura de compra e venda no escritório da notária privada XXX. (alínea K) dos factos assentes)
- A ré vendeu, mediante a escritura atrás mencionada e em representação do autor, o bem imóvel em causa à compradora D. (alínea L) dos factos assentes)
- A transacção foi efectuada ao preço de quatro milhões, novecentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong (HKD$4.950.000,00). (alínea M) dos factos assentes)
- A ré recebeu o saldo do preço em nome do autor, isto é, a quantia de quatro milhões e quinhentos mil dólares de Hong Kong (HKD$4.500.000,00). (alínea N) dos factos assentes)
- Até 6 de Setembro de 2015, o autor ainda não reembolsou nenhum montante. (alínea O) dos factos assentes)
- A ré emitiu a favor do autor uma livrança bancária no valor de quatrocentos e oitenta mil e sessenta e nove dólares de Hong Kong (HKD$480.069,00). (alínea P) dos factos assentes)
- O autor recebeu a respectiva livrança em 24 de Julho de 2016. (alínea Q) dos factos assentes)
Base instrutória:
- A procuração descrita na alínea G) foi lavrada pelo autor de acordo com as condições de empréstimo estabelecidas pela ré. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
- Desde 6 de Abril de 2015 até 5 de Julho de 2016, o autor estava obrigado a pagar à ré os juros acordados no valor de HKD$103.068,00. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
- No dia 5 de Julho de 2016, a ré não só recebeu, na qualidade da procuradora do autor, o valor de HKD$4.500.000,00, ou seja, o saldo do preço da venda, mas também, enquanto credora do autor, deduziu da quantia recebida o montante emprestado descrito na alínea E). (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- Após a ré ter recebido o referido saldo no valor de HKD$4.500.000,00, só restituiu ao autor a quantia de HKD$480.069,00. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- Desde o recebimento pela ré do falado saldo e a devolução da referida quantia de HKD$480.069,00, a mesma não restituiu ou deu ao autor qualquer verba. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- Por o autor ao comprar a fracção habitacional em causa ter pedido benefícios fiscais relativos à aquisição do primeiro bem imóvel, mas ainda não ter decorrido 3 anos desde a aquisição, tinha de ser pago o imposto de selo no valor de quarenta e duas mil e sessenta e oito patacas (MOP$42.068,00). (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- Tal quantia foi paga pela ré em 17 de Maio de 2016. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
- Aquando da celebração da escritura o autor precisou de deslocar-se a Camboja para tratar assuntos. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
- A ré acordou em tratar a transacção e pagou a quantia de quarenta e nove mil e quinhentos dólares de Hong Kong (HKD$49.500,00) a título de comissão de mediação imobiliária. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- A ré pagou à Empresa de Gestão de Propriedades F, Lda. a quantia de três mil e treze patacas (MOP$3.013,00) a título de despesas da administração e fundo de reparação predial do edifício PAK KENG FA YUEN (柏景(sic)花園). (resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- A ré pagou trezentas e vinte e oito patacas (MOP$328,00) a título de foros. (resposta ao quesito 17º da base instrutória)
- A ré pagou seis mil, duzentas e setenta e cinco patacas (MOP$6.275,00) a título de honorários de advogado. (resposta ao quesito 18º da base instrutória)
- A ré pagou à compradora D vinte mil e quatrocentos dólares de Hong Kong (HKD$20.400,00) a título de despesas com a desocupação tardia, uma vez que a mãe do autor precisava de tempo para procurar nova residência. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)”.
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III – O Direito
1. Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia
Inicialmente pedida a condenação da ré no pagamento de HKD$ 1.438.840,00, quantia posteriormente reduzida para MOP$ 1.407.868,89 e juros, viria a condenação limitar-se à quantia de MOP$ 820.687,89 e juros de mora legais.
A causa de pedir era o enriquecimento sem causa (art. 467º do CC). A sentença, porém, invocando expressamente o disposto no art. 567º do CPC e considerando que a restituição por enriquecimento só podia ser subsidiariamente peticionado com base em impossibilidade de cumprimento da dívida por outro meio, acabou por proceder à condenação com fundamento no mandato e representação conferidos à ré, tudo nos termos dos arts. 1104º, 255º, nº1 e 1087º do CC.
Terá decidido bem?
Como já este TSI teve oportunidade de dizer noutra ocasião (Ac. do TSI, de 20/03/2014, Proc. nº 466/2013):
“O que integra a causa de pedir são os factos e não a figura jurídica ou o instituto legal que o autor elege como fundamento do direito para a pretensão”.
E “É sabido que o que integra a causa de pedir são os factos e não a figura jurídica ou o instituto legal que o autor elege como fundamento de direito para a pretensão (art. 417º, nº4, CPC). Mas se isto é assim, isto é, se o juiz apenas se pode servir dos factos articulados pelas partes (art. 567º, 2ª parte, do CPC), já por outro lado não está vinculado às alegações delas no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 567º, 1º Parte, do CPC). Aliás, por tal motivo, a jurisprudência comparada teve oportunidade de se manifestar a favor da possibilidade de a acção ser julgada procedente e o réu ser condenado a restituir a quantia emprestada, não pelo instituto do enriquecimento sem causa invocado pelo autor na acção, mas sim pela nulidade do negócio, desde que os factos concernentes à nulidade do contrato de mútuo tivessem sido invocados e provados (Ac. STJ, de 25/01/2007, Proc. nº 4414/06, in C.J., Acórdãos do STJ, ano XV, Tomo I, 2007, pág. 43-44)”.
Assim, tendo o autor da acção preenchido a causa de pedir com factos densificadores do enriquecimento sem causa, podia o tribunal decidir o caso segundo as regras da resolução do incumprimento do mandato, se os mesmos factos invocados, e provados, pudessem levar a essa convolação, face ao disposto no art. 567º do CPC. E, no caso, podiam.
Na verdade, embora o A tivesse feito expressamente apelo ao enriquecimento sem causa, a verdade é que colocou na petição inicial todos os ingredientes fácticos capazes de permitir a condenação com base no incumprimento das regras do mandato e da representação. Ou seja, andou bem, quanto a esse aspecto a sentença.
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2. Violação do princípio do contraditório
Não é totalmente líquida a questão de saber se a diferente qualificação jurídica efectuada pelo tribunal na sentença impugnada acerca dos factos invocados sem ouvir as partes, ao abrigo do art. 3º do CPC, representa uma nulidade.
Se for nulidade, não será certamente nulidade da sentença, mas sim nulidade processual (cfr. art. 147º, do CPC) consistente na não observância do princípio do contraditório.
Nulidade que deve ser invocada pelo interessado, mal seja notificado da sentença, perante o seu autor ou perante o relator, no caso de a impugnação recair sobre um acórdão proferido pelo tribunal superior, nos termos do art. 151º do CPC. “E, a ser procedente a nulidade processual, esta conduziria à anulação dos actos posteriores, nos termos do n.º 2 do artigo 147.º do Código de Processo Civil (o Acórdão recorrido e actos complementares) a fim de ter lugar o acto omitido e, após pronúncia das partes, ou decorrido o prazo para tal, seria, então, proferido novo Acórdão, que poderia ser no mesmo sentido do anterior ou com outro conteúdo.” (Ac. do TUI, de 30/04/2008, Proc. nº 10/2007).
Como tal nulidade processual não foi suscitada nos termos acabados de referir, julga-se, pois, improcedente esta questão.
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3. Erro de julgamento
3.1 - A sentença, como se disse, atribuiu ao autor a quantia de MOP$ 820.687,89, tendo nela descontado ao valor recebido pela ré, aquando da celebração do contrato de compra e venda (alínea K) dos factos assentes), além do mais, a quantia de HKD 103.068,00 a título de “juros acordados”.
A recorrente discorda das contas de liquidação efectuadas na sentença quanto aos juros. Em sua opinião, para o cálculo dos juros não podia a sentença servir-se apenas da taxa de 2,75%, antes devia aplicar a de 5,75% (Onde estava incluída a de 3% a título de juros de mora), devendo por isso ter descontado a quantia de MOP$ 222.093,75.
Pois bem. Independentemente de algum lapso em que a sentença tenha incorrido, a verdade é que, quando ela apurou os “juros acordados” em HKD$103.068, o fez na base da taxa de 2,75% ao ano. Basta fazer as contas para se chegar a esse resultado. Significa que esta taxa de 2,75% era a referente aos juros remuneratórios, tal como decorre da alínea E), dos Factos Assentes.
Em contrapartida, para a recorrente deveria ser de 5,75%. Só que nesta percentagem, está já incluída a taxa 3% a título de juros de mora (juros indemnizatórios), nos termos da citada alínea E) dos Factos Assentes.
Portanto, a questão está em saber qual a taxa de que a sentença se poderia servir para cálculo dos juros.
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3.2 - Cremos que, efectivamente, a falta de pagamento de uma prestação importa o vencimento das restantes, nos termos do art. 770º do Código Civil, o qual dispõe que “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas”.
Contudo, pensamos que esta disposição não é imperativa e deve ser interpretada como sendo de aplicação supletiva em duplo sentido: por um lado, pode ser afastada por convenção das partes; por outro, o credor pode, em vez de exigir o vencimento imediato das restantes prestações (quando uma não é paga), continuar a preferir manter o pagamento fraccionado. Ou seja, as partes podem estabelecer que a falta de uma prestação não importa o vencimento das demais, assim como podem acordar que o vencimento das restantes só acontece com a falta de pagamento de um número pré-determinado de prestações (cfr. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª ed., reimpressão, pág. 270; no mesmo sentido supletivo, v.g., Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pág. 951, nota 3; Ana Prata, Código Civil Anotado, I, Almedina, 2017, pág. 980).
Por isso, é de entender, tal como o entende a generalidade da jurisprudência, que o vencimento imediato ao abrigo do presente artigo importa que o credor manifeste a sua vontade, anunciando ao devedor a intenção de que a dívida se considera totalmente vencida e interpelando, por isso, para o seu pagamento imediato de todo o capital1. Quando tal interpelação é feita, a dívida vence-se nesse instante, o que tem por efeito não serem mais devidos juros remuneratórios futuros (porque deixa de haver causa para eles), mas apenas eventualmente juros de mora (em direito comparado, ver v,g, Ac. do STJ, de 6/2/2007, Proc. n.º 06A4524 ou de 24/05/2007, Proc. nº 07A930, entre tantos).
Ora, no caso, essa interpelação não foi feita pela ré, tanto quanto se colhe dos factos provados. Não tendo havido interpelação, então isso deve ser entendido como tendo a ré (porque foi ela a mutuante, recorde-se: alíneas C e D dos factos assentes) aceitado a manutenção do mútuo e o pagamento fraccionado pelo prazo acordado. Nesse caso, os juros remuneratórios seriam devidos, tal como o considerou a sentença. Andou bem, pois, a sentença quando à quantia a receber pelo A. descontou a quantia que a ré tinha a receber pelos juros remuneratórios.
E quanto aos moratórios a que alude a alínea E) dos Factos Assentes?
A sentença não os considerou na liquidação que efectuou, nada dizendo especificamente sobre eles (recordemos apenas falou em juros acordados, mas sem os qualificar, embora saibamos que apenas considerou os remuneratórios). Deveria tê-los atendido no cálculo efectuado?
A recorrente/ré entende que sim, como já dissemos.
Ora, os momentos da constituição em mora estão balizados temporalmente no art. 794º do CC.
E quando a obrigação tiver prazo certo, a mora dá-se a partir do instante em que se tem por transcorrido esse prazo, independentemente da interpelação do credor, assim o afirma o nº2, al. a), do artigo citado.
Sucede que, no caso, a liquidação deveria ser feita no prazo de 6 meses contados a partir de 6/04/2015 (alínea F), dos Factos Assentes). Logo, o prazo certo para a liquidação do capital emprestado terminaria em 5/10/2015, o que significa que a contagem dos juros de mora convencionais se iniciaria em 6/10/2015, independentemente de interpelação.
Portanto, a sentença deveria ter liquidado a taxa de juros de mora desde 6/10/2015 até 5/07/2016 (dez meses) à taxa de 3%. O que perfaria o seguinte resultado: 3000000x3%:12x09=HKD$67.500,00 (equivalente a MOP$ 69.525,00)
Em suma, ao resultado apurado na sentença (MOP$ 820.687,89) haveria que subtrair a importância assinalada de MOP$69.525,00, o que perfaria a quantia de MOP$ 751.162,89. Seria esta a quantia em que a ré deveria ter sido condenada a pagar ao autor.
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder parcialmente provimento ao recurso, revogando a sentença na parte assinalada, em consequência do que se se condena a ré a pagar ao autor a quantia de MOP$ 751.162.89, mantendo-se a sentença na parte restante e não impugnada.
Custas na proporção de vencido.
T.S.I., 31 de Outubro de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong






1 A solução apresenta especialidades quando se trate de compra e venda a prestações “com reserva de propriedade” (art. 927º).
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