Processo n.º 79/2019
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: Sociedade de Investimento Imobiliário Nga Keng Van, S.A.
Recorrido: Chefe do executivo da RAEM
Data da conferência: 29 de Novembro de 2019
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Assuntos: - Caducidade da concessão provisória
- Produção da prova
- Caducidade-preclusão
- Causa impeditiva da caducidade
- Princípios gerais do Direito Administrativo
- Abuso de direito
- Lei Básica da RAEM
SUMÁRIO
1. No caso de declaração de caducidade da concessão do terreno por decurso do prozo, que constitui um acto vinculado, o Chefe do Executivo não tem que apurar se o não aproveitamento se deveu a motivo imputável ao concessionário ou não, sendo bastante que o terreno concedido não foi aproveitado pela concessionária no prazo de arrendamento, daí que não há de proceder à produção da prova.
2. A caducidade da concessão provisória por decurso do prazo de arrendamento constitui um caso de caducidade-preclusão, em que é irrelevante a discussão sobre a questão de culpa no não aproveitamento do terreno concedido.
3. Face à Lei de Terras vigente, o Chefe do Executivo não tem margem para declarar ou deixar de declarar a caducidade da concessão, tendo que a declarar necessariamente, pelo que não vale aqui os vícios próprios de actos discricionários, como a violação de princípios gerais do Direito Administrativo, previstos nos artigos 5.º, 7.º, 8.º, 11.º e 12.º do CPA (princípios da igualdade e da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, da boa fé, da decisão e da eficiência, etc.).
4. Não se verifica a causa impeditiva prevista no n.º 2 do art.º 323.º do Código Civil.
5. Ao declarar a caducidade da concessão do terreno, está a Administração a exercer um poder-dever, prescrito por normas imperativas; não estando em causa nenhum direito, não há lugar a qualquer abuso de direito.
6. Na realidade, limita-se a Administração a cumprir a lei, que é imperativa ao impor à Administração uma obrigação, de praticar um acto vinculativo, como já vimos.
7. No caso de declaração da caducidade da concessão por decurso do prazo de arrendamento do terreno, não se vislumbra nenhuma violação das normas contidas na Lei Básica da RAEM, nomeadamente os seus art.ºs 7.º, 103.º e 120.º.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
Sociedade de Investimento Imobiliário Nga Keng Van, S.A., melhor identificada nos autos, interpôs o recurso contencioso do despacho do Senhor Chefe do Executivo da RAEM de 3 de Maio de 2018 que declarou a caducidade da concessão do terreno com a área de 4422m2, designado por lote 8 da Zona C do empreendimento denominado “Fecho da Baía da Praia Grande”, situado na península de Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 22518, a fls. 170 do Livro B49K.
Por despacho proferido a fls. 173 dos autos, o Mmo. Juiz Relator do processo considerou inútil e desnecessária a produção de prova testemunhal apresentada pela recorrente com vista ao apuramento da culpa pelo não aproveitamento do terreno e, consequentemente, determinou a notificação das partes para apresentação de alegações facultativas.
Tal despacho foi objecto de reclamação para a conferência, que foi indeferida pelo acórdão proferido em 4 de Abril de 2019, em que o Tribunal de Segunda Instância também apreciou o recurso interposto pela referida sociedade e julgou improcedente o recurso contencioso.
Inconformada com o acórdão, recorre Sociedade de Investimento Imobiliário Nga Keng Van, S.A. para o Tribunal de Última Instância, suscitando as seguintes questões:
- É necessária a produção da prova para que possam ser apreciadas as questões suscitadas pela recorrente, que comportam factos que revertem e impedem a declaração de caducidade por decurso do prazo;
- A decisão recorrida fez errada interpretação da lei aplicável (caducidade de natureza sancionatória e não preclusiva);
- A caducidade não deveria ter sido declarada porque existem causas impeditivas do decurso do prazo;
- Foram violados os princípios da igualdade, da boa fé, da proporcionalidade, da decisão e da eficiência, em claro abuso de direito;
- O art.º 55.º da Lei do Planeamento Urbanístico encontra-se violado na medida em que impunha à entidade recorrida uma obrigação de rever o contrato de concessão de que a recorrente era titular, em vez de declarar a sua caducidade; e
- O acórdão recorrido fez uma errada interpretação dos art.ºs 7.º, 103.º e 120.º da Lei Básica da RAEM.
Contra-alegou a entidade recorrida, entendendo que deve ser negado provimento ao recurso.
E o Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, no sentido de julgar improcedente o recurso.
2. Factos
Foi dada como assente a seguinte factualidade:
1 - Em conformidade com o Despacho n.º 203/GM/89, publicado no 4.º Suplemento ao Boletim Oficial de Macau n.º 52, de 29 de Dezembro de 1989, e por escritura de 30 de Julho de 1991, exarada a fls. 4 e seguintes do livro n.º 285 da Direcção dos Serviços de Finanças, com as alterações introduzidas pelos contratos de revisão titulados pelos Despachos n.ºs 73/SATOP/92, 57/SATOP/93 e 56/SATOP/94, publicados respectivamente no Boletim Oficial de Macau n.º 27, de 6 de Julho de 1992, no Boletim Oficial de Macau n.º 17, de 26 de Abril de 1993 e no Boletim Oficial de Macau n.º 22, II Série, de 1 de Junho de 1994, foram concedidos por arrendamento a favor da Sociedade de Empreendimentos Nam Van, S.A., vários lotes de terreno inseridos nas zonas A, B, C e D do empreendimento denominado «Fecho da Baía da Praia Grande», situadas na Baía da Praia Grande e nos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE).
2 - Nos termos do disposto na cláusula segunda do contrato de concessão titulado pela mencionada escritura, o arrendamento era válido pelo prazo de 25 anos, contados a partir da data da outorga da mesma.
3 - De acordo com o estabelecido no artigo segundo do contrato de revisão de concessão titulado pelo Despacho n.º 56/SATOP/94, através do qual foram concedidos onze lotes de terreno da zona C e dois lotes de terreno da zona O, o prazo do arrendamento expirou em 30 de Julho de 2016.
4 - Segundo o estipulado na cláusula quarta do mesmo contrato, o aproveitamento de cada lote das zonas C e D deveria ser realizado em conformidade com o Plano de Pormenor do Plano de Reordenamento da Baía da Praia Grande e respectivos regulamentos, aprovados pela Portaria n.º 69/91/M, de 18 de Abril de 1991. Entre esses lotes, o lote 8 da zona C, com uma área de 4 422 m2, seria aproveitado com a construção de um edifício, em regime de propriedade horizontal, destinado às finalidades habitacional, comercial e de estacionamento, cuja altura máxima permitida foi fixada em 34,5m NMM.
5 - O prazo de aproveitamento dos lotes das zonas C e D foi fixado em 96 meses, contados a partir de 6 de Julho de 1992, ou seja, até 5 de Julho de 2000, conforme previsto na cláusula sexta do contrato de revisão titulado pelo mencionado Despacho n.º 73/SATOP/92, na redacção introduzida pelo artigo terceiro do contrato titulado pelo referido Despacho n.º 56/SATOP/94.
6 - Por outro lado, considerando a complexidade do empreendimento e as dificuldades com que a Sociedade de Empreendimentos Nam Van, S.A. se deparou na execução contratual, por forma a salvaguardar os interesses das partes contratantes, estas acordaram numa nova revisão da concessão, que veio a ser titulada pelo Despacho n.º 71/SATOP/99, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 33, II Série, de 18 de Agosto de 1999.
7 - No âmbito desta revisão, foi reduzido o objecto do contrato mediante a desistência dos direitos sobre dois lotes da zona B, reavaliados os custos de execução das infraestruturas e alterado o valor do prémio e respectivas condições de pagamento.
8 - Além disso, conforme o disposto no artigo quarto desse contrato de revisão da concessão, foram prorrogados os prazos de aproveitamento dos lotes de terreno de cada uma das zonas, sendo o prazo de aproveitamento dos situados nas zonas C e D prorrogado por 72 meses, contados a partir de 18 de Agosto de 1999, ou seja, até 17 de Agosto de 2005.
9 - Posteriormente, através do Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 85/2001, publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) n.º 37, II Série, de 12 de Setembro de 2001, foi titulada a transmissão onerosa do direito resultante da concessão do terreno, designado por lote 8 da zona C do referido empreendimento a favor da Sociedade de Investimento Imobiliário Nga Keng Van, S.A. (adiante designada por concessionária).
10 - O terreno em causa está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 22518 a fls. 170 do livro B49K e o direito resultante da concessão inscrito a favor da concessionária sob o n.º 26671F, não se encontrando onerado com qualquer hipoteca.
11 - A Sociedade de Empreendimentos Nam Van, S.A. pagou o prémio em espécie e em numerário na sua totalidade de acordo com o contrato de concessão.
12 - As recepções definitivas só ocorreram em 4 de Dezembro de 2001 (doc. fls. 84).
13 - O auto de vistoria para recepção definitiva, de 4 de Dezembro de 2001, certifica que as infraestruturas da Zona C, nomeadamente o pavimento, “oferecem toda a garantia de solidez e conservação”.
14 - O auto de vistoria para recepção definitiva só foi homologado pelo STOP em 20 de Janeiro de 2003.
15 - Foi enviado ao Presidente do Conselho de Administração da Nam Van, Dr. A, recebeu, em 13 de Novembro de 2002, um ofício do Governo solicitando que as subsidiárias da Nam Van, Sociedade de Investimento Imobiliário Hang Keng Van, S.A.R.L., Sociedade de Investimento Imobiliário U Keng Van, S.A.R.L, Sociedade de Investimento Imobiliário Iok Keng Van, S.A.R.L. e Sociedade de Investimento Imobiliário Hei Keng Van, S.A.R.L., desistissem das concessões dos 4 lotes B/b, B/f, B/g e B/1 da Zona B, cada um com uma área de 6.480 m2, e com uma área total de 25.920 m2 (doc. fls. 87-88).
16 - Este pedido tinha como objectivo viabilizar a construção das unidades hoteleiras e casinos das novas concessionárias e subconcessionárias de jogos de fortuna ou azar e outros jogos em casino, nomeadamente os Hotéis e Casinos Wynn Macau e MGM Macau, sem que daí resultassem quaisquer contrapartidas ou mais-valias financeiras pela perda dos lotes de terreno com a dita área de 25.920 m2 e com 898.774 m2 de área de construção.
17 - Como contrapartida pelas desistências, o Governo garantiu à Nam Van e às suas subsidiárias, incluindo a Recorrente, que iria rever os planos de pormenor das Zonas C e D, para nelas incluir as áreas dos quatro lotes que reverteram para a RAEM.
18 - As desistências foram negociadas e aceites pelos Despachos do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.ºs 33/2004, 34/2004, 35/2004 e 36/2004 de 1 de Abril, publicados no B.O. n.º 14, II Série, de 14 de Abril de 2004.
19 - Foram essas desistências que permitiram que os quatro lotes (independentemente da utilização de outros lotes) pudessem ser depois concessionados às sociedades Wynn Resorts (Macau), S.A. e MGM Grand Paradise, S.A., dando-se assim início aos planos de investimentos apresentados por cada uma delas.
20 - Embora os contratos de desistência, anexo aos Despachos do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 33/2004 a 36/2004, de 1 de Abril, contenham, no número 4 do artigo primeiro, a obrigação de o Governo conceder um ou mais terrenos localizados nas zonas “C” ou “D” do Plano da Baía da Praia Grande ou em zona com uma área de construção e capacidade “aedificandi” equivalente, a verdade é que, até esta data, não se concretizou esse compromisso assumido e exteriorizado formalmente pelo Governo da RAEM.
21 - Reunida em sessão de 10 de Novembro de 2016, a Comissão de Terras exarou no seu Parecer n.º 130/2016, o seguinte: «De acordo com o disposto na cláusula segunda do contrato de concessão inicial, titulado pela escritura pública de 30 de Julho de 1991, o arrendamento é válido pelo prazo de 25 anos, contados a partir da data da sua outorga, ou seja, o prazo terminou em 30 de Julho de 2016. Uma vez que o terreno ainda não foi aproveitado e a respectiva concessão é provisória, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 48.º da Lei de terras, a mesma não pode ser renovada.
Nestas circunstâncias, o Departamento de Gestão de Solos (DSO) da DSSOPT procedeu à análise da situação e, através da proposta n.º 371/DSODEP/2016, de 12 de Setembro, propôs que seja autorizado o seguimento do procedimento relativo à declaração da caducidade da concessão por decurso do prazo de arrendamento e o envio do processo à Comissão de Terras para efeitos de parecer e tramitações ulteriores sobre a declaração da caducidade da concessão provisória, nos termos do artigo 167.º da Lei de terras, proposta esta que mereceu a concordância do Secretário para os Transportes e Obras Públicas por despacho de 19 de Setembro de 2016.
Face ao exposto, esta Comissão, após ter analisado o processo, considera que a concessão provisória em apreço se encontra já caducada pelo facto de ter expirado em 30 de Julho de 2016 o prazo de arrendamento, de 25 anos, fixado na cláusula segunda do respectivo contrato (caducidade preclusiva).
Com efeito, de acordo com o artigo 44.º da Lei n.º 10/2013 (Lei de terras), aplicável ao caso vertente por força do disposto nos seus artigos 212.º e 215.º, a concessão por arrendamento é inicialmente dada a título provisório e só se converte em definitiva se, no decurso do prazo fixado, forem cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas e o terreno estiver demarcado definitivamente (vide ainda artigos 130.º e 131.º).
Findo o seu prazo de vigência, as concessões provisórias não podem ser renovadas, a não ser no caso previsto no n.º 2 do artigo 48.º da Lei de terras, conforme estabelece o n.º 1 do mesmo preceito legal, operando-se a caducidade por força da verificação daquele facto (decurso do prazo de arrendamento).
De igual modo, resultava da Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho (Lei de terras anterior) que, no caso da concessão revestir natureza provisória em virtude do terreno não se encontrar aproveitado (cf. artigos 49.º, 132.º e 133.º), não era possível operar a sua renovação por períodos sucessivos de dez anos porquanto a figura da renovação prevista no n.º 1 do artigo 55.º era aplicável apenas às concessões definitivas.
Apesar da caducidade operar de forma automática e directa, para tomar a situação jurídica certa e incontestada e, portanto, eliminar a insegurança jurídica sobre a extinção ou não do direito resultante da concessão, deve a mesma (caducidade) ser declarada, conforme decorre do disposto no corpo do artigo 167.º da Lei n.º 10/2013.
Nestas circunstâncias, esta Comissão nada tem a opor à declaração de caducidade da concessão do terreno em epígrafe pelo decurso do prazo de arrendamento, perdendo a favor da RAEM todas as prestações do prémio e os respectivos juros já pagos, nos termos do disposto no artigo 13.º do Regulamento Administrativo n.º 16/2004.»
22 - E concluiu esse mesmo parecer do modo seguinte: «Reunida em sessão de 10 de Novembro de 2016, a Comissão de Terras, após ter analisado o processo e ter tido em consideração o parecer e proposta constantes da proposta n.º 371/DSODEP/2016, de 12 de Setembro, bem como o despacho nela exarado pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 19 de Setembro de 2016, considera que verificada a caducidade da concessão pelo termo do prazo de arrendamento em 30 de Julho de 2016, deve esta caducidade ser declarada por despacho do Chefe do Executivo.»
23 - Em 14/11/2016 o Ex.mo Secretário para os Transportes e Obras Públicas emitiu o parecer de fls. 113-116 do p.a., cujo conteúdo aqui damos por reproduzido, e que concluiu da seguinte maneira:
“Consultado o processo supra mencionado e concordando com o que vem proposto, solicito a Sua Excelência o Chefe do Executivo que declare a caducidade da concessão do referido terreno”
24 - O Chefe do Executivo proferiu o seguinte despacho:
“Concordo, pelo que declaro a caducidade da concessão, por arrendamento, a que se refere o Processo n.º 65/2016 da Comissão de Terras, nos termos e com os fundamentos do Parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 14 de Novembro de 2016, os quais fazem parte integrante do presente despacho.” (fls. 92 dos autos e 117 do do p.a.)
3. Direito
No presente recurso há de apreciar as seguintes questões referentes a:
- Produção da prova;
- Natureza da caducidade da concessão do terreno;
- Causa impeditiva do decurso do prazo de concessão;
- Abuso de direito e a violação dos princípios gerais de direito administrativos;
- Violação do art.º 55.º da Lei do Planeamento Urbanístico; e
- Errada interpretação dos art.ºs 7.º, 103.º e 120.º da Lei Básica.
Antes de tudo, é de recordar que as questões suscitadas pela recorrente foram já abordadas e apreciadas por este Tribunal de Última Instância em vários acórdãos, pelo que vamos seguir o entendimento exposto e a solução adoptada nesses arrestos.
3.1. Da produção da prova
Ora, conforme se constata no despacho proferido pelo Exmo. Juiz Relator do processo do TSI a fls. 173 dos autos e no acórdão ora recorrido na parte respeitante à reclamação apresentada pela recorrente contra aquele despacho, foi na consideração sobre a inutilidade e a desnecessidade de produção de prova testemunhal com vista ao apuramento da culpa pelo não aproveitamento do terreno é que o TSI decidiu indeferir a reclamação, pois entendeu que, estando em causa a apreciação da validade do acto que declara a caducidade da concessão do terreno pelo decurso do prazo geral desta, o fundamento para a prática do acto é a objectividade do tempo, sem interferência de qualquer carga subjectiva traduzida em juízo de imputabilidade de culpa.
Tem sido este entendimento sustentado e decidido tanto pelo TSI como pelo TUI.
Nos acórdãos proferidos nos processos n.ºs 28/2017, 7/2018 e n.º 43/2018, este TUI expôs o seguinte:
《No recurso contencioso, a produção de prova só tem lugar se os factos forem relevantes para a decisão de mérito (n.º 1 do artigo 63.º e n.º 3 do artigo 65.º do Código de Processo Administrativo Contencioso), segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (proémio do n.º 1 do artigo 430.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente, nos termos do artigo 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso).
A produção de prova visava estabelecer a culpa da Administração e a falta de culpa da concessionária no não aproveitamento do terreno.
Ora, como desenvolveremos adiante, entendemos que tal questão não é relevante para a decisão sobre a legalidade da caducidade da concessão por decurso do prazo.
Assim, independentemente de a relevância da culpa poder integrar uma das soluções plausíveis da questão de direito, certo é que “os recursos que não incidam sobre o mérito da causa só são providos quando a infracção cometida tenha influído no exame ou decisão da causa…” (1.ª parte do n.º 3 do artigo 628.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente, nos termos do artigo 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso), o que, como veremos melhor, não é manifestamente o caso.
Donde, ter de improceder, sem mais, o recurso.》
Ora, a improcedência do recurso interposto da decisão de não produção da prova é imposta por entendermos que, no caso de declaração de caducidade por decurso do prozo, o Chefe do Executivo não tem que apurar se o não aproveitamento se deveu a motivo imputável ao concessionário ou não, sendo bastante que o terreno concedido não foi aproveitado pela concessionária no prazo de arrendamento, daí que não há de proceder à produção da prova.
3.2. Da natureza da caducidade da concessão do terreno
Nos seus acórdãos proferidos nos processos n.ºs 7/2018, 43/2018, 90/2018, 12/2019 e 13/2019, de 23 de Maio, 6 de Junho e 12 de Dezembro de 2018 e 10 de Julho de 2019, respectivamente, este Tribunal de Última Instância foi chamado a pronunciar-se sobre a questão ora suscitada (caducidade-sanção ou caducidade-preclusão da caducidade da concessão do terreno), tendo concluído que a caducidade da concessão provisória por decurso do prazo de arrendamento constitui um caso de caducidade-preclusão.
E dá-se por integralmente reproduzido o teor dos referidos acórdãos na parte respeitante à questão ora colocada pela recorrente.
É de reafirmar que não é essencial a questão de culpa no não aproveitamento dos terrenos no prazo fixado para o efeito, já que com o decurso do prazo máximo das concessões provisórias sem a conclusão do aproveitamento dos terrenos, as mesmas concessões não podem ser renovadas, desde que não se verifique a excepção prevista na lei (art.º 48.º n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 10/2013).
E as concessões caducam no termo do prazo inicial da concessão, que é inicialmente dada a título provisória (art.ºs 52.º e 44.º da Lei n.º 10/2013).
Trata-se duma caducidade-preclusão, como já vimos em acórdãos anteriores proferidos pelo TUI, caso em que é irrelevante a discussão sobre a questão de culpa no não aproveitamento do terreno concedido.
Improcede o argumento da recorrente.
3.3. Da causa impeditiva do decurso do prazo de concessão
Alega a recorrente que existem causas impeditivas do decurso do prazo, que impedem a declaração da caducidade e impõe a manutenção do contrato de concessão, sem que tenha sido atingido o decurso do prazo, sendo necessário que aprecie o comportamento da Administração, que suspendeu o desenvolvimento do terreno e relegou a apreciação dos projectos para a aprovação do novo plano de urbanismo, que nunca foi aprovado na vigência do contrato de concessão.
Ora, dispõe o art.º 323.º do Código Civil o seguinte:
“Artigo 323.º
(Causas impeditivas da caducidade)
1. Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.
2. Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido.”
No caso reportado nos autos, nem o contrato de concessão nem a Lei de Terras estabelecem qualquer norma que contempla situações a que possa ser atribuída eficácia suspensiva ou interruptiva do decurso do prazo, tal como salienta o acórdão recorrido.
Por outro lado, não se nos afigura que os actos praticados pela Administração configurem, de algum modo, o reconhecimento dos direitos da recorrente que possam ser exercidos depois de ter decorrido o prazo de arredamento.
Coloca-se ainda a questão de saber se os direitos da RAEM em causa são ou não disponíveis, pois só há lugar à aplicação do disposto no n.º 2 do art.º 323.º do Código Civil quando estão em jogo direitos disponíveis.1
Improcede também o recurso, nesta parte.
3.4. Do abuso de direito e da violação dos princípios gerais de direito administrativos
A questão de violação dos princípios gerais de direito administrativo também já foi objecto de apreciação em vários acórdãos proferidos pelo TUI, tais como nos processos n.º 7/2018 e n.º 43/2018, para além de outros, tendo este Tribunal considerado que, face à Lei de Terras vigente, o Chefe do Executivo não tem margem para declarar ou deixar de declarar a caducidade da concessão, tendo que a declarar necessariamente, pelo que não vale aqui os vícios próprios de actos discricionários, como a violação de princípios gerais do Direito Administrativo, previstos nos artigos 5.º, 7.º, 8.º, 11.º e 12.º do CPA (princípios da igualdade e da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade, da boa fé, da decisão e da eficiência, etc.).
No caso ora em apreciação, afigura-se-nos que, face à falta de aproveitamento por parte da recorrente no prazo de concessão de 25 anos, a Administração está vinculada a praticar o acto administrativo objecto de impugnação, cabendo ao Chefe do Executivo declarar a caducidade de concessão.
E no âmbito da actividade vinculada, como no presente caso, não se releva a alegada violação dos princípios gerais de Direito Administrativo.
No que respeita ao invocado abuso de direito, prevê o art.º 326.º do Código Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A lei fala no abuso de poder, logicamente há de existir um direito.
No presente caso, ao declarar a caducidade da concessão do terreno, está a Administração a exercer um poder-dever, prescrito por normas imperativas; não estando em causa nenhum direito, não há lugar a qualquer abuso de direito.
Na realidade, limita-se a Administração a cumprir a lei, que é imperativa ao impor à Administração uma obrigação, de praticar um acto vinculativo, como já vimos.
Não assiste razão à recorrente.
3.5. Da violação do art.º 55.º da Lei do Planeamento Urbanístico
Alega a recorrente que o art.º 55.º da Lei do Planeamento Urbanístico encontra-se violado na medida em que impunha à entidade recorrente uma obrigação de rever o contrato de concessão de que a recorrente era titular, em vez de declarar a sua caducidade.
Dispõe tal preceito o seguinte:
Artigo 55.º
Revisão de contratos de concessão de terrenos do Estado, desistência da concessão e indemnização
1. Quando a execução de um plano urbanístico colida com a finalidade da concessão ou com o aproveitamento ou reaproveitamento de um terreno do Estado concedido, o concessionário tem direito, nos termos da Lei de terras, a requerer a revisão do contrato de concessão, a desistência da concessão ou, tratando-se de concessão onerosa, a transmissão das situações resultantes da concessão.
2. Sem prejuízo do disposto no número anterior, tratando-se de concessões onerosas, os concessionários de terrenos do Estado lesados pela execução inicial ou pela alteração de um plano urbanístico têm direito a ser indemnizados, nos termos da Lei de terras, pelos danos que comprovadamente tenham sofrido, sendo aplicável à prescrição do direito e à fixação do valor da indemnização o disposto no n.º 2 do artigo 53.º e no artigo anterior, com as necessárias adaptações.
Ora, é verdade que a lei confere ao concessionário o direito de requerer a revisão do contrato de concessão, de desistência da concessão ou, tratando-se de concessão onerosa, de transmissão das situações resultantes da concessão.
No entanto, não resulta dos autos que a recorrente alegou oportunamente que requereu a revisão do contrato de concessão. O que alega é que a Administração “reconheceu a necessidade de rever os contratos de concessão de forma a ficarem consentâneos ao futuro novo plano”, contudo nada fez.
Ora, mesmo sendo verdade que a Administração reconheceu a necessidade de rever os contratos de concessão, certo é que nem sequer foi alegado pela recorrente que ela chegou a requerer a respectiva revisão. Se foi feito em que sentido e se obteve resposta? Daí que não se vislumbra a imputada violação da norma em causa.
Improcede assim a questão suscitada pela recorrente.
3.6. Da errada interpretação dos art.ºs 7.º, 103.º e 120.º da Lei Básica
Como se pode ler nas alegações apresentadas pela recorrente, o vício ora em causa foi imputado de modo muito vago, sem nenhum desenvolvimento concreto.
O art.º 7.º da Lei Básica refere-se ao reconhecimento dos direitos sobre terrenos antes do estabelecimento da RAEM e à responsabilidade do Governo da RAEM na gestão, uso e desenvolvimento dos solos e recursos naturais da RAEM, que não estão em causa no presente processo.
Nos termos do art.º 103.º da Lei Básica, a RAEM “protege, em conformidade com a lei, o direito das pessoas singulares e colectivas à aquisição, uso, disposição e sucessão por herança da propriedade e o direito à sua compensação em caso de expropriação legal”.
E conforme a disposição no art.º 120.º da Lei Básica, os contratos de concessão de terras celebrados antes de 20 de Dezembro de 1999 são reconhecidos e protegidos pela RAEM, bem como os direitos deles emergentes. Quanto às renovações das concessões que ocorressem após aquela data (que é o assunto que se interessa nos presentes autos) aplicavam-se as leis que, entretanto, vigorassem.
E de salientar que no presente caso não está em causa qualquer direito à propriedade privada da recorrente, face ao contrato de concessão por arrendamento do terreno que foi celebrado, que não confere à recorrente qualquer direito de propriedade sobre o mesmo terreno.
E quanto à imputada violação dos art.ºs 103.º e 120.º da Lei Básica, as questões já foram abordadas nos nossos acórdãos proferidos em 4 de Abril de 2019, 20 de Fevereiro de 2019 e 10 de Julho de 2019, nos Processos n.º 2/2019, 102/2018, 12/2019 e 13/2019, respectivamente, em que pronunciámos que, no caso de declaração da caducidade da concessão por decurso do prazo de arrendamento do terreno, não se vislumbra nenhuma violação das normas em causa.
Dá-se aqui por integralmente reproduzido a nossa fundamentação exposta nos referidos acórdãos.
4. Decisão
Face ao exposto, nega-se provimento aos recursos.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 12 UC.
Macau, 29 de Novembro de 2019
Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
1 Cfr. Ac. do TUI, de 13 de Março de 2019 e de 4 de Abril de 2019, Proc. n.º 16/2019 e n.º 2/2019.
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Processo n.º 79/2019