Processo n.º 70/2019
(Autos de recurso cível)
Data: 24/Outubro/2019
Descritores:
- Enriquecimento sem causa
- Prova de factos negativos
SUMÁRIO
São pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa a existência de um enriquecimento, a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem e a ausência de causa justificativa para o enriquecido.
No tocante ao último pressuposto, não basta que não se prove a existência de uma causa de obtenção de vantagem patrimonial, antes é necessário convencer o Tribunal da falta de qualquer causa.
A falta de prova do empréstimo não implica necessariamente que a deslocação patrimonial não tem causa justificativa, devendo a Autora fazer prova desta factualidade.
A base instrutória pode conter factos positivos e negativos, desde que tais factos sejam constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos do direito ou da pretensão invocadas.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo n.º 70/2019
(Autos de recurso cível)
Data: 24/Outubro/2019
Recurso final
Recorrente:
- A (Autora)
Recurso subordinado
Recorrente:
- B (Réu)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Inconformada com a sentença que julgou improcedente a acção intentada pela Autora A contra o Réu B, em que se pedia a condenação deste no pagamento de HKD7.818.958,00 acrescido de juros vincendos, recorreu aquela jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“a. Vem o presente recurso interposto da sentença de 22/06/2018 que julgou improcedente a acção contra o R., C (C), absolvendo-o do pedido formulado pela A.
b. Não se conforma a A., ora recorrente, com a decisão recorrida, porquanto com o devido respeito, no seguimento da acção com o n.º CV3-13-0059-CAO, estão preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa, pelo que a acção não deveria ter sufragado.
c. Dá-se aqui por reproduzida integralmente a matéria de facto assente e aquela que resultou provada em audiência: apenas um quesito, de cuja resposta resultou que a quantia transferida pela A. para a conta do R. foi por este utilizada.
d. Entende a A. recorrente que, face à matéria assente, estão preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa, porquanto é essa mesma a ideia do instituto em causa.
e. Isto é, naquela primeira acção (CV3-13-0059-CAO) a A. alegou (mas não provou) que o R. (e os seus pais) lhe haviam solicitado um empréstimo de HKD$5.000.000,00.
f. Mas já então se provara que a A. havia, à custa do seu património, passado aquela quantia da sua conta bancária para a conta bancária do R.
E, agora, nos presentes autos provou-se aquela transferência e que o valor da mesma foi pelo R. utilizado.
g. Há, assim, uma desconformidade da prestação da A. com o Direito, quando o R. a recebe e utiliza; quando o R. enriquece à custa do empobrecimento da A.
Houve uma vantagem patrimonial do R. à custa da A. e a “ausência de causa” para a mesma resulta de não se ter verificado que a prestação advém de uma fonte válida ou mesma de fonte alguma.
h. Entende, por isso, a recorrente que a falta de causa – alegada na sua petição (v. art.º 20º da p.i.) – resulta exactamente de se não ter provado que aquela transferência de património teve por base uma qualquer razão subjacente à mesma.
Se assim não fosse (e é), então, deveria tal questão ter sido levada à base instrutória. O que não aconteceu porque não pertinente à procedência do pedido.
i. Entende a recorrente que os presentes autos são um complemento subsidiário daquela outra identificada acção.
Então, a A. invocou um empréstimo que, contudo, não logrou provar; e o R. um investimento em casinos da RAEM – que ora reiterou – e que, também, não logrou provar.
Subsiste, então, uma transferência efectuada em benefício do R. que a A. suportou.
j. O enriquecimento do R. não tem causa justificativa porque, nos termos da “princípio geral”, que regula o instituto (467º, n.º 2 do CC), ou foi “indevidamente recebido”, ou “recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.
k. Aliás, contrapondo à posição assumida no acórdão recorrido – que a A. “… nem alegou menos provou outros factos demonstrativos da falta de causa justificativa da transferência …” – entende o recorrente que não lhe é possível provar um facto negativo, ou seja, de que a transferência não teve uma causa justificativa.
l. De um lado, a A. invocou um empréstimo; do outro lado, o R., um investimento em casinos.
Não se tendo provado uma e outra causa alegada, justificativa da transferência patrimonial, a conclusão é a de que inexiste “causa justificativa”.
m. E esta inexistência determina a obrigação de restituir aquilo com que o R. enriqueceu à custa da A.
O enriquecimento sem causa é matéria residual que provém do facto de, nem uma nem outra das posições assumidas, se terem provado.
Houve, nos autos “subjudice”, subsidiariamente em relação aqueloutros já identificados, um aumento do património do R. em detrimento do património da A., por causa não apurada (“ausência de causa justificativa”), sendo que esta finalidade não apurada, determina a restituição.
n. Provado que foi que o R. recebeu da A. a quantia que lhe foi transferida e que utilizou a mesma – repare-se, a referência na matéria de facto à utilização da mesma, (e não só ao seu recebimento), o que pressupõe o proveito próprio do R. – e não se tendo provado uma causa adequada àquele enriquecimento do R. por empobrecimento da A., então, com o devido respeito, entende a recorrente que o seu pedido deveria ter procedido.
o. Improcederia o pedido da A., isso sim, se o R. tivesse logrado provar que aquela transferência da A. se destinava a um investimento que, como disse, falhou.
Termos em que, como se peticiona, deverá ser dado provimento ao presente recurso.
Assim se fazendo JUSTIÇA!”
*
Ao recurso respondeu o Réu, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“1. 在本案中,上訴人不認同原審法庭認定原被告之間已獲證的事實不符合“不當得利”的構成要件。為此,上訴人針對原審法庭的裁判提起上訴。
2. 對此,在尊重原告不同見解的前提下,被告表示不予認同。
3. 根據《民法典》第467條第1款之規定,構成“不當得利”必需同時具備三個要件: 第一、獲得了財產利益意義上的得利;第二、被質疑的得利缺乏說明理由,或因為根本不具備此等理由,或雖以開始有但已喪失;第三、得利是因聲請返還者受損失而獲得,兩者緊密相關。
4. 首先,關於“獲得了財產利益意義上的得利”,透過卷宗內的證據及證人的口供,原告所提供的證據均不能證明被告在提取相關款項後為自身利益而使用相關款項,或證明被告在財產上有增加或負債有所減少。
5. 其次,關於“無合理原因”方面,原告曾於2013年7月29日針對被告提起卷宗編號為CV3-13-0059-CAO的宣告之訴,原告縷述其轉賬予被告的款項屬借予被告購買樓宇,但基於證據不足以證實債務關係存在而被駁回請求。
6. 由此可見,原告透過銀行轉賬予被告的款項並不是沒有合理的原因,而是原告未能提供足夠的證據予以支持。“無合理原因”及“無獲證明的原因”之間存在明顯的分別,在本案中原告提出的訴因明顯屬於是“無獲證明的原因”。
7. 正如Abílio Neto教授所述,“Um dos pressupostos do enriquecimento sem causa é o de que o enriquecimento carece de causa justificativa. Tal pressuposto (falta de causa) terá não só de ser alegado como provado, de harmonia com o princípio geral estabelecido no art 342 do CC por quem pede a restituição, não bastando, para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus probandi que não se prove a existência de uma causa de atribuição, sendo preciso convencer o Tribunal da falta de causa.”
8. 同時,在本案中原告並沒有提供任何證據以證明其轉賬予被告是沒有正當理由的,相反,原告在先後提起的兩個訴訟中均強調有關的轉賬屬借款買樓之用。
9. 最後,關於得利是因聲請返還者受損失而獲得方面且兩者緊密相關,卷宗內原告沒有提出任何證據以證明,原告在財產方面的損失與被告有緊密聯繫。
10. 基於此,本案中已獲證的事實並不符合“不當得利”的構成要件,請求法官 閣下裁定上訴人的上訴理由不成立,並駁回全部請求。
綜上所述,請求 閣下裁定上訴人的上訴理據不成立,在此基礎上維持初級法院的判決以及判處上訴人承擔所有的訴訟費及被上訴人的職業代理費。
請求一如既往作出公正裁決!”
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Por sua vez, inconformado com a decisão que julgou improcedente o pedido de condenação da Autora como litigante de má fé, o Réu interpôs recurso subordinado tendo apresentado as seguintes conclusões alegatórias:
“1. 由於原告黃月連不服本案判決於2018年7月13日提起平常上訴,為此,附帶上訴人亦根據《民事訴訟法典》第587條第2款之規定針對判決書中“惡意訴訟”部份提起本附帶上訴。
2. 在本案中,原告清楚知道起訴狀分條縷述中第3至8條所陳述的事實早已於卷宗編號CV3-13-0059-CAO作審理及被認定為不可信。但原告在本訴訟程序中仍繼續堅持相關說法,事實上,原告在起訴狀中分條縷述的第3至8條屬歪曲事實,最終原告也未能提供相關的證明以證實相關情況。
3. 另一方面,原告在本案中一直強調匯至附帶上訴人帳戶的款項屬借予其買樓用途,惟原告卻濫用卷宗編號CV3-13-0059-CAO訴訟程序中被證實的一項事實“HK$5,000,000.00(港幣伍佰萬圓正)已匯入被告帳戶內”,據此試圖另行透過不當得利的方式實現其訴訟請求。
4. 同時,透過卷宗編號CV3-13-0059-CAO的判決原告理應知悉,其請求被駁回的原因是法庭已接納被告所提出的爭執事實,亦即是原告所匯入被告帳戶內的款項屬其借予G作疊碼用途的款項,其目的是收取高昂的利息。
5. 而法庭並沒有將相關事實羅列於清理批示的調查基礎內容當中,是因為法庭認為: “被告在答辯狀內沒有提出任何抗辯和反訴,而僅僅針對原告的事實版本提出爭執,既然構成爭執,被告須作出的僅為質疑原告提出的事實版本,使法庭回答“不獲證實”有關事實事宜,因此,本案中無須證實被告提出的相反版本也能達至防禦的效果,故此,也沒有必要將答辯狀的內容增加至調查基礎。”
6. 由此可見,原告存在故意歪曲法庭確認其已將款項匯至被告帳戶內的真正含意,而有關真相對案件裁判又屬相當重要。並非如原審法庭所述,原告提起本訴訟程序的目的是基於對法律的不同理解,而再次提起訴訟程序以維護權益。
7. 更何況,原告不論在卷宗編號CV3-13-0059-CAO訴訟程序中抑或本案中的訴因,一直強調匯至附帶上訴人帳戶內的款項屬借款性質,用以協助被告購買樓宇之用。而《民法典》已有特定章節去規範借出人與貸與人的權利與義務及相關的違約責任。
8. 在此情況下,原告理應根據相關的規定去主張其權益。原告實不應在根據相關消費借貸的法律規定去提起訴訟但被駁回後,回頭再以不當得利為由重覆提出相同主張。
9. 根據《民事訴訟法典》第385條第2款a)及b)項的規定,附帶上訴人認為,原告在本案中所採用的手法明顯屬於惡意訴訟行為,應受到讉責及懲處。
10. 綜上所述,根據《民事訴訟法典》第386條第1款及第2款的規定,原告應該就本訴訟而對附帶上訴人所引致的損失承擔賠償責任,有關責任範圍最起碼為附帶上訴人因本訴訟而產生的開支,當中包括律師服務費MOP$35,000.00(澳門幣叁萬伍仟圓正)。
綜上所述,請求 閣下認定載於本上訴理據陳述之全部事實及法律理由成立,並在此基礎上,裁定附帶上訴之全部理由成立。
請求 閣下作出公正裁決!”
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Ao recurso subordinado não respondeu a Autora.
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Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
A A. A é tia do R. B, entre eles tendo havido, até meados de 2013, uma relação de grande proximidade. (alínea A) dos factos assentes)
Em 29 de Julho de 2013, a A. intentou uma acção contra o R. e os pais deste – D e F. (alínea B) dos factos assentes)
Nesta acção distribuída sob o n.º CV3-13-0059-CAO, a A. ter concedido um empréstimo, terminava, formulando o pedido da condenação solidária dos então Réus ao pagamento da quantia de HKD5.000.000,00, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, deste 7 de Março de 2011. (alínea C) dos factos assentes)
No decurso da mesma, deram-se como assentes os seguintes factos:
“- Em 8 de Fevereiro de 2006, a 2ª ré F e o 3º réu D adquiriram a fracção sita na Avenida ......, nº ...-..., ...... Hou Teng, ...º andar ... e um lugar de estacionamento situado no mesmo prédio (9C/V2).
- Em 27 de Julho de 2011, o 1º réu celebrou com a 2ª ré e o 3º réu, perante o notário privado Luís Reigadas, a escritura de compra e venda relativa à fracção sita na Avenida ......, nº ...-..., ...... Hou Teng, ...º andar ... e um lugar de estacionamento situado no mesmo prédio (9C/V2).
- O declarado preço de compra e venda foi de MOP5.160.000,00.
- Acresce que, o 1º réu, ao adquirir a fracção sita na Avenida ......, nº ...-..., ...... Hou Teng, ...º andar ... e um lugar de estacionamento situado no mesmo prédio (9C/V2), deu de hipoteca os bens imóveis ao Banco Tai Fung, S.A.R.L., pelo valor de HKD2.500.000,00, sendo a hipoteca com o número de 126176C.
- Em 26 de Outubro de 2012, o 1º réu B novamente pediu empréstimo ao Banco Tai Fung, S.A.R.L., no valor de HKD1.500.000,00, e deu de segunda hipoteca os referidos bens imóveis, com o número de hipoteca de ****05C.
- Em 6 de Dezembro de 2010, a autora transferiu, através do Banco da China (Hong Kong), HKD3.000.000,00 para a conta nº191110****** do 1º réu B aberta no Banco da China (Macau), transferência nº 1210120692******.
- Depois, a Autora transferiu, em 13 de Janeiro de 2011 e 7 de Março de 2011, e através do Banco da China (Hong Kong), HKD2.000.000,00 para o 1º réu, transferência nºs 1211011392****** e 1211030735******.
- A Autora A é a tia do 1º réu B e a irmã da 2ª ré F; e a 2ª ré F e o 3º réu D são mulher e marido.” (alínea D) dos factos assentes)
A acção improcedeu por decisão transitada em julgada em 5 de Julho de 2016. (alínea E) dos factos assentes)
A quantia identificada em D) e transferida pela A. para a conta do R. foi por este utilizada. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
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Está em causa a seguinte decisão:
“Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Argumenta a Autora que tinha instaurado uma acção ordinária sob o processo n° CV3-13-0059-CAO, no qual pediu a condenação do Réu na devolução da quantia HKD$5.000.000,00, quantia que aquela tinha emprestado ao Réu para aquisição do imóvel, que este não lhe devolveu no prazo acordado.
No entanto, essa acção foi julgada improcedente por sentença transitada em julgado por não ter provado o empréstimo feito pela Autora ao Réu.
Vem instaurar, novamente essa acção, invoca os factos tidos por provados naquela acção que consiste, essencialmente, a transferência da quantia HKD$5.000.000,00 pela Autora na conta bancária do Réu, agora com o fundamento de enriquecimento sem causa, alegando que não houve causa justificativa da transferência do dinheiro, por não se provar a causa alegada naquele processo que é empréstimo.
Na contestação, o Réu reiterou os mesmos fundamentos da defesa no processo anterior, que é o dinheiro transferido pela Autora se destinou G, parente de ambos, que a Autora emprestou a este com a finalidade de obter juros remuneratórios elevados.
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Enriquecimento sem causa
A resolução do litígio colocado pelas partes prende-se unicamente à questão do enriquecimento sem causa por parte do Réu, com que confere à Autora o direito da restituição da quantia reclamada.
Estatui-se o disposto do art°467° do C.C., “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.”
Segundo o ensinamento do Antunes, in Obrigações em Geral, 7ª edição, Vol. I. pág. 467, o instituto de enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: i) que haja um enriquecimento de alguém; ii) que o enriquecimento careça de causa justificativa; iii) que ele tenha obtido à custa de quem requer a restituição (ou do seu antecessor).
Conforme os factos tidos por assentes, fica provado que a Autora, em 6 de Dezembro de 2010, através do Banco da China (Hong Kong), HKD$3.000.000,00 para a conta n°191110****** do Réu aberto no Banco da China (Macau) e em 13 de Janeiro de 2011, 7 de Março de 2011, mais a quantia de HKD$2.000.000,00, para o Réu.
Ou seja, foi efectivamente transferida para a conta bancária do Réu pela Autora a quantia no total de HKD$5.000.000,00.
Vem comprovado que essa quantia foi utilizada pelo Réu.
Assim, não temos dúvidas que houve deslocação do património da Autora para o Réu, o que representa um empobrecimento do património da Autora e que o Réu beneficia dessa deslocação patrimonial, pois, o montante depositou directamente na conta bancária aberto em nome dele, daí o empobrecimento da Autora e o enriquecimento a favor do Réu.
Mas, para haver lugar o enriquecimento sem causa, não basta a verificação do empobrecimento por parte de quem pede a restituição e o enriquecimento, é ainda necessário o requisito de falta de causa justificativa da deslocação patrimonial pelo empobrecido a favor do enriquecido.
“A inexistência de causa é a condição mais propriamente caracterizadora da acção de locupletamento, uma vez que pressupões ter havido um enriquecimento injusto do réu, enriquecimento esse que, se não fosse injusto, não seria causa.” (L. P. Moitinho de Almeida, in Enriquecimento sem causa, 2ª edição, Almedina, pg. 66)
De acordo com o alegado pela Autora, na perspectiva dela, a deslocação patrimonial não é sem causa, pois, segundo ela, na acção anterior contra o Réu, o dinheiro foi transferido para a conta deste por motivo de empréstimo com o intuito de o financiar na aquisição do imóvel em Macau, só que essa causa não ficasse provada nessa acção.
Mas, a falta de provação da causa alegada como motivo para transferência do dinheiro não equipara a dizer que essa transferência é mesma sem causa justificativa.
Como se defendeu o Réu nessa acção e também na acção anterior, a causa de transferência de dinheiro para a sua conta não é empréstimo para ele, mas sim empréstimo destinado ao G, parente de ambas as partes, com a finalidade de obter juros remuneratórios elevados, a Autora entregou o dinheiro ao tal G mediante a conta bancária do Réu que na altura trabalhava para aquele.
Todavia, feito o primeiro julgamento, não se ficou provada a versão de empréstimo alegada pela Autora.
Repara-se, no litígio na acção CV3-13-0059-CAO, quem tem o ónus de prova dos factos pressupostos de empréstimo é a própria Autora, cabendo-lhe o ónus de fazer prova dos pressupostos constitutivos do direito que pretendeu exercer, enquanto cabe ao Réu a fazer contraprova com a finalidade de convencer o Tribunal mesmo a inverdade dos factos ou fazer duvidar a veracidade dos factos alegados pela Autora.
Em função da regra geral de provas, não é necessário para o Réu de provar os factos contrários invocados na sua contestação para operar a impugnação dos factos articulados pelo Autor. O Tribunal não considerou provada como motivo da transferência do dinheiro para a conta bancária do Réu a concessão de empréstimo poderá ser por causa de falta absoluta de provas, mas também poderá ser por causa de ter sido convencido pela existência de outra causa.
Por esse raciocínio, a falta de prova do empréstimo não implica que não há por atrás da transferência do dinheiro qualquer causa, menos injustificativa.
Voltaremos ao caso presente, a Autora limitou-se a transcrever os factos tidos por assentes na sentença proferida no processo CV3-13-0059-CAO, não foram descritas as outras circunstâncias fácticas que lhe levaram a fazer tal transferência. A mera não provação do motivo de transferência é o empréstimo naquele processo não significa que a transferência é sem causa.
A transferência do dinheiro pela Autora na conta bancária do Réu poderia provavelmente ter alguma causa detrás.
Aliás, a falta de causa é elemento constitutivo do enriquecimento de causa, incumbe quem pretende obter a restituição o ónus de prova de alegação e prova desse facto.
Poderá ter como verificado esse elemento com base puramente na falta de apurar a causa de transferência?
Cremos que não. É que foi apurada a causa da transferência não é o mesmo dizer que não há causa.
“Um dos pressupostos do enriquecimento sem causa é o de que o enriquecimento carece de causa justificativa. Tal pressuposto (falta de casua) terá não só de ser alegado como provado, de harmonia com o princípio geral estabelecido no art°342° do C.C. por quem pede a restituição, não bastando, para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus probandi que não se prove a existência de uma causa de atribuição, sendo preciso convencer o Tribunal da falta de causa.” (Ac. do T.R. da Évora, de 24/10/1996, in Código Civil Anotado, Abílio Neto, pg. 415, nota 55)
Como se decidiu noutro acórdão pelo S.T.J, num caso semelhante ao presente de que o Autor não conseguiu provar a causa alegada para a atribuição patrimonial, “Para que a acção de enriquecimento sem causa proceda não basta que não se prove a existência de uma causa justificativa de atribuição patrimonial, é antes necessário que se prove a falta de causa de deslocação patrimonial, nos termos da regra geral sobre o ónus probandi estatuído no artigo 342° do Código Civil, por essa carência de causa justificativa ser facto constitutivo de quem requer a restituição do indevido.
As respostas negativas que os quesitos recebam apenas significam que a respectiva matéria de facto ficou por provar, e não que tenha ficado provado o contrário.
Assim, a conclusão a tirar de tais respostas é a de que não ficou provado que a causa da prestação de determinada importância fosse a invocada pelo autor ou a alegada pelos réus, ou qualquer outra, nem tampouco a falta de causa dessa atribuição patrimonial, pelo que o pedido de restituição da aludida importância, fundado no enriquecimento sem causa, não pode deixar de ser desatendido. (S.T.J., de 15/12/1977, in B.M.J., 272, p.196)
No caso em apreço, a Autora, na presente acção (como continuação da acção CV3-13-0059-CAO), sustentou o pedido de enriquecimento sem causa somente na falta de prova de empréstimo, causa da transferência de dinheiro alegada na acção anterior, nem alegou menos provou outros factos demostrativos da falta de causa justificativa da transferência, falhou-se no cumprimento do seu ónus de prova prescrita no n°1 do art.º 335º do C.C., a consequência não pode ser outra senão decidir-se em desfavor dela.
Assim, por falta de verificação dos requisitos do enriquecimento sem causa, julga-se improcedente o pedido de restituição.
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Litigância de má fé
Na contestação, suscitou o Réu que a Autora tinha litigado com má fé na propositura da nova acção contra ele, reiterando os mesmos fundamentos fácticos que o Tribunal não acolheu no processo CV3-13-0059-CAO.
Prevê-se o n°2 do artigo 385º do Código de Processo Civil:
“Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a)Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b)Tiver alterado a verdade dos factos ou omitidos factos relevantes para a decisão da causa;
c)Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d)Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção de justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Aí se distingue entre dolo substancial e dolo instrumental.
“O dolo substancial diz respeito ao fundo da causa, ou melhor, à relação jurídica material ou de direito substantivo; o dolo instrumental diz respeito à relação jurídica processual” Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume II, pág. 263.
No presente processo, os efeitos jurídicos pretendidos pela Autora são, de factos, os mesmos alegados na acção ordinária CV3-13-0059-CAO.
No entanto, nessa vez, a Autora fundamentou o mesmo pedido com base noutra causa de pedir, que é o enriquecimento sem causa.
Na verdade, a matéria fáctica alegada nos presentes autos é quase os mesmos factos que foram considerados provados na acção acima referida, mas pretende a Autora fazer uma interpretação jurídica diferente dos factos ora provados, com a alegação de falta de causa justificativa da deslocação patrimonial, matéria que não tinha sido invocada pela Autora na acção anterior.
Na perspectiva da Autora, o caso não se consubstancia no contrato de mútuo, poderá ser enquadrar-se no instituto de enriquecimento sem causa, o que se traduz no enquadramento de outra causa de pedir para sustentar o seu pedido de restituição.
Embora a pretensão da Autora não tenha sido acolhida pelo Tribunal, mas não significa que a sua pretensão carece, absolutamente, de fundamento legal, ultrapassando, de forma injustificada, o âmbito do normal exercício do direito para tutelar os seus interesses.
Portanto, não se entende que a Autora está a litigar com má fé.
Nestes termos, julga-se improcedente o pedido de condenação da Autora na litigância de má fé, e em consequência disso, improcede também o pedido de indemnização quanto aos honorários do mandatário formulado pelo Réu.
***
IV) DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção formulada pela Autora e, em consequência, decide:
1) Absolver o Réu B, de o pedido formulado pela Autora A;
2) Julga-se improcedente o pedido de litigância de má fé formulada pelo Réu;
3) Em consequência disso, absolver-se a Autora do pedido de indemnização formulado pelo Réu.
*
Custas da acção pela Autora e do incidente de litigância de má fé pelo Réu em 5 Uc.
*
Registe e Notifique.”
Analisada a douta sentença de primeira instância que antecede, louvamos a acertada e perspicaz decisão com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito aí exposta, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC.
Apenas mais umas achegas.
Conforme se refere na douta sentença, são pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa a existência de um enriquecimento, a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem e a ausência de causa justificativa para o enriquecido.
E no tocante ao último pressuposto, não bastará que não se prove a existência de uma causa de obtenção de vantagem patrimonial, antes é necessário convencer o Tribunal da falta de qualquer causa.
No mesmo sentido, e a título de direito comparado, podem ver-se, entre outros, os seguintes Acórdãos:
- do STJ, de 24.3.2017, Proc. 1769/12.5TBCTX.E1.S1: “I – Para que se constitua uma obrigação de restituir fundada no enriquecimento, não basta que uma pessoa tenha obtido uma vantagem patrimonial, à custa de outrem. II – É ainda necessário que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, quer porque nunca a houve, por não se ter verificado o escopo pretendido, ou, porque, entretanto, deixou de existir, devido à supressão posterior desse fundamento. III – A falta originária ou subsequente de causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito à restituição. IV – Cabe ao autor do pedido de restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos respectivos factos integradores ou constitutivos, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento. V – Não tendo o autor demonstrado a falta de causa justificativa, improcede o pedido de restituição, com fundamento no enriquecimento sem causa(…)”;
- do TRC, de 1.4.2014, Proc. 3221/10.4T2AGD.C1: “I – Fundamentando a autora a sua pretensão no instituto de enriquecimento sem causa, a ausência de causa terá de ser não só alegada, como provada, de harmonia com o critério geral estabelecido no art.º 342.º, por aquele que pede a restituição. II – Não bastará, para esse efeito, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer ainda o Tribunal da falta de causa, mesmo que demonstrada a deslocação patrimonial. III – Tendo a autora alegado em acção prévia que os serviços prestados à ré o haviam sido no âmbito da celebração de um contrato, que não logrou provar, daqui não se segue que a eventual vantagem que daí decorra para a demandada fique sem causa, a legitimar o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa.”;
- do TRC, de 9.1.2018, Proc. 1485/14.3TBLRA.C1: “IV – A falta originária ou subsequente da causa justificativa do enriquecimento assume a natureza de elemento constitutivo do direito, pelo que, a simples prova da obtenção de uma vantagem patrimonial não pode servir de fundamento para pedir a sua restituição, cabendo antes ao autor do pedido de restituição, por enriquecimento sem causa, o ónus da prova dos respetivos factos integradores ou constitutivos, incluindo a falta de causa justificativa desse enriquecimento, mesmo em caso de dúvida, cujo incumprimento se resolve em seu desfavor. V – Assim, quando a ação de enriquecimento sem causa se funda na circunstância de ter ocorrido uma poupança de despesas pelos demandados, o demandante (empobrecido) precisava de demonstrar que não existia qualquer causa para tanto. (…)”
No caso em apreço, provado não está que houve empréstimo concedido pela Autora a favor do Réu. Por outro lado, também não logrou a Autora fazer prova de que a respectiva prestação patrimonial não tem causa justificativa. Em bom rigor, uma coisa é não haver empréstimo, outra é não haver causa justificativa para efeito de funcionamento do instituto do enriquecimento sem causa. A falta de prova do empréstimo não implica necessariamente que a deslocação patrimonial não tem causa justificativa, devendo a Autora fazer prova desta factualidade.
E não se diga que a Autora está impedida de fazer prova dos factos negativos.
Como observa Viriato de Lima1: “Na elaboração da base instrutória devem ter-se em atenção as regras do ónus da prova, isto é quais os factos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos do direito ou da pretensão invocadas (arts. 335.º e segs. do CC). São esses factos que hão-de constar da base instrutória. Assim, a base instrutória poderá conter factos positivos e negativos, desde que tais factos sejam constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos do direito ou da pretensão invocadas.”
Isto posto, há-de negar provimento ao recurso interposto pela Autora.
E em relação ao recurso do Réu, conforme dito na sentença recorrida, e bem, não obstante que a Autora intentou nova acção alegando os mesmos fundamentos de facto, mas formulou o pedido com novo fundamento jurídico, seguindo o caminho proposto pelo Acórdão do Processo n.º 969/2015 deste TSI, apenas não logrou elaborar o articulado como deve ser, pelo que não se vislumbra, a nosso ver, qualquer violação do dever de probidade, cooperação e de boa fé a que se alude no artigo 385.º do CPC, devendo, assim, negar provimento ao recurso.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento aos recursos, principal e subordinado, interpostos pela Autora A e pelo Réu B, respectivamente.
Custas pelos recorrentes nos respectivos recursos.
Registe e notifique.
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RAEM, 24 de Outubro de 2019
(Relator)
Tong Hio Fong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
1 Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, pág. 405
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Recurso Cível 70/2019 Página 21