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Processo nº 1068/2019 Data: 21.11.2019
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Liberdade condicional.
Pressupostos.



SUMÁRIO

1. A liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.

2. É de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social.

3. A liberdade condicional não é de conceder quando o percurso até ao momento experienciado pelo condenado não oferece ainda suficiente segurança para sustentar um “juízo positivo” acerca do seu comportamento futuro quando em meio livre, aconselhável sendo um acrescido período de reclusão, por forma a ser possibilitada uma melhor interiorização do desvalor da conduta.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 1068/2019
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, com os restantes sinais dos autos e ora preso no Estabelecimento Prisional de Coloane (E.P.C.), vem recorrer da decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, motivando para, a final, concluir, imputando à decisão recorrida a violação do disposto no art. 56° do C.P.M.; (cfr., fls. 195 a 203 que como as que adiante se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os legais efeitos).

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Em resposta, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público no sentido da improcedência do recurso; (cfr., fls. 205 a 206-v).

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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Inconformado com o despacho de 13 de Setembro de 2019, que lhe recusou a liberdade condicional, dele recorre o recluso A.
Na sua motivação de recurso, sustenta que todos os requisitos exigidos para a concessão da almejada liberdade condicional estavam preenchidos, pelo que, ao denegar a libertação condicional, a decisão recorrida teria efectuado uma incorrecta apreciação dos pressupostos substanciais para tanto necessários, incorrendo em erro notório na apreciação da prova e tendo violado o artigo 56.° do Código Penal.
Na sua contraminuta de recurso, o Ministério Público pronuncia-se pelo acerto e pela manutenção da decisão recorrida.
Está em causa ajuizar se estão ou não preenchidos os requisitos materiais de que a lei faz depender a concessão da liberdade condicional.
É sabido que a liberdade condicional é de aplicação casuística, dependendo a sua concessão do juízo de prognose indiciador de que o recluso vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em consonância com as regras de convivência, bem como da ponderação da compatibilidade entre a libertação antecipada e a defesa da ordem jurídica e da paz social. Trata-se, no fundo, de verificar se estão satisfeitas as exigências de prevenção especial e de prevenção geral, tal como imposto pelo artigo 56.°, n.° 1, do Código Penal.
A análise efectuada no despacho recorrido e a decisão adoptada estribou-se em provas oferecidas pelos autos, quer resultantes de factos adquiridos no(s) processo(s) condenatório(s), quer insertas no processo administrativo do estabelecimento prisional destinado a instruir o processo de liberdade condicional. Trata-se de elementos predominantemente objectivos de prova, que só um eventual lapso de datas poderia conduzir a que se deixasse subentender que o crime de falsificação objecto de julgamento no processo CR4-10-0215-PCC fora cometido após a liberdade condicional concedida no cumprimento da pena aplicada no processo PCC-057-03-1 (posterior CR1-03-0016-PCC). Crê-se, todavia, que nem sequer existe esse lapso, pois o que conseguimos ler, a partir da versão portuguesa do despacho, é que esta não é a primeira vez que o condenado cumpriu pena de prisão, após ser concedida a liberdade condicional, estando em causa pena de prisão por ter praticado, de forma sucessiva, em dois casos, crimes de carácter idêntico, ou seja, falsificação de documento. Temos, pois, que nem sequer se detecta o aventado lapso. E ainda que o despacho tivesse incorrido nesse lapso, sempre seria insofismável que, após beneficiar da falada liberdade condicional, o recorrente cometeu o crime de falsificação por que foi condenado no processo CR5-18-0006-PCC, o que conferiria pleno respaldo ao raciocínio em que assentou o juízo sobre a questão da prevenção especial.
Não se vislumbra, assim, qualquer erro relevante na apreciação da prova.
Quanto à observância dos requisitos materiais, parece que, tal como ponderou o despacho recorrido, não se mostram, desde logo, satisfeitas as necessidades em sede de prevenção especial.
O recorrente não sendo primário, beneficiou anteriormente de uma concessão de liberdade condicional, através da qual não se logrou comprovar o juízo de prognose favorável que lhe presidiu, tanto mais que voltou a incorrer na prática de um crime de falsificação. E regista um comportamento regular, em contexto prisional, tendo-se envolvido recentemente com outro recurso em episódio, ainda não totalmente esclarecido, mas que envolve dinheiros.
Neste contexto, não é possível arriscar um juízo de prognose favorável sobre a sua reinserção na sociedade em conformidade com as regras de convivência, como acabou por concluir o despacho recorrido.
Depois, importa não perder de vista a questão da prevenção geral. Prevenção geral positiva ou de integração, enquanto exigência de tutela do ordenamento jurídico, que se manifesta, é certo, primordialmente no momento chave da aplicação da pena, mas que não pode menosprezar-se na avaliação das condições de concessão da liberdade condicional – cf. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, parágrafos 283 e 852.
Também deste ponto de vista, e ponderando o círculo de interesses no âmbito dos quais se produziu o dano ocasionado pelas condutas delituosas do recorrente, que, por mais que uma vez, pôs em causa a fé pública associada a documentos autênticos e de especial valor, é possível acompanhar as considerações aduzidas no despacho recorrido para julgar não satisfeito o requisito da prevenção geral.
Em conclusão, a decisão recorrida não padece de qualquer vício e efectuou uma correcta ponderação dos aspectos a considerar na concessão da liberdade condicional, em consonância com os comandos do artigo 56.° do Código Penal, pelo que, na improcedência da argumentação do recorrente, deverá ser negado provimento ao recurso”; (cfr., fls. 268 a 269-v).

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Corridos os vistos legais dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada obstando, vieram os autos à conferência.

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Flui dos autos a factualidade seguinte (com relevo para a decisão a proferir):

– A, ora recorrente, deu entrada no E.P.C. em 15.05.2017, para cumprimento de uma pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, resultado do cúmulo jurídico das penas que lhe foram aplicadas no âmbito dos Procs. n°s CR4-10-0215-PCC e CR5-18-0006-PCC, nos quais foi condenado pela prática dos crimes de “falsificação de documento de especial valor” e “falsificação de documentos”;
– em 14.09.2019, cumpriu dois terços de tal pena, expiando-a em 14.11.2020;
– se lhe vier a ser concedida a liberdade condicional, irá viver com a sua família, em Hong Kong, de onde é natural.

Do direito

3. Insurge-se o ora recorrente contra a decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, afirmando, em síntese, que se devia considerar que reunidos estão todos os pressupostos do art. 56° do C.P.M. para que tal libertação antecipada lhe fosse concedida.

Vejamos.

— Preceitua o citado art. 56° do C.P.M. (que regula os “Pressupostos e duração” da liberdade condicional) que:

“1. O tribunal coloca o condenado a pena de prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo 6 meses, se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
2. A liberdade condicional tem duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, mas nunca superior a 5 anos.
3. A aplicação da liberdade condicional depende do consentimento do condenado”; (sub. nosso).

Constituem, assim, “pressupostos objectivos” ou “formais”, a condenação em pena de prisão superior a seis (6) meses e o cumprimento de dois terços da pena, num mínimo de (também) seis (6) meses; (cfr. n.° 1).

“In casu”, atenta a pena única que ao recorrente foi fixada, e visto que se encontra ininterruptamente preso desde 15.05.2017, expiados estão já dois terços de tal pena, pelo que preenchidos estão os ditos pressupostos formais.

Todavia, e como é sabido, tal “circunstancialismo” não basta, já que não sendo a liberdade condicional uma medida de concessão automática, impõe-se para a sua concessão, a verificação cumulativa de outros pressupostos de natureza “material”: os previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do referido art. 56°.

Com efeito, importa ter em conta que a liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão; (cfr., v.g., J. L. Morais Rocha e A. C. Sá Gomes in “Entre a Reclusão e a Liberdade – Estudos Penitenciários”, Vol. I, em concreto, “Algumas notas sobre o direito penitenciário”, IV cap., pág. 41 e segs.).

Trata-se de um incidente de execução da pena de prisão a que preside uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização, e que assenta na formulação de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro e em liberdade, do condenado que já cumpriu parte considerável da pena; (cfr., Figueiredo Dias in, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 528).

Na esteira do repetidamente decidido nesta Instância, a liberdade condicional “é de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir óbviamente matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 25.07.2019, Proc. n.° 759/2019, de 05.09.2019, Proc. n.° 891/2019 e de 17.10.2019, Proc. n.° 992/2019, podendo-se também sobre o tema ver o Ac. da Rel. de Coimbra de 24.01.2018, Proc. n.° 540/16).

Assim, detenhamo-nos na apreciação de tais pressupostos de natureza material.

Ponderando na factualidade atrás retratada, poder-se-á dizer que é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, mostrando-se a pretendida liberdade condicional compatível com a defesa da ordem jurídica e paz social?

Cremos que de sentido negativo deve ser a resposta.

De facto, inviável se mostra o necessário juízo de prognose favorável, pois que o ora recorrente, que já beneficiou de uma liberdade condicional em sede de um processo onde cumpria pena de prisão pela prática de 10 crimes de “burla”, voltou, novamente a incorrer na prática dos crimes dos autos, (de “falsificação de documento de especial valor” e “falsificação de documentos”), pouco tempo após a concessão de liberdade condicional, não aproveitando as oportunidades concedidas, insistindo em delinquir e revelando, assim, uma personalidade com tendência para a prática de ilícitos que importa acautelar.

Com efeito, na formulação do juízo de prognose sobre o comportamento futuro do condenado, o tribunal deve ponderar os traços da sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena, as competências por si adquiridas no período de reclusão, o comportamento prisional, o seu relacionamento com o crime cometido, as necessidades subsistentes de reinserção social, e, em especial, as perspectivas de enquadramento familiar, social e profissional e a necessidades de protecção da vítima, quando disso seja caso. A liberdade condicional deverá ser concedida quando o julgador conclua que o condenado reúne condições que, razoavelmente, fundam a expectativa de que, uma vez colocado em liberdade, assumirá uma conduta conforme às regras da comunidade. Inversamente, a liberdade condicional deverá ser negada quando o julgador conclua que o condenado não reúne tais condições, seja porque o juízo contrário se revela carecido de razoabilidade, seja porque se revela temerário; (cfr., v.g., o recente Ac. da Rel. de Coimbra de 12.06.2019, Proc. n.° 3371/10).

Como também já tivemos oportunidade de considerar, a liberdade condicional não é de conceder quando o percurso até ao momento experienciado pelo condenado não oferece ainda suficiente segurança para sustentar um “juízo positivo” acerca do seu comportamento futuro quando em meio livre; (neste sentido, cfr., v.g., o recente Ac. da Rel. de Évora de 19.02.2019, Proc. n.° 13/16).

Assim, em face das expostas considerações, e sendo que verificado não está o pressuposto do art. 56°, n.° 1, al. a) do C.P.M., há que decidir em conformidade.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o arguido a taxa de justiça de 4 UCs.

Registe e notifique.

Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 21 de Novembro de 2019
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 1068/2019 Pág. 16

Proc. 1068/2019 Pág. 15