打印全文
Processo n.º 584/2019
(Autos de recurso cível)

Data: 21/Novembro/2019

Descritores:
- Princípio da cooperação
- Obtenção de informações junto de outros serviços

SUMÁRIO
Ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 8.º do Código de Processo Civil, compete ao Tribunal providenciar pela remoção de obstáculos, sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual.
Num incidente de separação de bens entre os cônjuges, sendo o recorrente credor da esposa do cabeça-de-casal, apesar de este ter apresentado uma relação de bens para todos os efeitos legais, mas para evitar a ocultação de bens pelo cabeça-de-casal, de modo a garantir os interesses do credor, o requerimento formulado pelo recorrente no sentido de oficiar à Conservatória do Registo Predial para obtenção de informações é totalmente justificado.
Na medida em que os cônjuges são casados no regime da comunhão dos adquiridos e não no regime da separação, só deixa de fazer parte da comunhão os bens que sejam considerados excluídos do património em participação a que se alude nos artigos 1584.º a 1590.º, sendo verdade que os rendimentos do trabalho auferidos pelos cônjuges fazem parte do activo da comunhão conjugal (artigo 1583.º, alínea a) e artigo 1604.º, n.º 1 a contrario do CC).
Assim, a diligência solicitada, no sentido de obter informações sobre a situação laboral e/ou profissional da cabeça-de-casal, se reputa essencial para a salvaguarda dos interesses do credor, ora recorrente.


O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo n.º 584/2019
(Autos de recurso cível)

Data: 21/Novembro/2019

Recorrente:
- A (exequente)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que A, com sinais nos autos (doravante designado por “recorrente”), move contra a executada B, corre no Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base um processo de separação de bens entre os cônjuges em que é requerente C, marido da executada.
Foi nomeado para exercer as funções de cabeça-de-casal o próprio requerente C.
Prestadas as declarações, o requerente apresentou a relação de bens.
Por requerimento de 30.10.2018, o recorrente solicitou ao Tribunal recorrido, entre outros pedidos, se dignasse oficiar às Conservatórias do Registo Predial e dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau para informarem da existência de bens aí registados em nome do cabeça-de-casal, bem como ao Fundo de Segurança Social para informar o Tribunal sobre a identidade da entidade patronal daquele mesmo indivíduo.
Por despacho de 7.11.2018, foi autorizado que se oficiasse à Autoridade Monetária de Macau para fornecer informações sobre os saldos de contas bancárias abertas em nome do cabeça-de-casal até 26.4.2018; à Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis para juntar aos autos a relação de bens registados em nome do cabeça-de-casal; e à Direcção dos Serviços de Finanças para apresentar os elementos ali encontrados e registados em nome do cabeça-de-casal.
E foram indeferidos os pedidos relativos à obtenção de elementos registados em nome do mesmo cabeça-de-casal junto da Conservatória do Registo Predial, e de informações sobre a situação laboral e/ou profissional do cabeça-de-casal junto do Fundo de Segurança Social.
Inconformado, recorreu o recorrente jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. Outro devia ter sido o sentido da decisão tomada no despacho de fls. 240 e 240v, que indeferiu o pedido de que se oficiasse a Conservatória do Registo Predial para informar da existência de bens aí registados em nome do C.
II. Primeiro, porque tal decisão viola o caso julgado formal (art.º 575º do CPC) formado sobre a decisão de fls. 201 e 201v que que ordenou ao cabeça-de-casal que prestasse informações relativas a contas bancárias individuais e contas bancárias conjuntas abertas depois do casamento com B e informações dos bens comuns do casal não incluídos na relação de bens.
III. Segundo, porque a cabeça-de-casal violou o dever de esclarecimento previsto no art.º 8º, n.º 3 do CPC e, por conseguinte, o dever de cooperação previsto no artigo 442º do mesmo diploma, quando, no seu requerimento de fls. 206, somente prestou informações relativas a contas bancárias individuais e contas bancárias conjuntas, omitindo qualquer referência à existência ou inexistência de outros bens comuns do casal não incluídos na relação de bens fls. 27 a 29.
IV. Terceiro, por não haver outra maneira de suprir a deliberada incompleição da resposta de fls. 206 e de obter informação fidedigna sobre a existência outros bens imóveis comuns do casal senão com o concurso do Tribunal e da Conservatória do Registo Predial por se tratar de matéria de carácter reservado.
V. Quarto, por não ser exacto que: “有關不動產證明書已附入卷宗”, ou seja, que as certidões da totalidade dos bens imóveis comuns do casal já estivessem juntas aos autos.
VI. Isto por a carta de fls. 232-233 mostrar apenas que a cabeça-de-casal e o seu marido são titulares de 7 bens imóveis, sem que isso signifique que não existam outros bens imóveis registados em nome da cabeça de casal e/ou do seu cônjuge que devam considerar-se incluídos na comunhão.
VII. Quinto, porque tal decisão viola o princípio da cooperação plasmado no artigo 8º, n.º 4 do CPC, designadamente, o dever (ou poder funcional) que o Tribunal tem de auxiliar as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento de ónus ou deveres processuais, com vista ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
VIII. Sexto, porque a manter-se o entendimento sufragado no despacho em causa, tal poderia acabar por interferir no conflito de interesses entre as partes por possibilitar a ocultação pelo devedor de bens susceptíveis de responder pelo cumprimento da obrigação (art.º 586º do CC).
IX. E isto, segundo cremos, contraria o espírito da lei (cfr. arts. 8º, n.º 4 e 106º, n.º 4, este último a contrario, do CPC).
X. Sétimo, porque tal decisão viola o princípio do inquisitório plasmado no artigo 6º, n.º 1 e 3 do CPC, segundo o qual o juiz só deve recusar o que for impertinente ou meramente dilatório, sendo que uma diligência de prova só pode considerar-se impertinente se não for idónea para provar o facto que com ele se pretende provar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa.
XI. Não encaixando manifestamente em nenhuma destas situações o requerimento apresentado em 30/10/2018 sobre o qual recaiu o despacho ora recorrido.
XII. Devia, pois, o Tribunal a quo, se entendesse não haver outras diligências mais adequadas, ter mandado notificar a Conservatória do Registo Predial para esta informar da existência eventual de outros bens imóveis registados em nome do Requerente, no sentido de permitir ao Credor/Interessado, ora Recorrente, exercer plenamente o seu direito de crédito sobre os bens comuns do casal.
XIII. Por outro lado, o Credor/Interessado, ora Recorrente, pretendeu também adquirir informações sobre a situação laboral e/ou profissional da cabeça-de-casal.
XIV. Para tanto, requereu a realização das diligências enunciadas no segundo e terceiro travessão do verso do requerimento apresentado em 30/10/2018 sob o n.º 103948/2018.
XV. A realização destas diligências foi, no entanto, indeferida pelo Tribunal a quo com o fundamento de que “cada um dos cônjuges tem ainda a administração dos proventos que receba pelo seu trabalho” (artigo 1543º, n.º 2 do CPC).
XVI. Mas, salvo o devido respeito, sem razão.
XVII. Primeiro, porque os rendimentos do trabalho auferidos pela cabeça-de-casal recebidos pelo Requerente fazem parte do activo da comunhão dos bens comuns do casal, face à regra imperativa do artigo 1607/1 do CC, sendo irrelevante quem deles tem a administração.
XVIII. Segundo, porque o Tribunal a quo estava obrigado a diligenciar no sentido de obter as informações pretendidas, até pelo seu caracter reservado, sob pena de violação do dever de auxílio previsto no artigo 8º, n.º 4 (princípio da cooperação) e do dever de não recusar o que não for impertinente ou meramente dilatório previsto no art.º 6º, n.º 1 do CPC (princípio do inquisitório).
Nestes termos, e nos demais de direito aplicáveis, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho de fls. 240 e 240v, na parte ora recorrida, com as legais consequências.”
*
Notificadas as restantes partes, ninguém vieram responder ao recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Está em causa a seguinte decisão recorrida:
“對於請求執行人聲請索取待分割財產管理人持有的不動產資料方面,考慮到有關不動產證明書已附入卷宗,為此,本庭決定不批准該部份的請求。
*
對於請求執行人聲請索取待分割財產管理人之個人收益資料方面,考慮到分割財產管理人並非本案被執行人,根據《民法典》第1543條第2款規定a)項規定夫妻各自可自行管理其工作收入,為此,本庭決定不接納該部份的請求。”
*
A questão que se coloca no presente recurso é saber se a decisão que indeferiu oficiar à Conservatória do Registo Predial para vir informar o Tribunal da existência de bens registados em nome do cabeça-de-casal C, e ao Fundo de Segurança Social para obter informações sobre a situação laboral e/ou profissional do mesmo, merece algum reparo.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, entendemos que as diligências requeridas deviam ser deferidas.
Vejamos.
No que toca ao pedido de se oficiar à Conservatória do Registo Predial, é bom de ver que, de acordo com a última parte do despacho proferido em 21.9.2018, foi ordenado ao cabeça-de-casal para juntar informações sobre as contas bancárias conjuntas abertas com a sua esposa depois do casamento; assim como informar o Tribunal da existência de outros bens comuns do casal mas que não foram discriminados na relação de bens.
Respondeu o cabeça-de-casal parcialmente ao solicitado, entretanto não veio informar o Tribunal se existia ou não outros bens comuns do casal.
Em consequência, o recorrente voltou a formular o mesmo pedido (vide requerimento de 30.10.2018).
Ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 8.º do Código de Processo Civil, compete ao Tribunal providenciar pela remoção de obstáculos, sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual.
Trata-se de uma das manifestações do princípio da cooperação, mais precisamente, do dever que o Tribunal tem de auxiliar as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou no cumprimento de ónus ou deveres processuais, com vista ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio.
Como se decidiu no Acórdão deste TSI, no Processo nº 632/2011, “o farol do tribunal não deve ser a verdade formal, a verdade adquirida no processo segundo as regras mais apertadas do ónus de prova, mas deve ser a verdade material, tanto quanto o princípio do inquisitório lhe permite uma actuação de facere comandada pelo art. 6.º, n.º 3 e densificada, entre outros, no art. 462.º, ambos do CPC. Deve, portanto, nortear-se pela verdade material e, nesse sentido, tudo fazer para que a justiça se faça e se realize a composição do litígio.”
Ora bem, uma vez que o cabeça-de-casal foi notificado para informar o Tribunal da existência ou não de outros bens comuns do casal, mas não tendo satisfeito integralmente o pedido, o Tribunal recorrido deveria ter insistido por resposta junto daquele.
Mas era capaz que o Tribunal recorrido tivesse considerado que a falta de resposta por parte do cabeça-de-casal se traduzia numa resposta negativa quanto à existência de outros bens comuns. Neste caso, também não podemos considerar inútil a diligência de prova solicitada pelo recorrente.
Em boa verdade, sendo o recorrente credor da esposa do cabeça-de-casal, apesar de este ter apresentado uma relação de bens para todos os efeitos legais, também não podemos excluir qualquer hipótese de ocultação de bens.
Assim, para evitar a ocultação de bens pelo cabeça-de-casal, de modo a garantir os interesses do credor, o requerimento formulado pelo recorrente no sentido de oficiar à Conservatória do Registo Predial é totalmente justificado.

Pediu ainda o recorrente que se oficie ao Fundo de Segurança Social para obter informações sobre a situação laboral e/ou profissional do mesmo cabeça-de-casal.
Entendeu a decisão recorrida que o pedido não pode ser deferido, por considerar que o cabeça-de-casal não é executado e que, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 1543.º do Código Civil, cada um dos cônjuges administra por si próprio os proventos que recebe por seu trabalho.
Ora bem, é certo que o cabeça-de-casal não é executado nem devedor do recorrente.
Contudo, não é pelo facto de os cônjuges ter o poder de administração dos rendimentos recebidos por seu trabalho que estes deixarão de constituir bem comum do casal.
Na medida em que os cônjuges são casados no regime da comunhão dos adquiridos e não no regime da separação, cada um dos cônjuges passa a ser titular em comunhão com o outro cônjuge dos bens adquiridos por qualquer dos cônjuges na constância daquele regime, que não sejam exceptuados por lei, participando por metade no activo e no passivo da comunhão (artigos 1603.º, n.º 1 e 1607.º, n.º 1 do CC).
E só deixando de fazer parte da comunhão os bens que sejam considerados excluídos do património em participação a que se alude nos artigos 1584.º a 1590.º, sendo verdade que os rendimentos do trabalho auferidos pelos cônjuges fazem parte do activo da comunhão conjugal (artigo 1583.º, alínea a) e artigo 1604.º, n.º 1 a contrario do CC).
No fundo, não obstante o cabeça-de-casal ter o poder de administrar os seus rendimentos, tal não significa que estes deixam de integrar a comunhão conjugal.
Aqui chegamos, somos a concluir que as diligências solicitadas, no sentido de obter informações sobre a situação laboral e/ou profissional da cabeça-de-casal, se reputa essencial para a salvaguarda dos interesses do credor, ora recorrente.
Merece, pois, provimento o recurso.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente A, revogando a decisão recorrida e, em consequência, deferindo a realização das diligências solicitadas por aquele.
Sem custas, por os recorridos não ter dado causa ao recurso.
Registe e notifique.
***
 RAEM, 21 de Novembro de 2019
 Tong Hio Fong
 Lai Kin Hong
 Fong Man Chong



Recurso Cível 584/2019 Página 1