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Proc. nº 811/2019
Recurso jurisdicional em matéria cível
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 07 de Novembro de 2019
Descritores:
- Prova
- Princípios da imediação e da livre apreciação da prova
- Interpretação da declaração negocial: art. 228º do CC

SUMÁRIO:

I - O princípio da imediação e da livre apreciação das provas impossibilita, em regra, o tribunal de recurso de censurar a relevância e credibilidade que o tribunal “a quo” tiver atribuído ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu. A partir do momento em que o julgador respeita o espaço de liberdade que é próprio da sua livre convicção e não ultrapassa os limites processuais imanentes, a sindicância ao seu trabalho, no tocante à matéria de facto, só nos casos e moldes restritos dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser efectuada.

II - Para se efectuar a interpretação do negócio, e concluir pela eventual divergência entre a vontade e a declaração negocial, importa alegar e provar a respectiva factualidade, porque a determinação da vontade real dos outorgantes é questão de facto e não de direito (art. 228º, nº2, CC).


Proc. nº 811/2019

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
A (A), do sexo masculino, de nacionalidade chinesa, adulto, solteiro, titular do BIRM n.º …, residente em Macau,…, ---
Instaurou no TJB (Proc. nº CV3-17-0011-CAO) acção declarativa com processo comum ordinário contra: ---
B (B), do sexo feminino, de nacionalidade chinesa, adulta, casada com C (C) no regime matrimonial patrimonial de separação, titular do BIRM n.º …, com o endereço de contacto sito em Macau,…---
Pedindo que o «contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel», celebrado entre o A e a R, fosse declarado incumprido por esta e, em consequência em substituição da ré, se declarasse a alienação da propriedade, de forma gratuita e sem encargo, ao autor, da fracção “C9”, sita em Macau, … (descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...).
- Se condenasse a ré no pagamento ao autor de uma quantia de MOP$2.096.050,00, bem como nos juros de mora vencidos e vincendos (juros anuais de 2,4% e juros de mora de 5,4%), até ao seu integral pagamento.
- Se condenasse a ré na aceitação da quantia restante do preço da fracção paga pelo autor, no montante de MOP$2.060.000,00 ou, subsidiariamente, se:
- Se decretasse a resolução do «contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel» celebrado entre o autor e a ré, em 19 de Maio de 2016, devido ao incumprimento culposo da ré; e
- Se condenasse a ré no pagamento ao autor do dobro do sinal, no valor total de HKD$9.000.000,00, correspondente a MOP$9.270.000,00; e
- Se condenasse ainda a ré no pagamento do imposto do selo da transmissão da propriedade ao autor, no valor de MOP$140.850,00.
- Se condenasse a ré no pagamento dos juros de mora em relação aos pedidos 5 e 6, contados desde a citação.
*
Na oportunidade foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente, com a consequente absolvição da ré do pedido.
*
O autor, inconformado, interpôs recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. No caso, com fundamento em incumprimento pela ré do contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel, celebrado em 19 de Maio de 2016 pelas partes, o autor pediu a execução específica do contrato referido e pediu suplementarmente resolver o contrato e condenar a ré a pagar o dobro do sinal e as outras custas.
2. Todavia, o acórdão recorrido indicou que não havia entre o autor e a ré a declaração de vontade e o negócio judicial de promessa real e julgou improcedentes todos os pedidos do autor.
3. O recorrente não concorda com uma parte dos fundamentos fácticos e jurídicos do acórdão recorrido, ora vem deduzir a impugnação sobre o juízo dos factos feito pelo Tribunal a quo em 19 de Dezembro de 2018.
4. Antes de mais, vem o recorrente impugnar que o Tribunal a quo deu provados os art.ºs 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 23.º e 24.º dos factos.
5. Os factos referidos indicam principalmente que, a ré assinou o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel só para receber o empréstimo de D, no valor de HKD$4.500.000,00, na verdade, a ré somente queria ter o contrato referido como garantia do empréstimo, o autor participou na operação apenas para auxiliar D.
6. O recorrente não concorda, uma vez que, conforme o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel, celebrado entre o autor e a ré, constante das fls. 18 a 20 dos autos, o contrato de intermediário de imóveis, outorgado pela ré, constante das fls. 139 a 140, as fotos de o autor ir inspeccionar as condições interiores do apartamento em causa, constante das fls. 128 a 133, o autor já pagou o imposto de selo de transmissão de imóvel, e mais, a testemunha D, como intermediário de imóveis, descreveu o processo de celebração do contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel entre o autor e a ré, durante o qual o autor só conheceu através da apresentação da testemunha D que a ré gostava de vender o apartamento, o autor foi examinar o apartamento, o autor e a ré encontraram-se pessoalmente no escritório de advogado para negociar o preço e o sinal, e depois celebraram o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel.
7. Por isso, o recorrente entende que, após considerar suficientemente todas as provas documentais do autos e analisar os depoimentos das testemunhas D, E e as alegações duvidosas das 2 testemunhas da ré, o autor e a ré outorgaram livre, voluntaria e conscientemente o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel, não tiveram outra vontade verdadeira ocultada.
8. Ao contrário, quando o Tribunal a quo deu provados os art.ºs 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 23.º e 24.º dos factos, as provas de testemunhas e documentos e as respectivas alegações em que se fundamentou são contraditórias e questionáveis.
9. Segundo, vem o recorrente impugnar que o Tribunal a quo deu provados os art.º 20.º a 22.º dos factos.
10. Os referidos factos indicam principalmente que, a testemunha D recebeu da ré uma quantia de HKD$1.970.000,00 como a devolução parcial do seu empréstimo de HKD$4.500.000,00.
11. O recorrente não concorda, uma vez que, a testemunha D confessou na audiência a razão pela qual recebeu da ré a quantia de HKD$1.970.000,00: essa quantia não foi a devolução da ré, querendo cancelar o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel celebrado com o autor, a ré pagou o dinheiro à testemunha D e solicitou-lhe entregar o dinheiro ao autor para o convencer a cancelar o contrato referido. A testemunha D indicou ainda que, disse ao autor o pedido da ré de cancelamento do contrato, mas o autor não concordou, por isso, a testemunha D queria reembolsar a quantia referida à ré, mas a ré não aceitou, em face disso, em 17 de Outubro de 2016, a testemunha D solicitou à ré por carta registada com aviso de recepção arrecadar a quantia referida (na audiência, a testemunha D entregou pessoalmente ao Juiz a carta referida, o Juiz abriu imediatamente a carta e leu o teor, no fim, autorizou juntá-la ao processo, vide as fls. 377 a 379 dos autos).
12. Por isso, segundo o teor da carta da testemunha D, constante das fls. 377 a 379 dos autos, deve-se acreditar a alegação deste, isto é, não se pode provar que a quantia de HKD$1.970.000,00, recebida pela testemunha D, foi a devolução da ré.
13. Com base nisso, o recorrente entende que, o Tribunal a quo cometeu erro na apreciação da prova e, por conseguinte, deu provados incorrectamente os art.º 15.º a 24.º dos factos na decisão da matéria de facto. Por isso, vem o recorrente pedir apreciar de novo as provas documentais referidas e os depoimentos das 2 testemunhas da ré F e G.
14. Pelo exposto, nos termos do art.º 599.º do Código de Processo Civil, vem o recorrente impugnar a decisão de 19 de Dezembro de 2018 do Tribunal a quo de dar provados os art.ºs 20.º a 22.º dos factos, e nos termos do art.º 629.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, vem pedir ao TSI apreciar de novo as provas e dar não provados os factos referidos.
15. Por outro lado, o recorrente não concorda com uma parte dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido, porque padecem do vício de erro na aplicação do Direito.
16. Na fundamentação do acórdão recorrido, entende não preenchidos os requisitos da simulação, previstos pelo art.º 232.º do Código Civil, portanto, não havia negócio de simulação entre o autor e a ré, eles não tinham a vontade real de promessa, nos termos do art.º 228.º n.º 2, julga que não pode produzir os efeitos jurídicos de contrato-promessa (sic.) o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel, celebrado entre o autor e a ré.
17. O recorrente não concorda, mesmo se baseando nos factos dados assentes pelo acórdão recorrido (é de salientar que aqui o recorrente diz assim só para justificação, mas não concorda completamente com os factos dados assentes pelo acórdão recorrido), não se pode aplicar no caso o art.º 228.º do Código Civil.
18. No caso, analisados os factos objectivos e os dados provados, não se pode concluir razoavelmente que o autor e a ré não tinham a vontade de outorgar o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel, pelo mais, a declaração de vontade destes no momento de celebração do contrato-promessa (sic.) em crise foi apenas “vontade superficial”, eles ocultaram as suas “vontades verdadeiras”, portanto, havia divergência entre a vontade e a declaração deles, a qual foi gerada com dolo.
19. Nos termos do art.º 232.º a 250.º do Código Civil, são imensas as razões pelas quais há divergência entre a declaração e a vontade, não são necessariamente produzidos os correspondentes efeitos jurídicos, podem ser nulos ou anuláveis, até, em algumas situações, a lei não protege a vontade verdadeira ocultada pelo declarante.
20. É inegável que, entre as situações de divergência entre a declaração e a vontade, a mais semelhante ao presente processo é a simulação prevista pelo art.º 232.º do Código Civil, porque foi prestada a declaração de vontade superficial ao realizar o negócio jurídico mas foi ocultada a vontade real por determinado motivo.
21. Todavia, a lei vigente não protege sem reserva a vontade real ocultada pelo declarante, a protecção está vinculada.
22. Por exemplo, a lei proporciona ao simulador, mesmo sendo simulação absoluta, a legitimidade de suscitar a nulidade da simulação. Entretanto, tal suscitação é muito restrita nas regras de prova. Ao abrigo do art.º 388.º n.º 2 do Código Civil, quando os simuladores invoquem o acordo simulatório e o negócio dissimulado, é inadmissível a prova por testemunhas, isto é, só podem suscitar por prova documental e confissão.
23. E mais, mesmo que se trate da declaração de vontade prestada contra a vontade real sofrendo fraude ou coacção moral, a lei vigente só prevê o efeito jurídico de anulabilidade.
24. Pelo exposto, no caso, não é necessário aplicar o art.º 228.º do Código Civil para interpretar a declaração de vontade, pois que é expressa e explícita, pelo mais tem desconcordância entre a declaração e a vontade. Cumpre salientar que, quando a ré assinou o contrato-promessa (sic.), a ré não sofreu fraude ou coacção moral (mesmo que as sofresse, o efeito jurídico é apenas a anulabilidade), ao contrário, a ré praticou dolosamente o acto de divergência entre a declaração e a vontade. Desde que não se trata da simulação, nem das outras situações, previstas pela lei, de divergência entre a vontade e a declaração, não se pode forçar a lei a proteger a vontade dolosamente ocultada pelo declarante, mas sim deve-se garantir o direito dos outorgantes de estipular livremente o teor do contrato e o cumprimento efectivo do contrato pelos outorgantes, ao abrigo dos art.º 399.º e 400.º do Código Civil.
25. Pelo exposto, o recorrente entende que o acórdão recorrido padece do vício de erro no juízo dos factos e na aplicação do Direito, com base nisso, pede-se que seja revogado o acórdão recorrido e julgado válido o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel em questão, celebrado entre o autor e a ré; ou seja deferido o pedido suplementar do autor de condenar a ré a pagar o dobro do sinal e as outras custas.
Pedido
Segundo a análise acima exposta, o Tribunal deve decidir:
(1) Apreciar de novo os art.º 15.º a 24.º dos factos, dados provados no juízo dos factos de 19 de Dezembro de 2018;
(2) Julgar procedente o recurso, dar não provados os factos acima referidos, revogar o acórdão recorrido e dar provimento ao recorrente; ou
(3) Reenviar o processo ao TJB para reapreciar os art.º 15.º a 24.º dos factos e proferir uma nova decisão justa;
(4) Ou revogar o acórdão recorrido por aplicação errada do art.º 228.º n.º 2 do Código Civil, julgar válido o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel em questão, celebrado entre o autor e a ré, deferir o pedido de execução especial do autor contra a ré; ou deferir o pedido suplementar do autor de condenar a ré a pagar o dobro do sinal e as outras custas.”.
*
A ré respondeu ao recurso, sem formular conclusões, batendo-se pelo improvimento do recurso.
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
“Factos assentes:
- Em 29 de Setembro de 2010, a ré e a “Sociedade de Investimento e Desenvolvimento H, Lda.” celebraram o contrato promessa de compra e venda, pelo qual a “Sociedade de Investimento e Desenvolvimento H, Lda.” se comprometeu a vender à ré pelo preço de HKD$5.974.000,00 o Apartamento C do 9º andar do projecto em construção (denominada por …), sito em Avenida…, descrito no CRP sob o n.º ...; a ré comprometeu-se a comprá-lo (vide as fls. 12 a 17 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido). (alínea A) dos factos assentes)
- Em 25 de Outubro de 2010, por motivo do referido contrato promessa de compra e venda, a ré pagou à DSF o imposto de selo de transmissão de bens imóveis, no valor de MOP$32.399,00. (alínea B) dos factos assentes)
- Em 19 de Maio de 2016, a ré e o autor celebraram um contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel, pelo qual a ré se comprometeu a alienar ao autor a sua posição no referido contrato promessa de compra e venda (vide as fls. 18 a 20 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido). (alínea C) dos factos assentes)
- Dispõem os art.º 1.º a 5.º do referido contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel que:
1. A 1ª outorgante compromete-se a alienar ao 2º outorgante pelo preço de HKD$6.500.000,00 a sua posição contratual em promessa de compra do referido imóvel sem qualquer encargo, o 2º outorgante compromete-se a comprá-lo pelo preço indicado. Os outorgantes chegaram a acordo sobre a conclusão do negócio através de tratar os trâmites de alienação da posição contratual perante a Sociedade de Investimento e Desenvolvimento H, Lda. e sobre a seguinte forma de pagamento:
(1) Ao assinar o presente contrato, o 2º outorgante já pagou à 1ª outorgante o sinal no valor de HKD$4.500.000,00;
(2) A quantia restante de HKD$2.000.000,00 será paga pelo 2º outorgante à 1ª outorgante por livrança de Macau quando os outorgantes procedam aos trâmites de alienação da posição contratual perante a Sociedade de Investimento e Desenvolvimento H, Lda..
2. Os outorgantes convencionam que procedam aos trâmites de alienação da posição contratual perante a Sociedade de Investimento e Desenvolvimento H, Lda. dentro de 30 dias contados da recepção do empréstimo bancário pelo 2º outorgante, se houver adiamento devido ao promotor de empreendimento ou banco, contados do dia em que o promotor de empreendimento ou o banco possa proceder à transmissão quanto mais cedo possível. Porém, os outorgantes têm que concluir o negócio dentro de 1 ano.
3. Nos termos do art.º 436.º n.º 2 do Código Civil, se a 1ª outorgante não a vender, tem que pagar o dobro do sinal ao 2º outorgante; se o 2º outorgante não a comprar ou adiar o negócio, considera-se como violador do contrato e perde imediatamente o sinal pago à 1ª outorgante, esta última tem direito a alienar a outrem a sua posição contratual sobre o imóvel referido.
4. Se a 1ª outorgante não a vender, tem que indemnizar o 2º outorgante, além do sinal referido no art.º 3.º, por todo o imposto de selo de transmissão do imóvel pago pelo 2º outorgante à DSF em vista da celebração do presente contrato.
5. A 1ª outorgante entregou ao 2º outorgante o imóvel referido no dia de celebração do presente contrato. (alínea D) dos factos assentes)
- Consta do art.º 13.º do referido contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel que “a 1ª outorgante já recebeu o referido sinal no valor de HKD$4.500.000,00”. (alínea E) dos factos assentes)
- Foi aposta no referido contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel a assinatura da ré e do autor, que foi autenticada imediatamente perante o 1º Cartório Notarial. (alínea F) dos factos assentes)
- De acordo com o certificado emitido pela CRP em 18 de Janeiro de 2017, a ré já adquiriu pela compra o direito de propriedade do imóvel referido da “Sociedade de Investimento e Desenvolvimento H, Lda.”, o registo foi feito em 4 de Janeiro de 2017, o imóvel está descrito na CRP sob o n.º ...1; e inscrito na matriz predial sob o n.º .... (alínea H) dos factos assentes)
- De acordo com o referido certificado emitido pela CRP, a ré hipotecou o imóvel referido ao “Banco da China, Limitada” com o valor de garantia de HKD$2.035.000,00, registando sob o n.º .... (alínea I) dos factos assentes)
Base instrutória:
- A ré em 19 de Maio de 2016, outorgou uma procuração em cópia autenticada, conferindo poderes a E, cujo teor constante de documento de fls. 22 a 26 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido. (resposta ao quesito 2.º da base instrutória)
- Com os poderes conferidos pela procuração referida, E pode alienar a terceiro em nome da ré a sua posição do referido contrato promessa de compra e venda. (resposta ao quesito 3.º da base instrutória)
- Em 14 de Setembro de 2016, por motivo do referido contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel, o autor pagou à DSF o imposto de selo de transmissão do imóvel no valor de MOP$140.850,00. (resposta ao quesito 3.º-A da base instrutória)
- Em 28 de Setembro de 2016, por carta enviada (vide a fls. 27 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido), o advogado constituído pelo autor solicitou à “Sociedade de Investimento e Desenvolvimento H, Lda.” organizar o tratamento da alienação da posição contratual entre o autor e a ré em função do contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel. (resposta ao quesito 6.º da base instrutória)
- Em 15 de Novembro de 2016, o autor recebeu a resposta escrita (vide as fls. 29 a 30 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido) do advogado da “Sociedade de Investimento e Desenvolvimento H, Lda.”, na qual indicou que a ré exigiu a essa Sociedade celebrar com ela a escritura pública de compra e venda do apartamento referido. (resposta ao quesito 7.º da base instrutória)
- A procuração referida na resposta dada ao quesito 2º foi revogada pela ré em 13/09/2016. (resposta ao quesito 8.º da base instrutória)
- Em 1 de Novembro de 2016, o advogado constituído pelo autor enviou carta ao endereço de contacto da ré “Avenida…”, solicitando-lhe proceder aos trâmites de alienação da posição contratual conforme o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel, mas ninguém foi receber a carta. (resposta ao quesito 9.º da base instrutória)
- Até à data de apresentação da petição inicial pelo autor, a ré recusou-se a cumprir o contrato identificado. (resposta ao quesito 10.º da base instrutória)
- Em início do ano de 2016, a ré conheceu um indivíduo do sexo masculino G, através da sua amiga bem conhecida de nome F. (resposta ao quesito 11.º da base instrutória)
- G pediu à ré um empréstimo de HKD$3.000.000,00, destinando-se como garantia de concessão de crédito em fichas para jogos de fortuna e azar junto da sala VIP, tendo prometido pagar à ré retribuições futuramente. (resposta ao quesito 13.º da base instrutória)
- G propôs à ré para solicitar D a concessão do empréstimo de HKD$4.500.000,00, usando o referido direito de promitente-comprador do acima referido imóvel como garantia. (resposta ao quesito 15.º da base instrutória)
- Segundo o acordo de empréstimo, o prazo de devolução foi de 1 mês, a ré deveria pagar a D os juros à taxa mensal de 4%. (resposta ao quesito 16.º da base instrutória)
- A ré aceitou a proposta de G. (resposta ao quesito 17.º da base instrutória)
- Em 19 de Maio de 2016, a ré assinou o documento referido em C) dos factos assentes, após o que, D entregou-lhe uma ordem de caixa no valor de HKD$4.500.000,00 enquanto a ré tinha que pagar-lhe uma quantia em numerário de HKD$100.000,00 como emolumentos para tratamento do empréstimo. (resposta ao quesito 18.º da base instrutória)
- O autor auxiliou D a completar a referida operação. (resposta ao quesito 19.º da base instrutória)
- Em 17 de Junho de 2016, a ré pagou a D HKD$1.500.000,00 a título de reembolso parcial da dívida, bem como pagou-lhe HKD$230.000,00. (resposta ao quesito 20.º da base instrutória)
- Em meado de Julho de 2016, a ré entregou novamente a D HKD$120.000,00, como pagamento dos juros de mora. (resposta ao quesito 22.º da base instrutória)
- A ré assinou o contrato de alienação dos direitos e interesses da posição contratual em promessa de compra e venda de imóvel e a procuração só para pedir a D o empréstimo. (resposta ao quesito 23.º da base instrutória)
- A ré queria usar como garantia do empréstimo o direito em promessa de compra e venda do imóvel. (resposta ao quesito 24.º da base instrutória)”.
***
III – O Direito
1. O autor da acção pretendia, em primeiro lugar, a execução específica de um contrato de promessa de alienação da posição contratual da ré – posição que era a de promitente compradora de uma fracção imobiliária em resultado de um contrato de promessa de compra e venda celebrado com a “Sociedade de Investimento Imobiliário X, SARL”.
Subsidiariamente, pretendia a resolução do contrato e a condenação da ré no pagamento em dobro do sinal entregue à ré.
A sentença, face aos factos provados, julgou a acção improcedente.
Para o tribunal “a quo”, não podia proceder a acção, visto que nem o autor, nem a ré queriam verdadeiramente aquilo que declararam no referido contrato de promessa de alienação da posição contratual:
- O autor, porque apenas cedeu o seu nome naquele contrato, o qual haveria de servir apenas como garantia de um empréstimo que a ré teria contraído junto de D, no valor de HKD$4.500.000,00. Ou seja, ele apenas teria auxiliado a ré na concretização daquela operação de empréstimo.
- A ré, porque nunca quis ceder a sua posição contratual, mas apenas criar um ambiente favorável, aparentando a existência de uma transacção com o A, de forma a fazer crer o mutuante de que teria dinheiro para restituir-lhe o valor do empréstimo.
E, portanto, por haver divergência entre a vontade real e a declaração de cada um dos contraentes, decidiu a sentença que não tinha havido promessa, de acordo com o regime da interpretação do sentido normal da declaração (art. 228º, CC). E por concluir que o negócio prometido não podia ser celebrado, indeferiu o pedido de execução específica.
Quanto ao pedido subsidiário de resolução do contrato e de condenação da ré no pagamento do dobro do sinal, e pela mesma razão, julgou-o também improcedente.
*
2. O autor insurge-se contra esta sentença.
Para tanto, começa por opor-se ao julgamento dos factos contidos nas respostas aos arts. 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º e 24º, que entende deverem ser dados como não provados.
Conclui, posteriormente, que a factualidade provada, mais a alteração que propõe, não pode conduzir à improcedência da acção, visto que se prova, em sua opinião, que sempre agiu com a vontade séria de adquirir a posição contratual da ré. Em vez disso, defende que o contrato de promessa que celebrou com a ré é válido, ao abrigo dos arts. 399º e 400º do CC, em conjugação com os arts. 228º, 233º a 250º do mesmo Código.
*
3. Apreciando.
3.1 - Da matéria de facto
Não cremos que haja alguma contradição, imprecisão, deficiência ou erro de avaliação nas respostas dadas aos referidos artigos da BI. Também não se crê que os elementos dos autos e os depoimentos pudessem sugerir uma outra conclusão probatória.
Ou seja, não nos parece que os argumentos trazidos ao recurso na respectiva alegação, nem os dados probatórios recolhidos nos autos, sejam de molde a abalar a convicção fortemente sustentada na larga fundamentação do acórdão de fls. 383-387.
Como este TSI disse recentemente “Depois de ter valorado as provas produzidas em audiência e examinado as provas juntas aos autos, se todas legalmente admissíveis, mesmo com teores e sentidos entre si compatíveis, ou até contraditórios, o Tribunal a quo pode, por força do princípio da livre apreciação da prova, conceder credibilidade a umas e não a outras, o que não pode ser sindicável pelo Tribunal ad quem, desde que na primeira instância se não verifiquem erros manifestos na apreciação de provas ou que não fique provada matéria de facto intrinsecamente contraditória ou ilógica. Dado que, por força do princípio de imediação, é de reconhecer que o Tribunal a quo está sempre no mais privilegiado posicionamento e em melhores condições para valorar as provas produzidas na audiência de julgamento do que o Tribunal de recurso (Ac. do TSI, de 13/06/2019, Proc. nº 638/2018).
Ou como noutra ocasião afirmou “O princípio da imediação e da livre apreciação das provas impossibilita, em regra, o tribunal de recurso de censurar a relevância e credibilidade que o tribunal recorrido tiver atribuído ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu. A partir do momento em que o julgador respeita o espaço de liberdade que é próprio da sua livre convicção e não ultrapassa os limites processuais imanentes, a sindicância ao seu trabalho, no tocante à matéria de facto, só nos casos e moldes restritos dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser feita” (Ac. do TSI, de 6/06/2019, Proc. nº 536/2018).
Por outro lado, “A livre convicção do julgador da 1ª instância é soberana e só em caso de erro, que facilmente seja detectável, pode o tribunal do recurso censurar o modo como a apreciação dos factos foi feita. Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir nela, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova.”(Ac. do TSI, de 30/05/2019, Proc. nº 938/2018).
Sendo assim, não vemos no caso presente, sinceramente, motivo para alterar as respostas dadas àqueles artigos da BI.
Improcede, pois, o recurso na parte respeitante à impugnação sobre a matéria de facto.
*
3.2 - (Cont.).
A conclusão do ponto anterior não equivale a dizer que estejamos de acordo com o material fáctico que foi sujeito à prova, nomeadamente testemunhal.
Apesar do maior respeito e consideração pela bem elaborada sentença, dado o fio condutor lógico da sua estruturação, não podemos acolhê-la, por uma razão simples que explicitaremos já de seguida.
O eixo da fundamentação da sentença assenta numa ordem de considerações, todas elas ancoradas numa certeza: a de que nenhuma das partes, A. e R., teve alguma vez a vontade de se vincular no negócio de promessa de alienação da posição contratual da segunda. E embora lhe faltem os ingredientes de um negócio simulado, ao menos a sentença sublinhou o desvalor negocial que representa a divergência entre a vontade e declaração de ambos: nem a ré quis alienar, nem o autor adquirir. A primeira agiu apenas para criar um quadro de facto aparente e ilusório de obtenção de fundos que dessem alguma tranquilidade a uma pessoa a quem tinha pedido dinheiro, garantindo-lhe desse modo a restituição do capital mutuado. Quanto ao autor, a sua função foi a de apenas colaborar nessa encenação.
Ora, esta conclusão que a sentença alcançou, mesmo que possa ser teoricamente lógica, carece de demonstração.
Expliquemo-nos.
Não basta provar que a ré obteve de D um empréstimo de HKD$4.500.000,00, para depois ela mesma emprestar parte dessa quantia a G (arts. 15º a 18º da BI).
Também não é suficiente estar demonstrado que o autor A auxiliou D na concretização da respectiva transacção (art. 19º da BI). A circunstância de o A ter prestado auxílio a D na concretização da transacção, por si só, não é suficiente para se inferir que essa ajuda foi concedida, sem qualquer propósito de adquirir, mas sim, e apenas, com a intenção de facilitar o contrato de mútuo entre a ré o D. O facto de ter ajudado e facilitado o negócio não exclui que ele, com essa ajuda, também estivesse a orientar a sua vontade no sentido de adquirir.
Nem finalmente satisfaz a circunstância de a ré ter assinado o contrato de promessa de cessão dos seus direitos de promitente compradora com o autor com o propósito de pedir dinheiro emprestado a D (art. 23º, da BI), ou que ela ré pretendia usar o direito de promitente comprador do imóvel como garantia do empréstimo (art. 24º da BI).
Com efeito, uma coisa é tentar fazer crer ao mutuante D que possuía fundos para lhe restituir o dinheiro emprestado – e para isso servia bem a realização de um contrato de promessa de cessão da sua posição contratual, o que permitia a entrada na sua esfera do montante envolvido no negócio. Podia perfeitamente a ré estar a actuar perante o mutuante com toda a lisura e seriedade. Isto é, à partida, não existe mal nenhum que, para garantir a devolução da quantia emprestada, ela pudesse encetar um negócio com terceira pessoa, no caso o A., com vista a realizar a entrada de capital, o que lhe permitiria o reembolso do dinheiro emprestado. Esta “realidade” é plausível e cabe perfeitamente nas respostas afirmativas aos arts. 23º e 24º. O que quer dizer que as respostas a estes dois quesitos não encobrem, por si só, nenhuma intenção inconfessável.
Realmente, a matéria das respostas a estes artigos da BI, por si só, não confirma, nem infirma, a vontade da ré em vender a sua posição contratual. É anódina e neutra ou, pelo menos, é insuficiente. Deveria ter sido complementada com o facto revelador da vontade e da intenção (isso é matéria de facto a provar e não matéria de presunção judicial).
Outra coisa é provar que esse negócio nunca foi querido por ela, que nunca foi sua intenção fazê-lo com o autor e que apenas foi realizado com o propósito de uma montagem, ou encenação, de uma falsidade ou aldrabice nos termos descritos acima. Só que para mostrar esta encenação – vale dizer, esta divergência entre a vontade e a declaração – era necessário provar algo mais do que aqueles simples factos.
Era preciso provar que a sua intenção nunca foi, verdadeiramente, a de celebrar o contrato! Trata-se de matéria que tem a natureza de defesa por excepção (cfr. 335º, do CC e 407º, nº2, do CPC) e que deveria ter sido invocada pela ré na sua contestação, a fim de ser quesitada e ser sujeita à prova no momento oportuno.
Ora, sucede que a ré alegou esta matéria na sua contestação nos arts. 28º e 33º, 44º e 45º, entre outros (que podem ser sintetizados num único, a propósito do apuramento da sua intenção). E por ser essencial e decisiva para se apurar a verdadeira intenção da ré e, por isso, para se aquilatar da existência da divergência entre declaração e vontade, deveria ter sido quesitada. Mas não foi.
Efectivamente, naqueles artigos da contestação a ré sempre afirmou que “não tinha vontade de vender o seu direito de promessa de compra do imóvel” (28º e 44º), que o seu intuito foi o de prestar garantia e “não vender o direito de promessa de compra” (33º e 45º). Esta matéria pode e deve ser reunida num só quesito como complemento da dos referidos artigos 23º e 24º.
Logo, a quesitação dos arts. 23º, 24º e parte final do art. 44º2, pelo que já se disse, não é completa, porque não contém a vontade real da ré, tal como ela a tinha afirmado nos citados artigos da peça contestatória.
E saber se as partes quiseram um realmente um determinado contrato, isto é, apurar qual a verdadeira negocial à luz do nº2 do art. 228º do CC é questão de matéria de facto (neste sentido, Vaz Serra, RLJ, 111, pág. 249; Evaristo Mendes/Fernando Sá, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pág.541; na jurisprudência local, Ac. do TUI, de 14/06/2013, Proc. nº 7/2013; TSI, de 11/06/2015, Proc. nº 321/2015; na jurisprudência em termos de direito comparado, v.g., Ac. do STJ, de 28/10/1997, in BMJ nº 470, pág. 597, entre outros).
Ora, a sentença tomou em consideração aqueles factos provados, como se eles fossem suficientes para revelarem a divergência, por parte da ré, entre a declaração e a vontade real. Como não são, importa que o processo volte à 1ª instância, por muito que isto custe à celeridade processual, a fim de, perante o que se vier a provar, ser oportunamente proferida uma sentença que, no plano jurídico, seja adequada e conforme à verdadeira situação no plano fáctico.
Em suma, entendemos ser indispensável proceder-se a novo julgamento com ampliação da matéria de facto, nos termos acima referidos, mantendo-se, porém, a decisão da matéria de facto constante do acórdão de fls. 384-387, tudo em harmonia com o disposto no art. 629º, nº 4, do CPC.
Só depois deste julgamento de facto, conforme o que for provado no(s) facto(s) a aditar, será possível com firmeza e segurança, proferir nova sentença que decida pela procedência ou não do pedido do A.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em:
1. Negar provimento ao recurso jurisdicional, na parte relativa à impugnação da matéria de facto.
Custas desta parte pelo recorrente, em 50%.
2. Anular oficiosamente a sentença, e determinar a realização de novo julgamento à matéria de facto a ampliar, com a introdução do seguinte novo artigo à Base Instrutória:
“A ré nunca teve intenção de vender ao A. o direito resultante da sua posição contratual de promitente compradora no contrato-promessa celebrado referido em A)”
Custas pela parte vencida a final.
T.S.I., 07 de Novembro de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Segundo o certificado de registo predial constante das fls. 23 a 61 dos autos, a fracção em causa está descrita na CRP sob o n.º ..., pelo que, o Tribunal fez rectificação oficiosamente.
2 Embora a ré tenha inserido este art. no capítulo da “impugnação dos factos”, do que se trata é, efectivamente, de matéria exceptiva.
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Proc. nº 811/2019 21