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Proc. nº 1035/2018
Recurso Contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 5 de Dezembro de 2019
Descritores:
- Procedimento Administrativo
- Concurso de adjudicação
- Irregularidades formais
- Peças processuais
- Aposição de carimbos

SUMÁRIO:

I - O procedimento administrativo deve ser conduzido até ao seu objectivo final, sempre que possível, eliminando-se os escolhos formais que se forem encarando a cada passo.

II - Quando uma questão meramente formal é passível de suprimento, deve o órgão administrativo, que do procedimento tiver a respectiva instrução, tudo fazer para o promover, dando ao interessado a possibilidade de sanar a irregularidade, como aquela em que num concurso público o concorrente não apõe o carimbo da firma em todas as folhas da sua proposta.

Proc. nº 1035/2018

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
“A LIMITADA”, sociedade comercial com sede em Macau, na XXXXXX, matriculada no Registo Comercial e de Bens Móveis sob o n.º XXXXX (SO), ---
Recorre contenciosamente ----
Do despacho do Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura n.º 58/SASC/2018, de 5 de Outubro de 2018, que confirmou a deliberação de 14 de Agosto de 2018 da Comissão de Abertura de Propostas, que havia sido no sentido de não admitir ao Concurso Público n.º 3/P/2018 (realizado pelo Instituto B - aberto pelo Instituto B para exploração de três lojas no XXXXXX, na Avenida da Praia da Grande, em Macau - a proposta apresentada pela ora Requerente, com fundamento na não aposição do seu carimbo em todas as páginas dos respectivos documentos, e consequentemente excluiu a dita proposta.
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Nas alegações do recurso formulou as seguintes conclusões:
“1. É entidade recorrida o Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura.
2. Constitui objecto do presente recurso, o indeferimento do recurso hierárquico necessário interposto do indeferimento da reclamação da deliberação da Comissão que excluiu a Recorrente do Concurso porque a respectiva proposta não se mostrava carimbada em todas as folhas, o que seria uma formalidade essencial insusceptível de suprimento.
3. A exigência de que se carimbe todas as páginas dos documentos da proposta é espúria, mais que não seja porque o carimbo é dispensado pelo legislador como elemento principal, acessório ou complementar de vinculação das sociedades comerciais - espécie em que se integra a Recorrente - conforme estatuído no artigo 236.º, n.º 4, do Código Comercial.
4. Não obstante, admitindo, sem conceder, que, apesar de espúria, essa imposição não viola a lei, ela não deixa de constituir uma mera formalidade ad probationem.
5. As formalidades ad probationem são não essenciais e são supríveis, segundo um princípio de direito probatório material do ordenamento jurídico de Macau.
6. Esse princípio extrai-se do artigo 357.º. n.º 2, do Código Civil que integra aquela disciplina do direito probatório material e é aplicável mutatis mutandis à situação retratada nos presentes autos.
7. Se a falta de intervenção notarial no reconhecimento das assinaturas dos concorrentes é sanável, nos termos do artigo 29.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 63/85/M, por maioria de razão também a falta de carimbos em todas as folhas da proposta o é.
8. O artigo 24.º alínea a), do Decreto-Lei n.º 63/85/M não é aplicável ao caso concreto.
9. Em consequência, o acto recorrido não podia manter a decisão da Comissão de excluir a Recorrente com base na falta de carimbagem de todas as folhas da respectiva proposta e de não aceitar a regularização a posteriori dessa omissão.

10. Tendo-o feito e, além disso, invocado também como seu fundamento o artigo 24.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 63/85/M, violou: (i) o princípio do direito probatório material de Macau inscrito no artigo 357.º, n.º 2, do Código Civil; (ii) o artigo 29.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 63/85/M, por interpretação a fortiori, e (iii) o artigo 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e aplicou erradamente o artigo 24.º, alínea a), do mencionado diploma legal,
11. o que o torna anulável, por aplicação da regra do artigo 124.º do CPA.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Ex.as mui doutamente suprirão, deve o presente recurso contencioso ser julgado procedente e, em consequência, anulado o despacho de indeferimento do recurso hierárquico necessário proferido pelo Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, com base na sua ilegalidade, nos termos do disposto do artigo 124.º do CPA, por vício de violação de lei e errada aplicação da lei, com as demais consequências legais.”
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Na sua contestação, a entidade recorrida formulou as seguintes conclusões:

“19 - São recorrente a A Limitada e entidade recorrida o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura.
20 - O objecto do recurso é o despacho do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura n.º 58/SASCI2018, de 5 de Outubro de 2018.
O referido despacho rejeitou o recurso hierárquico necessário da recorrente, confirmando a deliberação tomada pela Comissão de Abertura das Propostas em 14 de Agosto de 2018, no sentido de não admitir a proposta da requerente (porque não foi aposto nos documentos da sua proposta o carimbo da sociedade conforme o ponto 7.21 do programa do concurso, e de acordo com o ponto 12.1.4 do programa, o não cumprimento do disposto nos pontos 7.1 a 7.2 ou 9 resultará na exclusão da proposta) ao concurso público n.º 3/P/2018 do Instituto B (Concurso público para “Arrendamento das lojas S1, S6 e S11 no XXXXXX”) (adiante designado por “concurso público”).
21 - A exigência de aposição do carimbo nas propostas, prevista no ponto 7.2 do programa do concurso, não se encontra no âmbito de regulação do art.º 29.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 63/85/M, pelo que não constitui a situação indicada no n.º 2 do art.º 10.º e não viola o Decreto-Lei n.º 63/85/M.
22 - O art.º 236.º, n.º 4 do Código Comercial não pode excluir do elemento essencial a aposição do carimbo da sociedade, pelo que o art.º 24.º, al. a) do Decreto-Lei n.º 63/85/M aplica-se à situação em que o programa do concurso exige a aposição do carimbo da sociedade. Além disso, o programa do concurso já foi previamente publicado no Boletim Oficial da RAEM, e nos jornais chineses e portugueses, permitindo ao público ter conhecimento da exigência de aposição do carimbo da sociedade nas propostas e da consequência de falta do carimbo.
23 - Nestes termos, o acto administrativo recorrido, ou seja o despacho do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura n.º 5 8/SASC/20 18, de 5 de Outubro de 2018, não violou qualquer princípio ou norma jurídica aplicável, pelo que não é acto anulável previsto pelo art.º 124.º do CPA.
24 - Pelo exposto, por não se verificar o requisito previsto pelo art.º 124.º do CPA, pede-se ao MM.º Juiz para rejeitar o recurso contencioso da recorrente.”
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A recorrente apresentou alegações, reiterando no essencial a posição inicialmente assumida nos autos.
*
O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer final:

“A, Limitada” recorre contenciosamente do despacho de 05 de Outubro de 2018, do Exm.º Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, que lhe indeferiu recurso hierárquico necessário - interposto no âmbito de concurso público para arrendamento de espaços no XXXXXX lançado pelo Instituto B - onde se questionava o indeferimento de uma reclamação da deliberação de 14/08/2018, da Comissão de Abertura das Propostas do Concurso Público 3/P/2018, que excluiu a proposta apresentada pela recorrente.
Vem imputado ao acto violação de lei por ofensa de normas do DL 63/85/M e por violação dos princípios do direito probatório material de Macau, violação que a entidade recorrida contesta, asseverando a legalidade do acto.
Está em causa o seguinte:
A recorrente candidatou-se a tomar de arrendamento um espaço posto a concurso através do Concurso Público n.º 3/P/2018, cujo regulamento consta de fls. 23 e seguintes. Nos termos do ponto 7.2 desse regulamento, todas as páginas dos documentos que instruírem a proposta, salvo os originais dos documentos emitidos por serviços públicos, devem ser assinados pelo concorrente ou, no caso de sociedades comerciais, pelo seu representante legal, com aposição de carimbo. E, de acordo com o ponto 12.1.4 do mesmo regulamento, são excluídas as propostas que não cumpram, entre outras, a regra do ponto 7.2 do aludido regulamento. A recorrente não apôs carimbo em todas as páginas dos documentos que juntou com a proposta. Com esse fundamento viu a sua proposta liminarmente recusada pela Comissão de Abertura das Propostas, com a sequente exclusão do concurso. Logo reclamou para a mesma Comissão, de cuja deliberação de indeferimento interpôs recurso hierárquico necessário, no qual, através do acto recorrido, viu novamente rejeitada a sua pretensão de admissão da proposta e prosseguimento no concurso.
Alinhados estes elementos, constata-se que tanto a Comissão como a entidade recorrida abrigam a sua decisão na estrita letra das normas 7.2 e 12.1.4 do Programa do Concurso, tendo entendido que a falta de carimbo nas folhas dos documentos implicava a imediata exclusão do concorrente.
Todavia, temos para nós que, não estando obviamente em causa um elemento essencial do modelo prefigurado no programa do concurso - a aposição de carimbo comercial não pode ser considerada um elemento essencial do modelo ou forma da proposta, pelas razões exuberantemente apontadas pela recorrente - não podia a entidade recorrida tomar a omissão como fundamento de imediata exclusão.

Impunha-se, ao invés, que admitisse o suprimento da omissão, tal como previsto para a falta de reconhecimento notarial, constituindo esta, como a recorrente faz notar, uma formalidade bem mais importante do que a mera aposição de um carimbo comercial, que pertinentemente rotula de espúria. Ao avalizar a rejeição liminar da proposta e a exclusão da recorrente, a entidade recorrida interpretou o regulamento do concurso em desconformidade com o DL n.º 63/85/M, em particular com os seus artigos 10.º, n.º 2, e 24.º, alínea a), e com as regras de direito probatório material e de ampla admissibilidade da correcção de lapsos ou erros previstas no ordenamento jurídico de Macau. E nessa interpretação, a norma 12.1.4 do regulamento do concurso é ilegal, por violar normas de hierarquia superior, sendo certo que, não estando aqui em causa uma impugnação de normas regulamentares, é possível conhecer incidentalmente da questão no recurso contencioso, como é pacífico e foi reafirmado pelo Tribunal de Última Instância em acórdão de 21/06/2017, tirado no processo n.º 20/2017.
O acto padece, pois, de violação de lei, por afronta das normas dos artigos 10.º, n.º 2, e 24.º, alínea a), do DL 63/85/M, e dos princípios de direito probatório material e da admissibilidade da correcção de lapsos ou erros previstos no ordenamento jurídico de Macau, e por aplicação de norma ilegal (ponto 12.1.4 do Programa do Concurso) na interpretação com que foi acolhida pela entidade recorrida.

Ante o exposto, o nosso parecer vai no sentido da procedência do recurso, devendo o acto ser anulado”.
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Cumpre decidir.
***
II – Pressupostos Processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
***
III – Os Factos
1 - A Requerente é uma sociedade comercial de responsabilidade limitada que foi constituída pela sua sócia única, a Casa de Portugal em Macau (abreviadamente A), uma associação de direito privado sem fins lucrativos, para obviar à impossibilidade jurídica de a A se apresentar a concursos públicos relativos às suas áreas de interesse que exijam que os concorrentes tenham a natureza de sociedade comercial.
2 - A A, por intermédio da Requerente, explora um estabelecimento de comidas e bebidas denominado “C”.
3 - Desde a cessação do arrendamento no Centro Comercial e Turístico “S. D” em 2013, onde a Requerente explorava o “C”, passou este a funcionar provisoriamente na sede da A, em condições muito precárias, devido à exiguidade da área disponível e outros grandes constrangimentos logísticos.
4 - Por anúncio publicado no Boletim Oficial da RAEM, “ Série, n.º 24, em 13 de Julho de 2018, foi aberto pelo B o Concurso, em conformidade com o despacho do SASC, de 31 de Maio de 2018, foi aberto concurso tendo por objecto o arrendamento das lojas S1, S6 e S11 sitas no XXXXXX para exploração naquele local de serviços de comidas ligeiras e bebidas ou venda a retalho de produtos alimentares típicos de Macau.
5 - A requerente apresentou-se ao concurso, candidatando-se à loja S6 para aí instalar e explorar, em obediência ao programa do Concurso, um estabelecimento de comidas e bebidas.
6 - Em 14 de Agosto de 2018 decorreu a sessão do acto público de abertura das propostas e, após apreciação destas, em sessão não pública, a Comissão deliberou a não admissão da proposta apresentada pela ora Recorrente.
7 - O fundamento para esta deliberação consistiu na não aposição do seu carimbo em todas as páginas dos respectivos documentos, o que importaria incumprimento do requisito estabelecido no ponto 7.2 do Programa do Concurso, e a consequente exclusão da dita proposta, nos termos do ponto 12.1.4 do referido Programa.
8 - Após protesto e indeferimento pela Comissão, a recorrente apresentou recurso hierárquico.
9 - Nesse âmbito, foi lavrada a Informação nº 329/P/2018, datada de 27/09/2018, com o seguinte teor:

“Assunto: Impugnação por parte de um Proposta n.º 329/P/2018
concorrente do Concurso Público n.º
3/P/2018 do Instituto B Data: 27/09/2018
Exm.º Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura,

A. Apresentação da situação
Por despacho do Exm.º Senhor Secretário, de 31 de Maio de 2018, em relação à proposta n.º 178/P/2018 (Anexo I), foi deferida a abertura do concurso público para «Arrendamento das lojas S1, S6 e S11 respectivamente, no espaço XXXXXX», tendo o respectivo anúncio do concurso público sido publicado no Boletim Oficial n.º 24, II Série, de 13 de Junho de 2018 (Anexo II).
A abertura das propostas decorreu às 10 horas do dia 14 de Agosto de 2018. Na altura, verificou-se que a proposta da A Limitada (tendo como única sócia a Casa de Portugal em Macau, adiante designada por A) carecia da aposição do carimbo, o que constitui uma violação do disposto, sobre a forma de apresentação, no ponto 7.2 do Programa do Concurso “Todos as páginas dos documentos devem ser assinadas pelo concorrente ou, no caso de sociedades comerciais, pelo seu representante legal, com aposição do carimbo”. De acordo com o disposto no ponto 12.1.4 do Programa do Concurso, a referida proposta foi excluída do concurso (Anexo II).
O membro do órgão de administração da sociedade acima referida, E, reclamou, logo no decurso do acto público de abertura, da decisão de exclusão da proposta apresentada pela A. Face a este facto, a Comissão de Abertura das Propostas manteve a sua decisão, exibiu no ecrã e leu a decisão final para conhecimento de todos os presentes no referido acto, (Vide a acta da Comissão de Abertura das Propostas no Anexo III). Para além disso, na sequência do pedido verbal da representante da A, a mesma Comissão emitiu uma notificação por escrita em relação à decisão do acto (Anexo IV).
No dia 17 de Agosto de 2018, o Instituto recebeu a carta do membro do órgão de administração da sociedade acima referida, E, apresentando recurso relativo à matéria de exclusão proferida pela Comissão de Abertura das Propostas (Anexo V), cujo teor se passa seguidamente a descrever:

1. A A alegou que foi notificada, por ofício do Presidente da Comissão de Abertura de Propostas, datado de 15 de Agosto de 2018, de que a sua proposta não tinha sido admitida a Concurso devido a incumprimento do requisito estabelecido no ponto 7.2 do Programa do Concurso, o que implica a exclusão da dita proposta, nos termos do ponto 12.1.4 do referido Programa;
2. A A alegou que contra o preceituado no artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 63/85/M, de 6 de Julho de 1985, não foram lidos o Anúncio e Programa do Concurso, bem como a acta do acto público antes do fim do acto;
3. A A alegou que o oficio (Anexo IV) relevante não alude a que a Concorrente foi informada verbalmente do motivo da exclusão da sua proposta e que, logo de seguida, também verbalmente, protestou contra a decisão que acabara de ouvir;
4. A A alegou que a exclusão da sua proposta foi feita através da comunicação escrita e não pela informação verbal prestada durante o acto público; o protesto expresso verbalmente naquela altura não deve ser tido como uma reclamação porque a notificação da exclusão deve ser anterior da reclamação;
5. A A reclama com base nos seguintes motivos,
1) A aposição do carimbo das sociedades comerciais não é necessária para a vinculação das mesmas em quaisquer actos e contratos, regendo esta matéria o artigo 236.º, n.º 4 do Código Comercial de Macau, o qual dispõe que os administradores obrigam a sociedade apondo a sua assinatura com a indicação dessa qualidade, mas omitindo qualquer referência ao carimbo;
2) Desde modo, o requisito de carimbo em todas as páginas constante do aludido ponto 7.2 do Programa do Concurso não é necessário e, muito menos, essencial;
3) Tal entendimento tem apoio, não só na norma do Código Comercial citada, como também no artigo 24.º d) do Decreto-Lei n.063/85/M, que prevê a não admissão da proposta se lhe faltar a assinatura do proponente, o que deve interpretar-se como a exigência elementar de que o proponente se vincule ao que propõe nos termos legais, sem mais.
4) Pelo exposto, quer a exigência suplementar de que se carimbem todas as páginas dos documentos da proposta, consignada no ponto 7.2 do Programa do Concurso, quer a cominação da falta do carimbo com a sanção de exclusão, estabelecida no ponto 12.1.4, são abusivas, arbitrárias, contrárias ao espírito da lei, no disposto do artigo 10.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 63/851M;
5) Acrescente-se ainda que, admitindo, sem conceder que era lícito requerer carimbo em todas as páginas, esse requisito seria seguramente menos importante do que o de reconhecimento notarial de assinaturas;
6) Ora, se a falta de intervenção notarial é suprível no prazo de 24 horas, ao abrigo do estatuído no artigo 29.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 63/85/M, de que se faz eco o ponto 12.2 do Programa do Concurso, então por maioria de razão também teria de ser suprível a falta de carimbo em todas as páginas;
7) Com muito esforço, poderia encontrar-se alguma razão de ser nessa exigência do carimbo, não já como um elemento necessário à vinculação de cada concorrente à sua proposta, mas como prova de autenticidade das propostas, ou seja, prova de que aquelas folhas concretas e não outras é que compunham a proposta; só que, nessa eventualidade, se dúvidas a Comissão tivesse de que as páginas em que não figura o carimbo da Concorrente eram realmente as que deviam constar na respectiva proposta, a representante da Concorrente teria tido todo o gosto em confirmá-lo durante a sessão do Concurso, resolvendo-se dessa maneira simples e expedita o problema.
8) Face ao que acima foi exposto, deve a presente reclamação ser deferida, revogando-se a decisão de exclusão e determinando-se que a proposta da Concorrente seja admitida ou, no limite, que se determine à Concorrente que supra a irregularidade num prazo de 24 horas; a Concorrente permite-se notar que da presente reclamação deve dar-se conhecimento a todos os restantes concorrentes admitidos, na sua qualidade de contra-interessados.
B. Análise e Proposta
Os números 1 e 2 do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 63/85/M (Regula o processo de aquisição de bens e serviços) de 6 de Julho dispõem que, das deliberações da Comissão de Abertura das Propostas sobre as reclamações deduzidas poderá qualquer interessado recorrer para a entidade adjudicante, no próprio acto do concurso, assim como, no prazo de dez dias, devendo o recorrente apresentar, no Serviço por onde correr o processo do concurso, as alegações do recurso.
A recorrente A é um interessado deste Concurso Público e a representante legítima desta sociedade, E, de acordo com os registos comerciais relevantes, reclamou no acto público de abertura das propostas. O mesmo acto decorreu no dia 14 de Agosto de 2018 e a recorrente remeteu a carta no dia 17 de Agosto de 2018, dentro do prazo de 10 dias após a reunião do acto, o que lhe confere legitimidade para a interposição de recurso. Pelo que, deve tratar-se deste caso como sendo um recurso hierárquico, conforme o disposto no artigo 35.º do Decreto-Lei 63/85/M de 6 de Julho, com as seguintes análises e propostas:
1. A remetente reclamou verbalmente no acto público de abertura das propostas embora a mesma tenha alegado, também verbalmente, que não se devia considerar a sua acção como uma reclamação. Além disso, a Comissão de Abertura das propostas respondeu à reclamação tendo sido logo exarada a decisão na acta de abertura das propostas (Anexo III), mostrando no ecrã e proferindo a decisão final. Nestes termos, a carta da remetente deve ser considerada como um recurso hierárquico em relação ao resultado da abertura das propostas.

2. O ponto 7.2 do Programa do Concurso dispõe que, “todas as páginas dos documentos, salvo os originais dos documentos emitidos pelos serviços públicos, devem ser assinadas pelo concorrente ou, no caso de sociedade comerciais, pelo seu representante legal, com aposição do carimbo.” Aliás, o ponto 12.1.4 do mesmo Programa dispõe que as propostas são excluídas no caso de não cumprimento do disposto nos pontos 7.1 a 7.2 ou 9.
3. De acordo com o disposto na alínea a) do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 63/85/M de 6 de Julho, se faltar algum elemento essencial dos incluídos no modelo indicado no Programa do Concurso, a proposta não será considerada. Ao abrigo do Programa do Concurso, entende-se que o carimbo da sociedade é um dos elementos essenciais e, o modelo exigido pelo Programa do Concurso não viola o espírito da disposição do n.º 2 do artigo 10.º do mesmo Decreto-Lei, sendo que a - mesma dispõe que “ o programa do concurso e o caderno de encargos não devem conter disposição alguma que contrarie ou altere o que se dispõe neste diploma”.
4. O concorrente deve apresentar a proposta conforme os modelos, as formas e as exigências constantes do Programa do Concurso. A A não respeitou a exigência da aposição do carimbo das sociedades comerciais, definida no ponto 7.2 do mesmo Programa, por isso, a decisão de não admissão pela Comissão de Abertura das Propostas satisfaz o disposto no ponto 12.1.4 do Programa do Concurso e, também, a disposição de que a proposta não será considerada se faltar algum elemento essencial dos incluídos no modelo indicado no Programa do Concurso, alínea a) do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 63/85/M de 6 de Julho. Pelo que, o recurso em causa deve ser indeferido.
Pelo exposto, propõe-se o indeferimento do recurso. De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 63/85/M de 6 de Julho, o recurso deverá ser decidido pela entidade competente no prazo de dez dias a contar da data da entrega das alegações. Apresenta-se a alegação (Anexo V) e o conjunto de documentos da proposta (Anexo VI) do recurso em apreço. Solicito ao Secretário a tomada de decisão.
À Consideração Superior.
Presidente do Instituto B
XXX”

10 - Em 5/10/2018, o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, lavrou o seguinte Despacho nº 58/SASC/2018 (a.a.):
“Tendo em conta a análise e os fundamentos de facto e de direito constantes da Proposta n.º 329/P/2018, de 27 de Setembro de 2018, emitida pelo Instituto B, e nos termos do n.º 3 do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 63/85/M, de 6 de Julho, e do n.º 1 do artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo, confirmo a deliberação da Comissão de Abertura de Proposta do Concurso n.º 3/P/2018, de 14 de Agosto de 2018, que não admitiu a proposta apresentada pela recorrente, A Limitada, e considero não provido o recurso apresentado pela mesma, pelo que o indefiro.
Para todos os efeitos legais, a referida proposta faz parte integrante do presente despacho.
Comunique-se ao Instituto B, devendo este proceder à competente notificação da recorrente.
Gabinete do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, aos 5 de Outubro de 2018.
O Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura,
XXX”
***
IV – O Direito
1- O caso
O acto administrativo ora sindicado, proferido em sede de recurso hierárquico, manteve a decisão de rejeitar a proposta de candidatura ao Concurso para «Arrendamento das lojas S1, S6 e S11 respectivamente, no espaço XXXXXX» apresentada pela ora recorrente. O fundamento para a exclusão foi a circunstância de a recorrente não ter aposto o carimbo em todas as folhas da proposta, o que alegadamente violaria o teor do “ponto nº 12.1.4 do Programa do Concurso e, também, a disposição de que a proposta não será considerada se faltar algum elemento essencial dos incluídos no modelo indicado no Programa do Concurso, alínea a) do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 63/85/M de 6 de Julho”.
A recorrente imputa ao acto as seguintes invalidades:
(i) O princípio do direito probatório material de Macau inscrito no artigo 357.º, n.º 2, do Código Civil; ---
(ii) O artigo 29.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 63/85/M, por interpretação a fortiori, e ---
(iii) O artigo 10.º, n.º 2, do mesmo diploma:
(iv) Errada aplicação do artigo 24.º, alínea a), do mencionado diploma legal.
O digno Magistrado do MP é de opinião que o ponto 12.1.4 do Programa do Concurso, na interpretação que foi acolhida, deve ser considerada norma ilegal por violar normas de hierarquia superior (o DL nº 63/85/M).
Apreciando.
*
2 - Da violação dos arts. 10º, nº2, 24º, al. a) e 29º, nº4, do DL nº 63/85/M
O teor do ponto 12.1.4 do Programa do Concurso (ver o texto integral do Programa a fls. 23 e sgs. dos autos) apresentava o seguinte teor:
“12.1 As propostas são excluídas nas seguintes situações:
12.1.1 Entrega das propostas depois do termo do prazo fixado no anúncio do concurso;
12.1.2 Não cumprimento do disposto nos pontos 3,4.1 a 4.4;
12.1.3 Falta de algum dos documentos referidos nos pontos 8.1.1 a 8.1.5 ou da proposta de renda referida no ponto 8.3.1;
12.1.4 Não cumprimento do disposto nos pontos 7.1 a 7.2 ou 9” (destaque nosso)
E o nº2, do ponto 7 do Programa (com a epígrafe “forma da proposta”) assinala o seguinte:
“7.2 Todas as páginas dos documentos, salvo os originais dos documentos emitidos pelos serviços públicos, devem ser assinadas pelo concorrente ou, no caso de sociedades comerciais, pelo seu representante legal, com aposição do carimbo” (destaque nosso).
Por uma simples leitura acrítica e descomprometida, dir-se-ia que a exclusão da proposta tem apoio literal nos pontos 12.1.4 e 7.2 do Programa do Concurso, pontos que, como é sabido, constituem normas regulamentares.
E enquanto normas regulamentares, não podem ultrapassar os limites das normas legais em se suportam, como claramente o sublinha o art. 10º, nº2, do DL nº 63/85/M, segundo o qual:
“2. O programa do concurso e o caderno de encargos não devem conter disposição alguma que contrarie ou altere o que se dispõe neste diploma”.
Ora, o art. 24º do referido DL nº 63/85/M reza que:
A proposta não será considerada:
a) Se faltar algum elemento essencial dos incluídos no modelo indicado no programa do concurso (destaque nosso);
b) Se, tratando-se de proposta condicionada, contiver alterações de cláusulas do caderno de encargos em relação às quais o programa do concurso não admita modificações;
c) Se a proposta ou qualquer dos documentos cuja apresentação seja obrigatória tiverem sido recebidos pela entidade competente depois do termo do prazo fixado no anúncio do concurso;
d) Se na proposta faltar a assinatura do proponente.
E o art. 29º dispõe:
“1. Cumprido o que se dispõe nos artigos anteriores, a comissão, em sessão não pública, deliberará sobre a habilitação dos concorrentes em face dos documentos por eles apresentados, após o que voltará a tornar-se pública a sessão para se indicarem os concorrentes excluídos e as razões da sua exclusão.
2. Serão excluídos os concorrentes cujos documentos estejam abrangidos na alínea c) do artigo 24.º
3. Anotar-se-á na lista dos concorrentes a exclusão daqueles que a comissão tenha deliberado não admitir.
4. Se os documentos estiverem selados, mas com deficiência de selo, ou alguma assinatura não estiver reconhecida, devendo-o estar, a comissão admitirá condicionalmente os concorrentes a que os documentos respeitem e prosseguirá nas operações do concurso, devendo, porém, tais irregularidades ser sanadas no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de ficar sem efeito a admissão e serem excluídos do concurso. (destaque nosso)
5. Se contra as deliberações tomadas for deduzida qualquer reclamação, a comissão decidi-la-á imediatamente, mas de tudo se fará menção na respectiva acta.
6. Quando a importância ou complexidade da aquisição o justifique, o anúncio do concurso poderá determinar que, abertos os sobrescritos dos documentos, rubricados pela comissão e relacionados na acta, seja suspenso o acto público por prazo razoável que permita o estudo dos documentos.
Ora, quando o diploma legal citado remete para os elementos essenciais do Programa do Concurso (art. 24º, al. a)), antes de mais nada não está a referir-se, seguramente, à forma da proposta, cuja observância está plasmada no ponto 7 do Programa.
É que forma da Proposta é uma coisa, e outra, diferente, são os elementos que compõem a Proposta. Quer isto dizer, que quando a lei (cit. art. 24º, al. a)) permite que a Proposta não seja considerada se lhe faltarem elementos essenciais só pode estar a referir-se, não à forma, mas à existência e substância dos elementos/documentos que a devem constituir, ou seja, aos elementos que constam do ponto 8, com a epigrafe “Documentos que constituem a proposta”.
Consequentemente, neste caso, a norma regulamentar foi além da norma legal e por isso não podia ser aplicada, pelo que aqui a desaplicamos.
Ou seja, o acto que fez aplicação do ponto 12.1.4 do Programa do Concurso, que permite a exclusão da Proposta da recorrente, por não cumprir o disposto nos pontos 7.1 a 7.2, está, obviamente, a desrespeitar aquele preceito do referido diploma, que é, consabidamente, fonte de hierarquia superior.
Nem se podia concluir de outra forma. Com efeito, se as normas têm que apresentar um sentido lógico e ontológico, não devemos olhar para elas como se por detrás delas não haja uma finalidade a atingir, um qualquer valor a proteger, um bem jurídico a salvaguardar e defender.
Ora, a aposição do carimbo não é, de maneira nenhuma, uma formalidade “ad substantiam”, mas, num certo sentido, “ad probationem”. O que se pretende com a «forma» referida no ponto 7 do Programa é garantir a autoria da Proposta, por um lado, e evitar que nenhuma peça ou elemento de que ela se compõe seja “substituído” depois de integrar o procedimento concursal, dessa maneira se afiançando a autenticidade dos elementos e documentos apresentados. Isto é, ao mesmo tempo que reflecte uma preocupação de salvaguarda do interesse público envolvido, acaba por manifestar a defesa da posição jurídica desse concorrente e, nesse sentido, tem por fim igualmente defender os seus interesses. Ora, este balanceamento e a inerente ponderação de interesses não foram sopesados no caso em presença.
Por ser assim, não se crê que a falta dessa formalidade, por não corresponder a um elemento concursal essencial, como atrás assinalamos, nunca poderia legitimar a actuação da Comissão nem, consequentemente, a do autor do acto aqui sindicado.
Ao agir, como agiu, no caso em apreço, a Administração elevou a forma a um expoente absoluto, sobrepondo-o à substância e à matéria do caso, sem apoio, nem amparo, no DL nº 63//85/M, nem sequer no ponto 7 do Programa do Concurso.
Não podemos deixar de lembrar que no procedimento administrativo contratual nos depararemos com uma situação de irrelevância do vício procedimental, sempre que (e na medida em que) os fins específicos que a imposição legal (ou regulamentar) da formalidade vise atingir sejam comprovadamente alcançáveis, ainda que por outra via (neste sentido, Ac. do TUI, de 12/10/2011, Proc. nº 45/2011). Ou seja, o procedimento administrativo deve ser conduzido até ao seu objectivo final, sempre que possível, eliminando-se os escolhos formais que se forem enfrentando a cada passo. Quando uma questão meramente formal é passível de suprimento, deve o órgão administrativo que do procedimento tiver a respectiva instrução tudo fazer para o promover2, dando ao interessado a possibilidade de sanar a irregularidade, como, aliás, o art. 29º, nº4, do DL nº 63/85/M impõe para casos de irregularidades formais até mais sérias do que esta, e cuja aplicação, que mais não fosse, até por analogia se imporia no caso. Era o que aqui se esperava, como sinal de uma Administração eficiente.
Em suma, se o caso não pode ser resolvido à luz do art. 357º, nº2 do Código Civil - uma vez que a vexata quaestio não traduz a ausência de documento escrito, já que o vício que a Comissão avistou, e que o acto sindicado sancionou, não foi o documento em si mesmo, mas sim a falta, nele, de uma mera formalidade - o recurso não pode deixar de proceder, por violação das disposições normativas epigrafas em IV.2, sem esquecer o próprio ponto 7, nº2 do Programa do Concurso.
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V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso contencioso, anulando o acto administrativo ora sindicado.
Sem custas, por delas estar isenta a entidade recorrida.
T.S.I., 5 de Dezembro de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fui presente
Joaquim Teixeira de Sousa

1 “Todas as páginas dos documentos, salvo os originais dos documentos emitidos pelos serviços públicos, devem ser assinados pelo concorrente ou, no caso de sociedade comerciais, pelo seu representante legal, com aposição do carimbo.”
2 Sob pena de se violar o princípio da proporcionalidade, disse o citado aresto do TUI.
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Rec. Cont. nº 1035/2018 1