Proc. nº 685/2018
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 5 de Dezembro de 2019
Descritores:
- Instituto de Habitação
- Habitação económica
SUMÁRIO:
I - Se é certo que a letra dos arts. 14º, nº4 e 34º, nº4, ambos da Lei nº 10/2011, não prevêem a situação de compropriedade, e apenas contemplam a situação jurídica de propriedade e promessa de aquisição de fracções habitacionais como motivo de indeferimento à candidatura a uma casa de habitação económica (art. 14º) ou como factor de resolução ao contrato de promessa entretanto celebrado com o IH (art. 34º), o certo é que para casos diferentes a solução pode também ser diferente, desde que aí releve decisivamente a ratio legis que deva ser tida em conta na interpretação das normas.
II - Não é possível comparar a situação dos candidatos que, depois dos contratos-promessa de aquisição de uma casa de habitação económica, vêm a ser comproprietários de uma fracção por sucessão hereditária, daquela outra em que os promitentes-compradores da casa do IH vêm a adquirir, juntamente com a sua namorada ou futuro cônjuge, uma fracção para nela irem posteriormente residir.
III - A interpretação literal daqueles preceitos, neste segundo grupo de casos, tem que ceder à interpretação com base no espírito e intenção do legislador, que apenas tem por objectivo conceder o direito de aquisição a quem careça realmente de uma habitação para viver e não disponha de meios económicos suficientes para a adquirir no mercado privado da habitação.
Proc. nº 685/2018
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I - Relatório
A, do sexo masculino, da nacionalidade chinesa, casado, requerente portador do BIRM permanente n.º XXX, residente XXXXXX, Macau, com o número de agregado familiar para o requerimento de habitação económica junto do Instituto de Habitação n.º XXXX, -----
Recorreu contenciosamente para o Tribunal Administrativo (Proc. nº 1354/16-ADM) ----
Do despacho do Presidente do Instituto de Habitação na proposta n.º 1776/DHP/DHEA/2016 ---
Que declarou a resolução do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre si e o IH da fracção de habitação económica sita no XXXXXX, na Taipa.
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Na oportunidade foi proferida sentença que decidiu pela improcedência do recurso.
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Contra essa sentença, vem o mesmo interessado A recorrer jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. O objecto do presente recurso é a sentença (doravante designada simplesmente por a “sentença recorrida”, vide a fls. 106 a 112 dos autos) dos autos em epígrafe, o tribunal a quo negou provimento à acção apresentada pelo recorrente contencioso e entendeu que a sentença recorrida não está viciada por erro nos pressupostos de direito. (vide a fls. 14 da “sentença recorrida”)
2. Além do devido respeito, o recorrente contencioso entendeu que a “sentença recorrida” enfermou no vício previsto pelo artigo 14º, n.º 4 e pelo artigo 34º, n.º 4 da Lei n.º 10/2011, Lei da Habitação Económica, na redacção dada pela Lei n.º 11/2015 (doravante designada simplesmente por a “Lei da Habitação Económica”).
3. No presente caso, a “sentença recorrida” reconheceu o facto de que B compôs a outra família e adquiriu a metade da propriedade do bem, até reconheceu em termos abstractos que já se encontrou satisfeita a necessidade de habitação da B, no entanto, a “sentença recorrida” nunca considerou o facto de que a necessidade de habitação do recorrente contencioso não foi resolvida.
4. Depois da celebração do contrato-promessa feita pelo recorrente contencioso e antes da celebração da escritura pública da habitação económica, B compôs a outra família, quanto ao facto acima referido, a lei não deixou nenhum espaço ao recorrente contencioso para efectuar o cancelamento da B no seu agregado familiar.
5. A lei introduze os organismos, para que as pessoas que têm justa causa possam pedir a autorização excepcional (nos termos do artigo 14º, n.º 6 da Lei da Habitação Económica), esta disposição visa à distribuição equitativa dos recursos carecentes de habitação pública e ao equilíbrio das necessidades reais de habitação dos residentes, para as pessoas que já tenham requerido, ou adquirido uma habitação económica, quando eram menores e juntamente com os pais, mas, sendo maiores e casados, os legisladores manifestam a preocupação e dão prosseguimento aos casos, criando o regime de autorização excepcional para que se afastem do agregado familiar de origem.
6. Desde o pedido da compra de uma habitação económica em lista de espera até agora, há mais de 10 anos, no momento em que o recorrente contencioso celebrou o referido contrato-promessa, B já tinha uma idade de 29 anos e encontrava-se grávida, o filho da B nasceu em Janeiro de 2013.
7. Depois do crescimento, é natural que B contraiu o casamento com outro e compôs a nova família, é a esta situação que se deverá ater, além disso, a aquisição da metade de propriedade do respectivo bem imóvel não se baseia nos bens do recorrente contencioso ou dos membros do seu agregado familiar.
8. De facto, a composição da nova família da B não satisfaz as necessidades de habitação dos membros (incluindo o recorrente contencioso, a C e o D) do agregado familiar do recorrente contencioso.
9. No fim, o recorrente contencioso adquiriu a habitação económica por agregado familiar composto por 4 pessoas, a graduação recorreu-se a sorteio informático, em série, o requerimento do agregado familiar do recorrente contencioso não fica sujeito às restrições de rendimento e de património.
10. Com base nisso, a situação da B não afectará de qualquer forma ao decurso de apreciação em que o recorrente contencioso foi seleccionado como adquirente da fracção de habitação económica.
11. Daqui se vislumbra que, o recorrente contencioso ficava na lista de espera destinada à compra da habitação económica por mais de 10 anos, porém, a aquisição da metade de propriedade da fracção da B não resolveu as necessidades de habitação da família nativa, por outro lado, a situação da B não constituiu factores benéficos na atribuição da fracção, nestes termos, na interpretação do artigo 14º da Lei da Habitação Económica, deve-se ter em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, ou seja, deve ter em consideração nos múltiplos aspectos, se o candidato seja ou não o destinatário da política de habitação pública, por outras palavras, a interpretação não só se deve cingir à letra da lei.
12. Conforme o espírito legislativo da Lei da Habitação Económica, quanto à limitação em matéria de elegibilidade no pedido de comprar a habitação económica, a intenção legislativa é da seguinte forma, “Quanto às situações de aquisição de habitação no mercado privado depois de celebrado o contrato de compra e venda de habitação económica, os representantes do Governo afirmaram que tal situação é admissível, seja para efeitos de habitação própria, seja para investimento. A Comissão partilha a ideia de que a política de habitação económica não deve ser impeditiva da mobilidade social da população, em virtude de uma melhoria das suas condições económicas” (vide a fls. 11, ou seja, a alínea 4.2.2., a parte de elegibilidade, na versão chinesa do Parecer n.º 3/IV/2011 do projecto da Lei da Habitação Económica da 3.ª Comissão Permanente)
13. Embora o teor supracitado não seja concretizado no direito positivado, ainda se mostra a natureza de orientador na interpretação da limitação em matéria de elegibilidade, e reflecte-se a intenção legislativa no momento em que a lei foi elaborada.
14. Disso se depreende que os legisladores não fazem uma restrição aos poderes de disposição do bem dos candidatos que possuem a determinada condição económica, para tal, a respectiva restrição visa apenas assegurar que os candidatos existem realmente as necessidades de habitação.
15. Por outro lado, a Lei da Habitação Económica toma os agregados familiares como objectos subjectivos, nesta situação, ao averiguar a limitação em matéria de elegibilidade dos candidatos, devendo-se considerar: se satisfaça as necessidades reais de habitação de todos os membros do agregado familiar.
16. Dos dados constantes nos autos, para o recorrente contencioso, o problema de habitação a enfrentar nunca foi resolvido.
17. Nestes termos, como B adquiriu a metade de propriedade do bem, a “sentença recorrida “ até determinou com esta razão que a situação da B pertenceu à situação relatada no artigo 14º, n.º 4 da Lei da Habitação Económica, aplicando desta forma a norma do artigo 34º, n.º 4 da Lei da Habitação Económica e efectuando o acto recorrido, no entanto, a “sentença recorrida” não atendeu ao facto de que na verdade, a necessidade de habitação do recorrente contencioso e dos membros do seu agregado familiar, não se vê resolvida, isto causou ao recorrente contencioso a excessiva injustiça e o tratamento injustificado, parece que seria ir contra a intenção legislativa dos legisladores.
18. Pelo exposto, como a “sentença recorrida” violou a interpretação do artigo 14º, n.º 4 da Lei da Habitação Económica, até enfermando desta forma do vício de erro nos pressupostos de direito do artigo 34º, n.º 4 da mesma lei, com base nisso, nos termos do artigo 159, n.º 2 do Código de Processo Administrativo Contencioso, deve-se declarar a nulidade da “sentença recorrida”.
Face ao expendido, requer que o MM.º Dr. Juiz do TSI julgue procedente o presente recurso, anule a sentença recorrida e o acto recorrido. JUSTIÇA!”
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A entidade recorrida respondeu ao recurso pugnando pelo improvimento em termos que aqui damos por reproduzidos.
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“No âmbito do recurso contencioso de anulação n.º 1354/16-ADM interposto no Tribunal Administrativo, em que era impugnado o despacho de 2 de Julho de 2016, da autoria do Exm.º Presidente do Instituto da Habitação, foi proferida, em 12 de Abril de 2018, a sentença de fls. 106 e seguintes, que negou provimento ao recurso.
É desta sentença que vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações o recorrente volta a esgrimir e repisar, com uma roupagem em tudo idêntica, motivos e argumentos que já antes utilizara em sede de recurso contencioso, na caracterização e explicitação do imputado vício de erro nos pressupostos, que considera ter sido objecto de errado julgamento na sentença recorrida.
Na oportunidade, pronunciou-se o Ministério Público sobre os vícios imputados ao acto, e nomeadamente sobre o questionado erro nos pressupostos, fazendo-o nos moldes do parecer de fls. 102 e seguintes, manifestando-se contra a tese da ilegalidade do acto que agora volta a terreiro. Temos por pertinente e bem fundada a posição avançada pelo Ministério Público no recurso contencioso, que sufragamos, coincidente, ao cabo e ao resto, com aquele que viria a ser o sentido decisório da sentença recorrida, que, de forma clara e suficiente, analisou todos os vícios assacados ao acto e explicou e demonstrou a sem razão do recorrente.
Daí que, reafirmando o teor do aludido parecer, nos pronunciemos pela improcedência dos fundamentos do recurso jurisdicional na análise do invocado erro de julgamento.
Ante o exposto, e na improcedência dos fundamentos do recurso, deve ser-lhe negado provimento.”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
“1 - O agregado familiar do recorrente é candidato à habitação económica do ano de 2003, cujo boletim da candidatura foi admitido na lista geral, no qual os elementos do agregado familiar inscritos são o próprio recorrente, o seu cônjuge C, a filha B e o filho D. (vide fls. 2 do Processo Administrativo)
2 - Em 31 de Janeiro de 2012, o recorrente subscreveu um termo de compromisso para aquisição de habitação económica, a fim de confirmar a aquisição da XXXXXX, na Taipa, em Macau. (vide fls. 4 do Processo Administrativo)
3 - Em 6 de Junho de 2012, o contrato-promessa de compra e venda da fracção de habitação económica acima indicada foi celebrado entre o Instituto de Habitação e o recorrente, pelo preço de MOP$945.700,00. Através do crédito à habitação do banco, o recorrente pagou integralmente este preço. (vide fls. 5 a 10v. do Processo Administrativo).
4 - Em 11 de Julho de 2012, um dos elementos do agregado familiar do recorrente, B, apresentou uma declaração do imposto de selo - modelo M/1 - “Declaração de Transmissão de Bens a Título Oneroso ou Gratuito” para a Direcção dos Serviços de Finanças, na qual declarou comprar 50% do direito de propriedade da fracção autónoma, sita na XXXXXX, em Macau. (vide fls. 20 do Processo Administrativo)
5 - Em 22 de Outubro de 2012, B e E contraíram casamento em Macau sob o regime da comunhão geral de bens. (vide fls. 14 e v. do Processo Administrativo)
6 - Em 3 de Março de 2014, B e E, na qualidade dos proprietários, procederam à feitura do registo de aquisição da fracção autónoma, sita na XXXXXX, em Macau, junto da Conservatória do Registo Predial. (vide fls. 18 e v. do Processo Administrativo)
7 - Em 23 de Abril de 2016, a entidade recorrida proferiu despacho em que concordou com o conteúdo da Proposta n.º 1018/DHP/DHEA/2016, indicando que, durante o período entre a celebração do contrato-promessa de compra e venda da fracção de habitação económica e a emissão do Termo de Autorização, o elemento do agregado familiar do recorrente era o proprietário da fracção autónoma com finalidade habitacional na RAEM, pelo que decidiu proceder à audiência escrita do recorrente. (vide fls. 21 a 22v. do Processo Administrativo)
8 - No mesmo dia, o Instituto de Habitação notificou o recorrente da decisão acima referida através do ofício n.º 1604150007/DHEA, no qual indicou que o recorrente devia apresentar, por escrito, a sua justificação relativa aos factos acima referidos, no prazo de 10 dias contados a partir da data da recepção da notificação, bem como podia apresentar todas as provas testemunhais, materiais, documentais e outros meios de prova. (vide fls. 23 do Processo Administrativo)
9 - Em 13 de Junho de 2016, o recorrente, através do seu mandatário judicial, apresentou a audiência escrita para a entidade recorrida, referindo que o respectivo imóvel foi doado por E, cônjuge de B. (vide fls. 28 a 32 do Processo Administrativo)
10 - Em 2 de Julho de 2016, a entidade recorrida proferiu despacho em que concordou com o conteúdo da Proposta n.º 1776/DHP/DHEA/2016, indicando que, nos termos do disposto no art.º 60.º, n.º 5, al. 1) e art.º 14.º, n.º 4, al. 1) da Lei n.º 10/2011- “Lei da Habitação Económica”, alterada pela Lei n.º 11/2015, a respectiva pessoa não podia candidatar-se à aquisição de fracção, pelo que decidiu resolver o contrato-promessa de compra e venda da fracção de habitação económica em questão, celebrado em 6 de Junho de 2012 entre o Instituto de Habitação e o recorrente. (vide fls. 33 a 37 do Processo Administrativo, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido)
11 - Em 7 de Julho de 2016, o Instituto de Habitação notificou o recorrente da decisão acima referida através do ofício n.º 1606170078/DHEA. (vide fls. 38 a 39 do Processo Administrativo)
12 - Em 8 de Agosto e 2016, o mandatário judicial do recorrente interpôs o presente recurso contencioso para este Tribunal da decisão acima referida.”
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III – O Direito
1 – O caso
O IH (Instituto de Habitação) declarou resolvido o contrato-promessa celebrado entre si e o recorrente tendente à aquisição de uma fracção habitacional em regime de habitação económica. A resolução deveu-se ao facto de um dos elementos do agregado do recorrente, concretamente a sua filha B, enquanto decorria o prazo para a celebração do contrato definitivo, ter entretanto adquirido metade de uma fracção juntamente com um individuo com quem viria a casar.
A fundamentação jurídica da decisão resolutória assentou no disposto nos arts. 14º, nº4, al. 1), 34º, nº4 e 60º, nº5, al. 1), da Lei nº 10/2011 (Lei de Habitação Económica), alterada pela Lei nº 11/2015.
A todos os vícios imputados pelo recorrente ao acto, a sentença julgou improcedentes.
Agora, no recurso jurisdicional, o recorrente insurge-se contra o julgado na parte referente ao vício de violação de lei, e a que deu o nome de “erro nos pressupostos de direito”, considerando ter havido má interpretação e errada aplicação dos arts. 14º, nº4, 34º, nº4 da referida Lei.
Vejamos.
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2 – Resulta do nº1, do art. 5º, da Lei nº 10/2011 que “as fracções destinam-se exclusivamente a habitação própria do promitente-comprador ou do proprietário e dos respectivos agregados familiares”. E, por sua vez, o nº2 preceitua que “Considera-se habitação própria a ocupação efectiva e com carácter permanente da habitação por parte das pessoas referidas no número anterior”.
Por outro lado, o agregado a considerar para este efeito, “…compreende o conjunto de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação e estejam ligados por uma relação jurídica familiar ou por união de facto” (art. 6º, nº1).
Podia, portanto, o recorrente apresentar a candidatura para si e agregado composto pela mulher e dois filhos. Tratava-se de uma candidatura familiar ou por agregado (ver nº1, do art. 14º).
Acontece que, depois da celebração do contrato-promessa a filha B adquiriu metade da propriedade de uma fracção habitacional, vindo a casar pouco tempo depois.
Ora, o nº 4 do citado art. 14º dispõe que “….os candidatos não podem ser ou ter sido, nos cinco anos anteriores à data da candidatura e até à data de celebração da escritura pública de compra e venda da fracção ….1) promitentes-compradores ou proprietários de prédio urbano ou fracção autónoma com finalidade habitacional ou terreno na RAEM”.
Como a filha do recorrente adquiriu metade de uma fracção autónoma antes de ter sido celebrada a escritura definitiva de compra e venda da fracção de habitação económica, o IH considerou que havia motivo para proceder à resolução do contrato-promessa e assim fez, ao abrigo do art. 34º, nº4, do citado diploma.
Este preceito reza assim: “O IH procede à resolução do contrato-promessa caso verifique, durante o período entre a celebração do contrato-promessa de compra e venda e a emissão do termo de autorização, que o promitente-comprador e os elementos do seu agregado familiar não cumprem os requisitos previstos no n.º 4 do artigo 14.º, salvo o incumprimento daqueles a favor de quem seja transmitida a posição contratual por morte do promitente-comprador ou dos elementos do seu agregado familiar”.
Vale a pena notar que a disposição transcrita é vinculativa para o Instituto, dada a forma como está redigida (“O IH procede à resolução…”). Estamos no âmbito de uma actividade vinculada, sem que o IH tenha qualquer alternativa ou opção decisória; é obrigado a resolver o contrato-promessa, porque assim lho determina o art. 34º, nº4, transcrito, desde que a situação material concreta se subsuma à respectiva previsão legal.
Ora, teve este TSI a oportunidade de dizer que a disposição do art. 14º, nº4, al. 1) citada, ao referir-se a proprietários não pode estar a incluir a situação dos comproprietários (cfr. Ac. de 14/12/2017, Proc. nº 807/2016), em particular quando essa situação de compropriedade advém de um quadro de sucessão hereditária, e em que se concluiu que tal não se podia reflectir negativamente na esfera do candidato à habitação económica (v.g., TSI, de 9/07/2015, Proc. nº 823/2014; de 10/12/2015, Proc. nº 771/2014; 18/02/2016, Proc. 679/2015).
E, por tal motivo, também este tribunal teve oportunidade de observar que talvez se impusesse uma alteração legislativa clarificadora e de melhoramento da legislação de forma a excluir expressamente as situações de compropriedade ou, então, explicitar os casos em que a compropriedade não poderia ser obstáculo à candidatura (cit. Proc. nº 807/2016).
Poderia dizer-se que a situação dos autos é parecida com a dos processos citados, visto que também aqui a situação é de compropriedade. Há, no entanto, uma grande diferença.
É que, enquanto naquelas situações os interessados tinham adquirido a qualidade de comproprietários em virtude de herança, no caso presente a aquisição derivou de um contrato de compra e venda pelo próprio membro do agregado precisamente com o propósito de a adquirente ir viver na fracção com o seu marido.
É por isso que a interpretação do art. 14º merece um olhar atento e correctivo, que não pode deixar de considerar especialmente o objectivo social e solidário da lei e a situação dos candidatos.
O TSI tem interpretado o nº4 do art. 14º no sentido de que a disposição só contempla as situações de propriedade e não compropriedade. Haverá, no entanto, que não generalizar os casos e, pelo contrário, olhar para cada um e descobrir neles o fundamento e finalidade com que a norma foi erigida.
Assim sendo, não podemos incluir nos casos de exclusão do direito todas as situações de compropriedade, sob pena de se promover uma grande injustiça, como seria o caso tratado nos arestos do TSI em que a compropriedade adveio aos interessados por sucessão hereditária, já que essa situação, por si só, jamais permitiria aos herdeiros beneficiários poderem ir viver na casa objecto partilhada, tal como nos acórdãos foi explicado.
O caso em exame é diferente dos estudados naquelas decisões do TSI. É que neste em concreto a aquisição de metade da fracção por parte da filha do candidato se deveu à situação particular dela, que, porque iria casar muito em breve, necessitaria de ir viver na casa com o seu marido. Ou seja, a titularidade sobre a coisa em regime de compropriedade tinha esse propósito firme de permitir à compradora abandonar o agregado familiar do recorrente para ir viver numa nova célula familiar em casa própria.
Sendo assim, e nesta interpretação da lei, a actuação do IH teria cumprido a função social do regime de habitação económica derivado do diploma em análise e respeitado a alínea 1), do nº4, do art. 14º.
E estando este entendimento em conformidade com o espírito da lei, então a argumentação trazida pelo recorrente não pode proceder.
Com efeito, nada do que o recorrente aduz a respeito das condições da filha (alegadamente grávida e à espera de um casamento, que a breve prazo acabou por contrair) surte o efeito desejado pelo recorrente. Na verdade, atendendo ao valor social da habitação, a satisfação desta necessidade básica por intermédio deste meio económico implica a observância de apertados requisitos que a lei estabelece. Ora, como se sabe, a tipologia de uma casa a atribuir depende do número de pessoas que compõem o agregado. A ratio da lei é deixar de conferir o direito à habitação económica a alguém, cujo membro do agregado candidato tenha, individualmente, deixado de ser interessado na fracção atribuída. Ou seja, deixando de se justificar a atribuição da casa prometida vender, face ao afastamento de um determinado membro do agregado do interesse inicialmente manifestado, então a resolução do contrato-promessa acaba por ser uma solução legal razoável e socialmente aceitável. Através dela permite-se que a fracção seja disponibilizada a outra candidatura e, deste modo, se cumpram os ditames da lei e ao mesmo tempo, de uma maneira justa, se venham a proteger os interesses de outros residentes carecidos dessa tipologia habitacional.
Portanto, o facto de a filha do recorrente ter resolvido o seu problema habitacional (adquirindo casa própria) e familiar (contraindo casamento), contribuiu para que o recorrente e os restantes membros do agregado (esposa e filho) tenham ficado sem a solução imobiliária que almejavam obter. Agora o recorrente e o seu agregado familiar (diminuído) carecerão de uma casa menor. E isso também explica a resolução imposta por lei.
Claro que esta solução da lei pode ser injusta algumas vezes. Basta pensar que uma candidatura de um agregado composto por pai, mãe e dois filhos de 15 e 16 anos, pode vir a ser bem sucedida com a atribuição rápida de uma habitação económica. Ora, em tal caso a casa é definitivamente adquirida e satisfaz todo o agregado durante uns largos anos, jamais sendo causa de resolução o facto de um dos filhos sair dessa casa alguns anos depois, mal case aos vinte e cinco anos, por exemplo.
Em contrapartida, uma família em situação idêntica pode vir a confrontar-se com uma situação com a dos autos, só porque o IH demora injustificadamente largos anos a decidir a atribuição, sendo que entretanto, um dos filhos acaba por contrair casamento e adquirir casa própria. Esta situação acaba por “prejudicar” de certo modo esta candidatura, como facilmente se compreenderá, se se pensar que a decisão final pode ocorrer já depois de um dos membros solteiros contrair matrimónio.
Mas, enfim, cada caso terá a resposta que juridicamente merecer, não nos sendo possível enveredar por caminhos extrajurídicos.
Assim, somos a concluir que o tribunal “a quo” não errou na interpretação que fez das disposições legais citadas, nem procedeu erradamente à sua aplicação.
E como esta foi a única questão suscitada no recurso jurisdicional, cumpre-nos negar provimento ao recurso.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo e confirmando a sentença impugnada.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 8 UCs.
T.S.I., 5 de Dezembro de 2019
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Tong Hio Fong (com declaração de voto vencido em anexo)
Fui presente
Joaquim Teixeira de Sousa
DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO
Votei vencido por entender que a situação dos autos não se enquadra na previsão do artigo 14.º, n.º 4, alínea 1) da Lei n.º 10/2011, alterada pela Lei n.º 11/2015.
A jurisprudência deste Tribunal tem considerado que só no caso de o interessado passar a ter o gozo pleno e exclusivo de determinado bem imóvel, ou seja, aquele que seja promitente-comprador ou titular do direito de propriedade sobre a totalidade do bem imóvel com finalidade habitacional, é que deverá ser impedido de se candidatar à compra de habitação económica, por que neste caso o seu direito de habitação fica plenamente assegurado, sem obstáculo.
Ao contrário do que se entende no Acórdão, e salvo o devido respeito, julgo que que não cabe ao intérprete distinguir aquilo que o legislador não distinguiu.
Melhor dizendo, se considerarmos que o legislador empregou o termo “proprietário” e não “comproprietário” como circunstância impeditiva da candidatura de habitação económica, por que o fez em plena consciência, que conhecia a diferença entre os institutos e que exprimiu convenientemente o seu pensamento. Em boa verdade, o legislador não fez distinção entre situações de aquisição “activa” (por exemplo, através de compra e venda) e “passiva” (nomeadamente por via de herança) de prédio urbano ou fracção autónoma na RAEM, daí que a aquisição pela filha interessada da metade indivisa do direito de propriedade de uma fracção autónoma não integra o conceito propriamente dito de “propriedade” do artigo 14.º, n.º 4, alínea 1) da Lei n.º 10/2011.
Ademais, tendo a interessada (filha) casado com o marido no regime da comunhão geral, o bem imóvel adquirido pelos cônjuges integra a comunhão conjugal, isso significa, no fundo, que antes do divórcio, a filha apenas é titular de uma quota-parte da fracção autónoma, e não titular do direito de propriedade a que se alude no artigo 14.º, n.º 4, alínea 1) da Lei n.º 10/2011.
Sendo assim, salvo melhor entendimento, julgo que a lei não impede que a ela seja reconhecida a qualidade de membro do agregado familiar no procedimento de candidatura à habitação económica, devendo, pois, este Tribunal conceder provimento ao recuso jurisdicional.
Tong Hio Fong
05.12.2019
Proc. nº 685/2018 22