Processo nº 462/2019
Data do Acórdão: 28NOV2019
Assuntos:
Inventário
Despesas de condomínio das fracções autónomas integradas na herança indivisa
Direito de preferência
Venda judicial dos bens integrados na herança indivisa
SUMÁRIO
1. No âmbito de inventário para partilha da herança indivisa, as despesas de condomínio das fracções autónomas integradas na herança indivisa devem ser incluídas no passivo da mesma herança indivisa, não obstante reportadas aos períodos de tempo posteriores ao falecimento do de cujus, pois se tratam de despesas inerentes aos bens a partilhar e a obrigação de as pagar deve recair sobre a herança.
2. O direito de preferência, por lei conferido ao comproprietário de um bem na aquisição das restantes quotas-partes do bem, se justifica pelos fins de: a) fomentar a propriedade plena que facilita a exploração mais equilibrada e mais pacífica dos bens; b) diminuir o número dos consortes quando não for possível alcançar a propriedade exclusiva; e c) impedir o ingresso, na contitularidade do direito de pessoa com quem os consortes, por qualquer razão, o não queiram exercer; e
3. Assim, no âmbito do inventário para a partilha de uma herança indivisa, quando não tiver sido acordada a forma para partilhar ou adjudicar a qualquer dos interessados o bem integrado na herança e consequentemente ordenada a venda judicial do bem por inteiro, qualquer dos interessados não tem direito de preferência na aquisição do bem, uma vez que, ao ser colocado à venda o bem por inteiro, o objecto da venda judicial já não um quinhão hereditário ou uma mera quota-parte de um determinado bem integrado na herança e portanto não está presente nenhum desses fins que justificam a atribuição do direito de preferência aos co-herdeiros nos termos prescritos no artº 1970º do CC.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 462/2019
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
No âmbito dos autos de inventário nº CVI-06-0079-CIV, veio A, um dos interessados, reclamar contra a relação de bens, apresentada pelo cabeça-de-casal, pedindo que fosse acrescentada uma nova verba ao passivo, correspondente às despesas de condomínio das fracções autónomas identificadas nas verbas 11 e 12 do activo, com o valor total de MOP$161.824,00.
Por despacho do Exmº Juiz titular do processo, a reclamação foi indeferida nos termos seguintes:
Vem o interessado A (A) reclamar da Relação de Bens de fls. 762 a 767, alegando sucintamente que deve incluir na Relação de Bens mais um passivo atinente às despesas de condomínio relativo aos dois imóveis melhor identificados como verba 11 e 12 da referida Relação de Bens.
…..
*
Quanto ao alegado passivo - despesas de condomínio relativas às verbas 11 e 12 do activo, o Tribunal entende que não devem ser considerados como passivo que integra a herança.
Em termos teóricos, essas despesas são consideradas como obrigações não autónomas, isto é, obrigações que se constituem na dependência de uma relação existente, sendo neste caso, de natureza real, inerente aos dois imóveis melhor identificados na verba 11 e 12.
Ademais, dos elementos carreados nos autos, verifica-se que o inventariado faleceu em 26/03/2006, e dos recibos das ditas despesas de condomínio constata-se que são todas as despesas referentes às datas posteriores da morte do inventariado. Assim, um falecido nunca pode contrair dívidas!
Nestes termos, indefiro a relação porquanto as alegadas despesas de condomínio não são tidas como passivo que integra a herança.
Desentranhe as fls. 824 a 933.
Notifique.
**
Para a conferência dos interessados, designo o dia 29 de Novembro de 2017, pelas 10H00.
Notifique e DN.
Notificado e inconformado, veio o interessado reclamante A recorrer desse despacho que lhe indeferiu a reclamação concluindo e pedindo que:
A - Vem o presente recurso interposto do despacho de fls. 942 dos autos, na parte em que o Tribunal a quo indeferiu a reclamação da Relação de Bens e, por essa via, indeferiu a inclusão de uma verba no passivo relativa às despesas de condomínio dos dois imóveis melhor identificados como verba 11 e 12 da relação de bens de fls. 762 a 767 dos autos, considerando que “... as alegadas despesas do condomínio não são tidas como passivo que integra a herança.”
B - O Tribunal a quo não menciona a norma jurídica que sustenta o seu entendimento.
C - Entende o Recorrente que o Tribunal a quo não analisou adequadamente a situação sub judice, nomeadamente à luz dos arts. 1906.º, 1908.º, n.º 2 e 1928.º do Código Civil e tendo presente a natureza das despesas de condomínio, artigos esses que se encontram violados pela decisão recorrida.
D - As despesas de condomínio são obrigações “propter rem” que existem por inerência aos imóveis, não podendo as partes decidir livremente sobre o seu pagamento ou não, sem sofrer as respectivas consequências.
E - Caso tais despesas não sejam pagas, tais factos poderão responsabilizar directamente, quer a Cabeça de Casal, quer os restantes herdeiros, tendo em conta que os imóveis, enquanto não forem partilhados, pertencem à herança indivisa.
F - Não está no poder de disponibilidade das partes proceder ao respectivo pagamento ou não, porquanto caso tais despesas não sejam pagas, tal facto tem consequências graves para a Cabeça-de-casal, a quem podem vir a ser pedidas contas.
G - Podendo o pagamento ser exigido coercivamente, em sede de execução ou reclamação no próprio processo de inventário, à herança indivisa (cfr. art.1908.º, n.º 2 do Código Civil).
H - Contrariamente ao que ironicamente se consigna no despacho recorrido, não se trata, obviamente, de dívidas contraídas pelo falecido, mas antes de despesas que existem pela administração e liquidação do património hereditário, à semelhança dos impostos sobre os imóveis.
I - As despesas de condomínio são, portanto, despesas ou encargos com a administração e liquidação do património hereditário, tal como previsto no art. 1906.º do Código Civil.
J - Pelo que deve ser declarada procedente a reclamação apresentada pelo ora Recorrente a fls. 818 e seguintes dos autos, assim se acrescentando uma verba ao passivo correspondente às despesas com o condomínio e que, à data da apresentação da reclamação, ascendiam ao montante de MOP$161,824,00, conforme resulta dos documentos que o Tribunal a quo ordenou desentranhar, mas que o Recorrente desde já se prontifica a juntar aos autos.
***
Peças processuais que, nos termos do art. 615.° do C.P.C., devem instruir o presente recurso:
- A relação de bens de fls. 762 a 767 dos autos;
- A reclamação sobre a relação de bens de fls. 818 e ss.;
- O despacho recorrido de fls. 942 (e verso) dos autos.
Termos em que se requer a V. Ex.ªs que seja declarado procedente o presente recurso e, em consequência, seja ordenado o aditamento de uma verba ao passivo da relação de bens correspondente às despesas com o condomínio relativas aos imóveis que constituem as verbas 11 e 12 do activo, e que, à data da apresentação da reclamação, ascendiam ao montante de MOP$161,824,00, a que deverão acrescer os montantes, vencidos e vincendos, cujo pagamento se afigure comprovado nos autos até à partilha dos imóveis.
Decidindo assim farão Vossas Excelências
JUSTIÇA!
Admitido o recurso e fixado o regime de subida diferida, continuou a marcha processual na sua tramitação normal.
Na conferência de interessados realizada em 09MAIO2018 e documentada na acta a fls. 970 e s.s. dos autos de inventário, os interessados acordaram a venda judicial por meio de propostas em carta fechada das fracções autónomas identificadas nas verbas 11 e 12 do activo.
No acto de abertura das propostas entretanto apresentadas, foi lavrado o auto do seguinte teor:
---- 於指定時間,法官宣告開始進行法定之司法變賣程序。
---- 在本非強制性財產清冊案中,待分割財產管理人為B,被繼承人為C,持有澳門居民身份證,編號為…,於2006年3月26日在澳門去世,變賣的財產如下:
不動產
第一項
---- 名稱: 15樓“A”之獨立單位。
---- 座落地點:位於...。
---- 用途:居住。
---- 房地產紀錄編號:...。
---- 物業登記局標示編號:第...號,第…號簿冊,第…頁。
---- 變賣底價:澳門幣玖佰壹拾捌萬柒仟貳佰圓(MOP9,187,200.00)。
第二項
---- 名稱: 15樓“B”之獨立單位。
---- 座落地點:位於...。
---- 用途:居住。
---- 房地產紀錄編號: ...。
---- 物業登記局標示編號:第...號,第…號簿冊,第…頁。
---- 變賣底價:澳門幣陸佰零陸萬捌仟捌佰圓(MOP$6,068,800.00)。
***
---- 經點算後共有4份標書,所有標書均在指定日期及時間內提交予本法院。
---- 法官經查驗後逐一開啟標書,並在標書上作簡簽,隨後再命令將標書附於卷宗內。
---- 在開啟所有標書後,以下分別為有關標書的投標人姓名及價金:
---- 第1份 ─D(D),第一項為MOP$9,600,000.00(澳門幣玖佰陸拾萬圓正);
---- 第2份 ─D(D),第二項為MOP$6,300,000.00(澳門幣陸佰叁拾萬圓正);
---- 第3份 ─E,第二項為MOP$6,106,690.00(澳門幣陸佰壹拾萬陸仟陸佰玖拾圓正);
---- 第4份 ─F(F),第二項為MOP6,068,888.00(澳門幣陸佰零陸萬捌仟捌佰捌拾捌圓正);
*
---- 此時,投標人D的訴訟代理人向法庭申請即時呈交特別授權書,法官檢閱後批准有關申請,並在文件上簡簽後命令將之附入卷宗。
---- 另待分割財產管理人之訴訟代理人向法庭作出聲請,要求根據《民法典》第1970條第1款之規定,由待分割財產管理人B、利害關係人A及G行使優先權,以上述兩項不動產的投標最高價金購買被變賣的不動產,經聽取在場人士及利害關係人H具特別權力之訴訟代理人的不反對意見後,法官作出如下:
---- 根據《民法典》第1970條第l款之規定,出賣某一繼承份額予他人或以該份額向他人作代物清償時,各共同繼承人按有關共有人優先權之規定而享有優先權。在本案中獨立單位“A15”及“B15”是以整個不動產作司法變賣,而非份額變賣;同時根據2018年5月9日之利害關係人會議協議,各利害關係人並沒有行使優先權取得上述不動產,且同意以司法變賣作出分割,由於本案之司法變賣針對的為上述不動產的整個,而非任何繼承份額,因此,法院認為各聲請人並不具備行使優先權的權利,故駁回聲請。
---- 作出通知。
---- 最後,經在場人士審查標書後,以及在場亦無任何可行使優先權之人士出席,法官隨即作出以下:
批示
---- 根據《民事訴訟法典》第789條第1款的規定,宣告投標人D(D),持澳門居民身份證編號: ...,以價金MOP$9,600,000.00(澳門幣玖佰陸拾萬圓正)競技得第一項財產,以價金MOP$6,300,000.00 (澳門幣陸佰叁給萬圓正)競投得第二項財產,依法接納該標書。
---- 根據《民事訴訟法典》第792條的規定,通知投標人須在15天內將其應支付之價金寄存於本地區政府庫房之負責實體,否則會對其處以《民事訴訟法典》第793條所指的制裁,並向其發出有關不定期收入憑單,以便其向財政局立即作出支付。
---- 同時通知投標人須在30天內履行有關因移轉行為而生的稅務責任,為此,應適時向第一民事法庭辦事處聲請發出相關證明文件。
---- 作出通知及其他必要措施。
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---- 所有在場人士均即時獲通知上述批示之內容。
---- 為備作據,特繕立本筆錄並作簽署。
Presencialmente notificados e inconformados com esse despacho, oralmente ditado e documentado no auto, que determinou a adjudicação de ambas as fracções autónomas ao proponente D, vieram o cabeça-de-casal B e os interessados A e G recorrer dele para esta segunda instância, concluindo e pedindo que:
A - Vem o presente recurso interposto do despacho exarado na acta da diligência de Abertura de Propostas em carta fechada que teve lugar no passado dia 12.09.2018 que indeferiu o exercício conjunto do direito de preferência aos Recorrentes, Cabeça de Casal e Interessados nos presentes autos, na qualidade de viúva e filhos do Inventariado.
B - Com tal decisão não se podem conformar os Recorrentes por entenderem que a mesma viola o disposto no art. 1970.º do Código Civil, em conjugação com os princípios da iniciativa das partes e do dispositivo, previstos nos art. 3.º e 5.º do C.P.C., bem como da norma prevista no art. 235.º, n.º 2 do mesmo diploma legal que permite às partes alcançar acordo em qualquer altura do processo.
C - Com efeito, conforme resulta da acta da diligência de propostas em carta fechada que teve lugar no dia 12.09.2018, na sequência da abertura de propostas, os Recorrentes requereram ao Tribunal para exercer o direito de preferência, facto a que o Interessado H, igualmente filho do Inventariado, não se opôs, concordando, portanto, que os dois imóveis em causa nos presentes autos - verbas 11 e 12 do activo - fossem atribuídos aos Recorrentes.
D - O presente processo de inventário facultativo é um processo de partes, em que se procura alcançar o resultado mais justo na partilha dos bens do Inventariado, atendendo aos interesses de todos os herdeiros e Interessados na partilha dos bens que pertencem à família.
E - Nesse sentido, estando todos os herdeiros de acordo e não prejudicando a decisão de preferência os interesses de quem quer que seja, não percebem os Recorrentes a razão por que o Tribunal a quo lhes negou tal direito - o exercício do direito de preferência.
F- Com efeito, se em acto subsequente à abertura de propostas em carta fechada, os herdeiros - no caso, a viúva e dois filhos do Inventariado, ora Recorrentes - chegaram à conclusão que conseguiam cobrir o preço da proposta mais alta apresentada para aquisição dos dois imóveis em apreço nos autos - se o outro herdeiro e também interessado nos autos não se opõe ao exercício do direito de preferência, não há razão para o Tribunal a quo não ter permitido aos Recorrentes o exercício do direito de preferência que legalmente lhes assiste.
G - Tal solução impõe-se também por razões de ordem moral e imperativo máximo de justiça, pois além dos laços afectivos aos imóveis que constituem o património da família, são também os Recorrentes que, ao longo dos anos, têm cuidado dos imóveis e, nesse sentido, têm feito face a todas as despesas inerentes e devidas pela existência dos imóveis, como pagamentos de impostos, despesas de condomínio, entre outros.
H - Não é justo que, nestas circunstâncias, os dois imóveis que constituem o verdadeiro activo da herança deixem de pertencer à família.
I - Ao acordarem na adjudicação dos bens na proporção dos quinhões hereditários que lhes pertencem (à cabeça de casal, na qualidade de viúva e a dois filhos do Inventariado), os Recorrentes exerceram, de facto, o direito de preferência que lhes assiste relativamente a uma quota parte ideal da herança.
J - Com efeito, até à adjudicação das verbas que a compõem, a herança permanece indivisa, pelo que o acordo dos vários interessados sempre seria relevante no exercício do direito de preferência dos Recorrentes.
K - Acresce que, na ausência de despacho judicial de adjudicação das verbas, nenhum obstáculo legal se coloca ao acordo dos interessados na sua adjudicação, na proporção da respectiva quota hereditária.
L - Pelo que, o despacho impugnado interpretou indevidamente o regime legal do exercício do direito de preferência - art. 1970.º do Código Civil - , o qual, nas circunstâncias ora em apreço, deveria ter sido interpretado e aplicado no sentido de concluir que aos Recorrentes assiste o direito de exercício (do direito) de preferência, em acordo com o outro Interessado e também herdeiro do Inventariado.
M- De referir, por último, que sobre a questão ora em apreço já se debruçou o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão 08A1340 de 27.05.2008, publicado no BDJUR, no qual se concluiu que deve ser conferido às partes o direito de exercerem a preferência, ainda que já tenham sido apresentadas propostas e depositado o respectivo preço.
N- Pelas razões expostas, uma vez que a herança permanece indivisa e que os Recorrentes pretenderam e pretendem exercer conjuntamente o direito de preferência para aquisição dos imóveis na exacta proporção dos seus quinhões hereditários, concordando o outro herdeiro e interessado com a adjudicação dos imóveis - verbas 11 e 12 do activo - aos Recorrentes, não se verifica nenhum obstáculo legal ao exercício do direito de preferência por parte dos Recorrentes.
O - Devendo, assim, ser revogada a decisão recorrida, de forma a permitir aos Recorrentes o exercício do direito de preferência que legalmente lhes assiste.
***
Peças processuais que, nos termos do art. 615.° do C.P.C., devem instruir o presente recurso:
- A relação de bens de fls. 762 a 767 dos autos;
- Acta da Conferência de Interessados que teve lugar no dia 09.05.2018;
- Acta da diligência de Abertura de Propostas em carta fechada que teve lugar no passado dia 12.09.2018, onde ficou exarado o despacho de que ora se recorre.
Termos em que se requer a V. Ex.ªs que seja declarado procedente o presente recurso e, em consequência, sejam os Recorrentes admitidos a exercer o direito de preferência em relação aos dois imóveis (verbas 11 e 12 do activo) em causa nos presentes autos de inventário facultativo.
Decidindo assim decidirão certamente Vossas Excelências com inteira e sã
JUSTIÇA!
Admitido este recurso no Tribunal a quo, ambos os recursos foram oportunamente feitos subir a este Tribunal de recurso.
Liminarmente admitidos os recursos e colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Comecemos pelo recurso do despacho que indeferiu a reclamação da relação de bens.
Recurso do indeferimento da reclamação da relação de bens
Estão em causa despesas de condomínio relativas às duas fracções autónomas, identificadas nas verbas 11 e 12 do activo.
Ao que parece, para o Tribunal a quo, as tais despesas não foram realizadas pelo próprio de cujus, uma vez que este faleceu em 26MAR2006, ao passo que as ditas despesas de condomínio foram realizadas posteriormente à morte do de cujus, portanto, não podem ser tidas como passivo que integra a herança.
Para o recorrente, sendo as despesas de condomínio obrigações propter rem, que existem por inerência aos imóveis e enquanto não pagas, devem ser da responsabilidade, quer do cabeça-de-casal, quer dos restantes herdeiros, tendo em conta que os imóveis, enquanto não forem partilhados, pertencem à herança indivisa.
Tem razão o recorrente.
Na verdade, as despesas de condomínio são as despesas necessárias para a conservação, o bom funcionamento, o uso e a fruição das partes comuns e de serviços de interesses comum para que todos os utentes das fracções autónomas possam viver num prédio constituído em propriedade horizontal.
Portanto, qualquer quer seja o título a que os utentes ocupam as fracções autónomas, são sempre devidas despesas de condomínio.
Tratando-se de obrigações impostas a quem é titular do direito de propriedade sobre a fracção autónoma, os encargos resultantes das despesas de condomínio devem recair sobre o titular do direito de propriedade.
In casu, estão em causa despesas de condomínio das duas autónomas constantes da relação de bens que integram à herança indivisa, estas despesas, por natureza inerentes às mesmas fracções autónomas, devem ser naturalmente incluídas no passivo da mesma herança indivisa, não obstante reportadas aos períodos de tempo posteriores ao falecimento do de cujus.
Sem mais delongas, é de julgar procedente o recurso.
Recurso do indeferimento do exercício do direito de preferência
Passemos então ao recurso do despacho que indeferiu a pretensão do exercício do direito de preferência das duas fracções autónomas, por parte dos interessados, mediante o pagamento dos preços mais elevados oferecidos pelo proponente vencedor na venda judicial, já depois de abertas as propostas e apurados os preços oferecidos.
Pretenderam o cabeça-de-casal B e os interessados A e G exercer o direito de preferência a que se refere o artº 1970º do CC.
Pretensão essa que foi indeferida pelo Tribunal a quo por ter entendido que não tinham direito de preferência.
Vieram agora acusar o Tribunal a quo de ter violado o disposto no artº 1970º do CC e os princípios da iniciativa das partes e do dispositivo, previstos no artº 3º e 5º do CPC, e de não ter permitido as partes a alcançar acordo em qualquer altura do processo.
Ora, reza o artº 1970º do CC que quando seja vendido ou dado em cumprimento a estranhos um quinhão hereditário, os co-herdeiros gozam do direito de preferência nos termos em que este direito assiste aos comproprietários.
É verdade que a lei confere aos co-herdeiros o direito de preferência nos termos idênticos aos do direito reconhecido aos comproprietários, quando está em causa a venda de um quinhão hereditário.
Ao invocarem o exercício do direito de preferência com fundamento no disposto nesse artº 1970º, os recorrentes equivocam-se com a venda de uma quota-parte de um bem e a venda da totalidade do bem.
Uma coisa é a venda de uma quota-parte de um bem, outra é a venda da totalidade do bem.
Conforme se vê na acta de conferência de interessados realizada em 09MAIO2018, a venda judicial, acordada por todos os interessados perante o Tribunal a quo tem por objecto as duas fracções autónomas por inteiro, e não uma mera quota-parte das mesmas fracções autónomas.
Ora, o artº 1970º do CC só confere o direito de preferência na aquisição de um quinhão hereditário dos co-herdeiros ou uma quota-parte de um bem integrado na herança indivisa, e não na aquisição da totalidade de um determinado bem integrado na mesma herança.
É verdade que, no que diz respeito ao direito de preferência, o citado artº 1970º do CC faz equiparar os co-herdeiros aos comproprietários.
Então urge apurar qual é a mens legislatoris subjacente ao direito de preferência reconhecido aos comproprietários.
Segundo o douto ensinamento dos Mestres Pires de Lima e Antunes Varela, o direito de preferência legalmente conferido ao comproprietário de um bem na aquisição das restantes quotas-partes do bem, se justifica pelos fins de:
a) Fomentar a propriedade plena, que facilita a exploração mais equilibrada e mais pacífica dos bens;
b) Não sendo possível alcançar a propriedade exclusiva, diminuir o número dos consortes; e
c) Impedir o ingresso, na contitularidade do direito de pessoa com quem os consortes, por qualquer razão, o não queiram exercer. – vide Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, III, p. 367.
In casu, estamos no âmbito do inventário para a partilha de uma herança indivisa, em que na conferência de interessados, não houve acordo sobre a forma para partilhar entre os herdeiros as duas fracções autónomas integradas na herança (ou houve implicitamente acordo na partilha dos produtos pecuniários obtidos com a venda das mesmas fracções autónomas).
Foi consequentemente ordenada a venda judicial da totalidade de ambas as fracções autónomas, nos termos prescritos do disposto no artº 990º/1-c) do CPC.
Obviamente não está presente nenhum dos fins justificativos do reconhecimento aos co-titulares de um bem.
Portanto, bem andou o Tribunal a quo, ao indeferir como indeferiu, nos termos do despacho ora integralmente transcrito supra, a pretensão do exercício do direito de preferência por parte do cabeça-de-casal e dos dois dos interessados, na aquisição de ambas as fracções autónomas postas na venda judicial, já depois de abertas as propostas e apurados os preços mais elevados oferecidos, mediante o pagamento destes preços mais elevados oferecidos pelo proponente vencedor.
Inexistindo o direito de preferência, improcede esta parte do recurso.
Finalmente quanto ao não respeito, imputado ao Tribunal a quo, pelos princípios da iniciativa das partes e do dispositivo, previstos no artº 3º e 5º do CPC, de não ter permitido as partes a alcançar acordo em qualquer altura do processo, entendemos que também não têm razão os recorrentes.
A propósito dos assuntos a submeter na conferência de interessados no âmbito de um inventário para a partilha de uma herança indivisa, o artº 990º do CPC reza que:
1. Na conferência podem os interessados acordar, por unanimidade, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes:
a) Designando as verbas que hão-de compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada interessado e os valores por que devem ser adjudicados;
b) Indicando as verbas ou lotes e respectivos valores para que, no todo ou em parte, sejam objecto de sorteio pelo interessados;
c) Acordando na venda total ou parcial dos bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados.
2. Nos inventários obrigatórios o acordo carece de aprovação do conselho de família ou, se este não dever intervir, da concordância do Ministério Público.
3. A composição dos quinhões, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1, pode ser precedida de arbitramento, requerido pelos interessados ou oficiosamente determinado pelo juiz, destinado a possibilitar a repartição equitativa dos bens pelos vários interessados.
4. À conferência compete ainda deliberar sobre a aprovação do passivo e forma de cumprimento dos legados e demais encargos da herança.
5. Na falta do acordo previsto nos n.os 1 e 2, incumbe ainda à conferência deliberar sobre:
a) As reclamações deduzidas sobre o valor atribuído aos bens relacionados;
b) Quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha.
6. A deliberação dos interessados presentes, relativa às matérias contidas no número anterior, vincula os que não comparecerem, salvo se não tiverem sido devidamente notificados.
Nos termos da al. c) do nº 1 um dos assuntos possíveis tratados na conferência de interessados é obter o acordo quanto à venda total ou parcial dos bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados.
Pela lógica das coisas, os interessados só acordam com a venda do bem se nenhum deles quiser ficar com o bem e simplesmente todos quiserem partilhar o produto pecuniário resultante da venda do bem.
Ao acordarem a venda judicial, não podem deixar de estar bem cientes da possibilidade ou da certeza de o bem ser transmitido a terceiro, consoante a participação ou não participação dos interessados na apresentação da proposta com vista à aquisição do bem na venda judicial.
No caso sub judice, na conferência de interessados realizada em 09MAIO2018, acordaram todos os interessados a venda judicial das duas fracções autónomas integradas na herança.
Foi justamente com base nesse acordo ordenada a venda judicial da totalidade de ambas as fracções autónomas, nos termos prescritos do disposto no artº 990º/1-c) do CPC.
Assim, se o assunto tiver sido decidido mediante acordo dos interessados, não se vê em que termos a iniciativa e a autonomia das partes na composição dos seus interesses possam ter sido desrespeitadas!
Por outro lado, transitado o despacho que ordenou a venda judicial, já não há lugar ao “arrependimento” por parte dos interessados.
De outra maneira, seria uma manifesta tentativa de atropelar a certeza e a segurança jurídica tuteladas pelo caso julgado formal e uma ridícula legitimação duma brincadeira consistente na instrumentalização dos eventuais proponentes apenas para fixar o preço a pagar pelo interessado arrependido para aquisição do bem, já colocado à venda judicial solenemente ordenada e processada!
Pelo que, não pode deixar de improceder o recurso in totum.
Em conclusão:
4. No âmbito de inventário para partilha da herança indivisa, as despesas de condomínio das fracções autónomas integradas na herança indivisa devem ser incluídas no passivo da mesma herança indivisa, não obstante reportadas aos períodos de tempo posteriores ao falecimento do de cujus, pois se tratam de despesas inerentes aos bens a partilhar e a obrigação de as pagar deve recair sobre a herança.
5. O direito de preferência, por lei conferido ao comproprietário de um bem na aquisição das restantes quotas-partes do bem, se justifica pelos fins de: a) fomentar a propriedade plena que facilita a exploração mais equilibrada e mais pacífica dos bens; b) diminuir o número dos consortes quando não for possível alcançar a propriedade exclusiva; e c) impedir o ingresso, na contitularidade do direito de pessoa com quem os consortes, por qualquer razão, o não queiram exercer; e
6. Assim, no âmbito do inventário para a partilha de uma herança indivisa, quando não tiver sido acordada a forma para partilhar ou adjudicar a qualquer dos interessados o bem integrado na herança e consequentemente ordenada a venda judicial do bem por inteiro, qualquer dos interessados não tem direito de preferência na aquisição do bem, uma vez que, ao ser colocado à venda o bem por inteiro, o objecto da venda judicial já não um quinhão hereditário ou uma mera quota-parte de um determinado bem integrado na herança e portanto não está presente nenhum desses fins que justificam a atribuição do direito de preferência aos co-herdeiros nos termos prescritos no artº 1970º do CC.
Tudo visto resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência:
* conceder provimento ao recurso do indeferimento da reclamação da relação de bens, revogando o despacho recorrido e determinando a inclusão das despesas de condomínio no passivo da herança; e
* julgar improcedente o recurso do indeferimento do exercício do direito de preferência pelo cabeça-de-casal B e pelos interessados A e G.
Custas do segundo recurso pelos recorrentes B, A e G.
Registe e notifique.
RAEM, 28NOV2019
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
462/2019-21