Proc. nº 767/2019
Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 28 de Novembro de 2019
Descritores:
- Vício de forma
- Falta de fundamentação
SUMÁRIO:
I - Quando se fala em falta ou insuficiência de fundamentação, está-se a lidar com um vício de forma.
II - Uma coisa é fundamentar, outra é acertar na fundamentação.
III - Se os fundamentos de direito utilizados no acto administrativo não estão correctos, porque contêm lapso ou erro na indicação das normas e princípios jurídicos invocados, por exemplo, do que se trata não é de falta de fundamentação, mas de uma fundamentação que não se ajusta à situação concreta.
IV - Quando se cita uma norma que nada tem a ver com o caso, o que se verifica aí é uma má aplicação da lei e, portanto, significa vício de violação de lei. Já estamos, porém, nesse caso perante um vício que não é formal, mas substancial.
Proc. nº 767/2019
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
A, divorciado, advogado, titular do Bilhete de Identidade de Residente Não Permanente, n.º XXX, emitido pela Direcção dos Serviços de Identificação, em 18 de Fevereiro de 2013, com domicílio profissional na XXX, em Macau ---
Interpôs no TA (Proc. nº 1063/14-ADM) ---
Recurso contencioso ---
Da deliberação da Direcção da Associação dos Advogados de Macau (doravante AAM), tomada na reunião de 13 de Novembro de 2013, que revogou a inscrição provisória do Recorrente na AAM, com o fundamento de que a mesma não podia ser convertida em definitiva.
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Na oportunidade foi proferida sentença, que julgou procedente o recurso contencioso, anulando o acto impugnado.
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Contra essa sentença, vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a AAM formulou as seguintes conclusões:
“1 - A decisão ora em causa não atende à aplicação prática das normas em questão, nem à sua ratio lege, mas apenas e só ao sentido literal das mesmas, sofrendo do vício de erro na interpretação da lei.
2 - Decorre dos art.ºs 6.º, 28.º e 29.º do RAA, e da cláusula VI do protocolo sobre o Direito de Estabelecimento, outorgado entre a OAP e a AAM, que durante o período de adaptação, o advogado candidato ao exercício da advocacia em Macau, no âmbito do referido protocolo, deve permanecer em Macau, para cumprir os seus deveres enquanto advogado inscrito provisoriamente, tal como acima referidos em sede de alegações;
3 - O ora recorrido, embora perfeitamente ciente da necessidade da sua permanência na RAEM, durante o seu período de adaptação, para cumprimento dos seus deveres na qualidade de advogado inscrito provisoriamente na AAM, não cumpriu tal requisito, conforme se extrai claramente dos documentos existentes nos autos;
4 - Mais grave ainda, apesar de não ter cumprido o seu período de adaptação de forma cabal, e tendo consciência de tal, o recorrido veio declarar, sob compromisso de honra, tê-lo cumprido integralmente;
5 - Tal incumprimento, aliás, nem é posto em causa na sentença ora recorrida;
6 - Aquele incumprimento constituiu um impedimento para que a inscrição provisória, como advogado, do recorrido, se pudesse converter em definitiva;
7 - Por outro lado, a situação de inscrição provisória do recorrido, como advogado, não podia igualmente ser mantida, o que decorre da sua própria “natureza provisória”, sob pena de se tomar uma “inscrição provisória permanente”, situação que seria altamente violadora dos princípios que regulam a advocacia e da estabilidade que se exige para o exercício da profissão;
8 - As normas acima elencadas formam, no seu todo, um procedimento (sistema de candidatura à advocacia) que exige o cumprimento de certos requisitos;
9 - Em caso de incumprimento dos mesmos, tal procedimento não pode “desaguar” num acto que ignore o não preenchimento de tais requisitos, por um lado, nem pode levar a que seja dilatada no tempo, uma situação que apenas pode ser provisória, por outro;
10 - É consequência lógica do próprio sistema - aliás, de qualquer procedimento ou sistema com relevância jurídica -, que para um incumprimento, deva existir uma cominação, sendo que a única solução aceitável e natural para a situação ora em causa teria sempre que ser a revogação da inscrição provisória do recorrido;
11 - De outro modo não poderia a recorrente ter agido, sob pena de atentar contra toda a lógica deste sistema de candidatura, estabelecido ao abrigo do referido protocolo sobre o direito de estabelecimento;
12 - Fosse qual fosse a denominação dada à extinção da inscrição provisória do recorrido - “revogação”, “recusa de inscrição”, “cancelamento”, etc. - a mesma era a cominação necessária, bem como o fim e os efeitos de qualquer um daqueles tipos de extinção seria idêntico;
13 - Tenha-se em conta que, no recurso que interpôs, o agora recorrido impugna a decisão da aqui recorrente por não concordar com a mesma, demonstrando ter compreendido perfeitamente o seu significado;
14 - O acto impugnado é claro e cumpre todos os requisitos atinentes ao dever de fundamentação, que é expressa, consta do acto, e é clara, congruente e suficiente, não sendo usados termos ou expressões confusas, ambíguas ou dúbias.
15 - Por outro lado, a fundamentação exposta no acto demonstra um pensamento lógico e a decisão nele tomada é uma consequência lógica dos pressupostos enunciados que são indicados concretamente;
16 - A recorrente enunciou todas as normas legais em que fundou a sua decisão e expôs a interpretação que retirou das mesmas;
17 - Resumindo, o texto da decisão esclarece de forma concreta as razões que levaram a AAM a revogar a inscrição do Recorrente, citando as normas jurídicas em que a mesma se baseia.
18 - Assim, como o dever de fundamentação se contenta com a exposição dos pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis nada há, assim, a apontar à deliberação em causa nos presentes autos;
19 - Por outro lado, apesar de se entender que o acto tem que conter os elementos suficientes para que uma pessoa normal fique a conhecer quais as razões que levaram o autor do acto a actuar dessa forma, no caso presente o destinatário daquele é um destinatário qualificado (um advogado) que, estando ciente dos requisitos que se lhe impunham, e que do seu incumprimento decorreria sempre uma cominação, em caso algum pode dizer que não entendeu os motivos que levaram a recorrente a revogar a sua inscrição, situação que o tribunal a quo não equaciona na sua decisão;
20 - Em consonância com o acima exposto estão, aliás, a jurisprudência portuguesa e de Macau, e a doutrina maioritárias, tal como se expõe acima em sede de alegações, pelo que o diferente entendimento exposto pelo tribunal a quo na sua douta sentença, não colhe, devendo a mesma ser, em consequência, revogada.
Termos em que,
deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se improcedentes todos os vícios invocados pelo recorrido nos presentes autos, e revogada a douta sentença ora recorrida, assim se fazendo a necessária Justiça!”
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Não houve resposta ao recurso por parte do recorrente contencioso.
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O digno Magistrado do MP junto deste TSI emitiu o seguinte parecer:
“A Direcção da Associação dos Advogados de Macau vem recorrer jurisdicionalmente da sentença de 12 de Abril de 2019, do Tribunal Administrativo, que julgou procedente o recurso contencioso de anulação interposto por A, em que era visada a deliberação de 13 de Novembro de 2013 daquela Direcção, através da qual fora revogada a inscrição provisória do recorrente contencioso como advogado.
Diz que houve erro de julgamento da questão da fundamentação, pugnando pela revogação da sentença.
Crê-se que lhe assiste razão.
De entre os diversos vícios que iam imputados ao acto, a sentença conheceu dos de forma e anulou o acto por deficiente fundamentação de direito.
Pois bem, visto o teor do acto deliberativo impugnado, constata-se que, para além da indispensável resenha factual, contém abundantes referências às normas e ao quadro jurídico que teve por aplicáveis à situação versada e que, em seu critério, caucionam e justificam, de direito, a decisão adoptada. Nomeadamente, joga com as regras insertas no Protocolo celebrado com a Ordem dos Advogados Portugueses, acerca do direito de estabelecimento, e com as normas do Regulamento de Acesso à Advocacia, que considera aplicáveis ao designado período de adaptação, e que, no seu entendimento, respaldam, de direito, a decisão adoptada.
Todavia, o Tribunal Administrativo entendeu, em suma, que, a partir das normas invocadas, não era possível extrair o efeito revogação da inscrição, pelo que a fundamentação adoptada não dava a conhecer as razões de direito subjacentes à decisão.
Temos para nós que este não é o alcance que o legislador pretendeu conferir, como exigência de forma, à fundamentação dos actos administrativos. Esta basta-se com uma sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, como se retira do artigo 115.º do Código do Procedimento Administrativo. Sendo-lhe alheia a exigência de que esses fundamentos se mostrem exactos e correctos no plano substantivo, pois não está em causa apurar o mérito dos fundamentos.
Vai neste sentido, cremos, quer a jurisprudência de Macau, quer a de Portugal, como se pode constatar através dos acórdãos exemplificativos mencionados pela ora recorrente.
Daí que nos inclinemos para a procedência dos fundamentos do recurso.
Termos em que, no provimento do recurso, deverá revogar-se a douta sentença recorrida, na parte atinente ao vício de falta de fundamentação, julgando-se este inverificado, e devolvendo-se os autos, para julgamento dos restantes vícios ainda não conhecidos.”
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Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença impugnada deu por assente a seguinte factualidade:
“1.º - Em 27/07/2012, o recorrente, advogado inscrito na Ordem dos Advogados Portugueses com a cédula profissional n.º 4416, requereu a sua inscrição na A.A.M. como advogado (cfr. fls. 2 a 12 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
2.º - Por ofício com n.º de referência: 1188/12 datado de 06/09/2012, a A.A.M. informou o recorrente que por deliberação da entidade recorrida datada de 05/09/2012, foi deferido o seu pedido de inscrição provisória, como advogado, ficando sujeito a um período de 3 meses de adaptação ao Direito de Macau, sob a orientação da Dra. B, bem como às limitações previstas para os advogados estagiários durante esse período, e condicionada à apresentação da apólice de seguro profissional e à obtenção de autorização de residência na R.A.E.M. no prazo de 3 meses (cfr. fls. 14 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
3.º - Por ofício n.º 1226/2012 datado de 10/09/2012, a A.A.M. informou o Juízo de Instrução Criminal do T.J.B. da lista de novos advogados inscritos na A.A.M., em que consta o nome do recorrente (cfr. fls. 16 a 17 e verso do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
4.º - Em 25/10/2012, a A.A.M. emitiu a Circular n.º 33/2012, a fim de se divulgar a deliberação da entidade recorrida tomada em 04/10/2012, pela qual foi determinado o aumento do período de adaptação do Direito de Macau a que estarão sujeito os advogados portugueses que se inscrevessem ao abrigo do《Protocolo entre a Ordem dos Advogados e a Associação dos Advogados de Macau sobre o Direito de Estabelecimento》 (doravante 《Protocolo sobre o Direito de Estabelecimento》), de 3 meses para 6 meses (cfr. fls. 611 a 612 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
5.º - Em 05/12/2012, Dra. B, orientadora do recorrente, apresentou à A.A.M. o relatório sumário da actividade exercida pelo recorrente durante o período de inscrição provisória na A.A.M., desde 05/09/2012, para efeitos da inscrição definitiva do recorrente na A.A.M. (cfr. fls. 23 a 25 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
6.º - Em 06/12/2012, o recorrente requereu junto ao Presidente da Direcção da A.A.M. a conversão da sua inscrição de provisória em definitiva (cfr. fls. 20 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
7.º - Em 07/12/2012, o recorrente requereu junto ao Presidente da Direcção da A.A.M. a prorrogação do período de adaptação ao Direito de Macau, em virtude de ainda não ter obtido a autorização de residência que foi requerida junto das entidades competentes (cfr. fls. 28 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
8.º - Em 13/12/2012, a A.A.M. informou o recorrente que por deliberação da entidade recorrida tomada em 12/12/2012, foi deferida a prorrogação do período da inscrição provisória do recorrente, como advogado, por mais 3 meses (cfr. fls. 29 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
9.º - Por despacho do Exm.º Sr. Secretário para a Segurança datado de 09/01/2013, foi autorizado o pedido da autorização de residência do recorrente, com validade até 08/01/2014 (cfr. fls. 22 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
10.º - Por ofício com n.º de referência: 178/13 datado de 28/02/2013, a A.A.M. informou o recorrente que é necessário requerer a conversão da inscrição de provisória para definitiva, com apresentação do relatório do orientador de sumário da actividade exercida pelo recorrente durante o período de adaptação e declaração do preenchimento de todos os requisitos do 《Protocolo sobre o Direito de Estabelecimento》 bem como dos deveres impostos pelo 《Regulamento do Acesso à Advocacia》(cfr. fls. 27 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
11.º - Por ofício com n.º de referência 181/13 datado da mesma data, a A.A.M. solicitou ao C.P.S.P. a informação sobre as entradas e saídas na R.A.E.M. do recorrente, durante o período de 05/09/2012 a 05/12/2012, a fim de se apurar o cumprimento do dever pelo recorrente durante o período de adaptação (cfr. fls. 30 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
12.º - Por deliberação tomada em 28/03/2013, a entidade recorrida determinou denunciar o《Protocolo sobre o Direito de Estabelecimento》e o 《Protocolo sobre o Regime de Estágio, Inscrição e Transferência dos Advogados Estagiários》 celebradas com a Ordem dos Advogados Portugueses, em 05/11/1994 e 21/06/1999, respectivamente (cfr. fls. 94 a 96 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
13.º - Em 03/04/2013, o recorrente requereu junto do Presidente da A.A.M. a conversão da sua inscrição provisória como advogado em definitiva, com apresentação dos documentos (cfr. fls. 31 a 49 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
14.º - Por ofício com n.º de referência: 1196/13 datado de 11/10/2013, a A.A.M. informou o recorrente que, como não permaneceu na R.A.E.M. durante a maior parte do período de adaptação entre 05/09/2012 e 05/12/2012, a intenção da entidade recorrida seria de cancelar a inscrição como advogado, tendo sido ainda notificado para se pronunciar sobre a proposta de decisão, em sede de audiência prévia, no prazo de 10 dias nos termos do art.º 93.º do Código do Procedimento Administrativo. (cfr. fls. 53 e verso do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
15.º - Em 28/10/2013, o recorrente apresentou junto do Presidente da A.A.M. a sua resposta, em sede de audiência prévia sobre a intenção da entidade recorrida de cancelar a sua inscrição como advogado, propugnando pelo preenchimento de todos os requisitos legais e regulamentares, requerendo no fim que seja mantida em vigor a sua inscrição (cfr. fls. 54 a 56 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
16.º - Em 11/11/2013, a A.A.M. solicitou à Dra. B, orientadora do recorrente, para esclarecer no prazo de 10 dias, da permanência na R.A.E.M. durante o período de adaptação e a frequência do escritório do recorrente (cfr. fls. 57 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
17.º - Em 13/11/2013, a Dra. B informou a entidade recorrida que o recorrente não compareceu com assiduidade no escritório nem teve conhecimento da permanência do recorrente na R.A.E.M. durante o período de adaptação (cfr. fls. 58 a 59 do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
18.º - Por deliberação tomada em 13/11/2013, a entidade recorrida determinou revogar a inscrição provisória, como advogado, do recorrente (cfr. fls. 606 a 610 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
19.º - Por ofício com n.º de referência: 1378/13 datado de 18/11/2013, a A.A.M. informou o recorrente da deliberação acima referida (cfr. fls. 60 a 61 e verso do P.A., cujo teor aqui se dá por integralmente transcrito).
20.º - Em 26/12/2013, o recorrente enviou a este Tribunal, por via telecópia, o petitório dos presentes autos, cujo respectivo original foi apresentado no dia 27/12/2013 (cfr. fls. 2 dos autos).”
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Acrescentamos oficiosamente o teor da deliberação impugnada, que passará a constituir o facto nº 21:
21º- Da deliberação impugnada consta o seguinte:
“(…) Apesar de não se encontrar expressamente consagrada na redacção do documento, retira-se da leitura do disposto nos art.os 6.º, 28.º e 29.º do Regulamento de Acesso à Advocacia (RAA), e cláusula VI, n.os 2, 3 e 4 do referido Protocolo, que o período de adaptação dos advogados candidatos à inscrição tem como finalidade, numa vertente teórica, permitir que os candidatos à inscrição definitiva, como advogados, na AAM, abrangidos por esta norma, possam tomar conhecimento sobre as particularidades do sistema jurídico de Macau, mormente das suas diferenças relativamente ao Direito vigente no ordenamento jurídico de origem daqueles.
Numa vertente prática, destina-se aquele período, a que tais candidatos possam iniciar o exercício da advocacia em Macau, na prática dos actos que lhe são permitidos, com o apoio devido, por parte de um orientador, e que contactem com o ambiente e as formalidades dos procedimentos judiciais de Macau, algo diferentes dos existentes em outros ordenamentos jurídicos, por exemplo em virtude da necessidade de tradução e interpretação simultânea, da língua chinesa para a língua portuguesa, e vice-versa, de tudo quanto é dito durante as audiências de julgamento e demais diligências judiciais.
Não se concebe, pois, que seja possível a total adaptação de tais candidatos ao sistema jurídico de Macau, sem uma presença constante dos mesmos, durante aquele período, no território da RAEM, desde logo por impossibilidade da sua comparência em diligências judiciais, como sejam as de designação oficiosa ou no âmbito do apoio judiciário, ou da sua presença no escritório do orientador, para trabalharem assiduamente em questões que envolvam as várias áreas do Direito de Macau, com as quais devem tomar contacto.
Caso assim não fosse, desde logo estaria esvaziada de conteúdo a figura do “patrono orientador”, compreendida no âmbito do disposto nos art.os 6.º, n.º 1, do RAA, o qual obrigatoriamente, tem de ter mais de cinco anos de exercício efectivo da advocacia no território da RAEM (art.º 30.º, n.º 1 do RAA), e cuja ausência deste, por mais de três meses em cada ano, ou a suspensão da sua inscrição, implica a suspensão da inscrição do estagiário orientado (n.º 2 da mesma norma).
Este último número reflecte bem a preocupação do legislador do RAA, de que o estagiário tivesse um acompanhamento frequente pelo seu patrono, durante o estágio, expressando, a contrario sensu, o dever de o estagiário ter um contacto frequente com o trabalho desenvolvido no escritório daquele. E, se tal norma é configurada para o âmbito do estágio, em que o seu período normal deverá ser de pelo menos 18 (dezoito) meses, proporcionalmente a falta de contacto do advogado orientado, em período de adaptação, com o seu orientador e o trabalho desenvolvido no escritório deste, será resumido a alguns dias.
Por outro lado, também o facto de se encontrar estipulado no n.º 3 da cláusula VI do Protocolo, que o período de adaptação poderia incluir “... acções de formação julgadas adequadas à realidade ...”, indica claramente a necessidade da presença do candidato nas sessões de tais acções de formação.
Acresce que, por deliberação da Direcção da AAM, tomada em reunião de 4 de Outubro de 2012, ficou estipulado que todos os advogados inscritos através do referido protocolo, incluindo os que ainda estivessem à data em período de adaptação deveriam assistir a vinte diligências judiciais, ou intervir em dez processos de natureza vária, apresentando os respectivos relatórios sobre tais assistências ou intervenções.
Em conclusão, parece-nos manifesta a necessidade de o advogado candidato à inscrição definitiva, em período de adaptação, ter que permanecer no território da RAEM na maior parte do tempo daquele período, sob pena de não o cumprir.
O Dr. A, advogado inscrito na Ordem dos Advogados Portugueses, veio solicitar a conversão da sua inscrição em definitiva, através do requerimento datado de 14 de Março de 2013, cuja entrada nos serviços da AAM acorreu em 3 de Abril de 2014, no qual afirma, sob compromisso de honra, ter cumprido o período de adaptação - entre 5 de Setembro e 5 de Dezembro de 2012, mais tarde prorrogado até 5 de Março de 2013.
No entanto, chegou ao conhecimento da AAM que o referido advogado não permaneceu no território da RAEM durante o período assinado para a sua adaptação, nem o mesmo veio a apresentar qualquer relatório sobre as intervenções ou assistências a que estava obrigado a cumprir.
Inquirido sobre a sua permanência em Macau durante tal pedido, o interessado respondeu, em súmula, que nenhuma norma o obrigava a permanecer em Macau durante o seu período de adaptação, tendo-se limitado a estudar a legislação vigente na RAEM.
Tendo sido questionada a sua orientadora, Dra. B, sobre tal questão, através de ofício, a mesma confirmou que o referido advogado não frequentou com assiduidade o seu escritório.
O mesmo é dizer que, apesar de o advogado inscrito provisoriamente ter declarado, sob compromisso de honra, ter cumprido o seu período de adaptação, que considerou terminado, tal não aconteceu. E, não o cumprindo, dentro do período que lhe foi cometido para a sua adaptação, não pode a sua inscrição provisória ser convertida em definitiva. Ao invés, deve a mesma ser revogada, em virtude de o candidato ter considerado terminado o seu período de adaptação, sem o cumprir, seja por faltada necessária permanência na RAEM e da frequência assídua do escritório do seu orientador, seja pela falta de entrega dos relatórios devidos.
Face ao exposto, é deliberado revogar a inscrição provisória, como advogado, do Dr. A, na AAM (sublinhados nossos).”
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III – O Direito
1. Está em causa a revogação da inscrição provisória como advogado do Dr. A.
Entendeu a entidade ora recorrente que, nos termos dos arts. art.os 6.º, 28.º e 29.º do Regulamento de Acesso à Advocacia (RAA), e a cláusula VI, n.os 2, 3 e 4 do referido Protocolo Sobre o Direito de Estabelecimento assinado entre a Ordem dos Advogados Portugueses e a Associação dos Advogados de Macau, sem uma presença constante dos interessados, durante o período de adaptação ao direito local, no território da RAEM, desde logo por impossibilidade da sua comparência em diligências judiciais, como sejam as de designação oficiosa ou no âmbito do apoio judiciário, ou sem a sua presença no escritório do orientador, para trabalharem assiduamente em questões que envolvam as várias áreas do Direito de Macau, com as quais devem tomar contacto, não podem obter a inscrição definitiva como advogados de Macau.
Neste sentido, com o fundamento de que, tendo o recorrente contencioso declarado sob compromisso de honra, ter cumprido o período de adaptação - entre 5 de Setembro e 5 de Dezembro de 2012, mais tarde prorrogado até 5 de Março de 2013 - sem que isso correspondesse à verdade (o referido advogado não teria permanecido no território da RAEM durante o período assinado para a sua adaptação, nem apresentado qualquer relatório sobre as intervenções ou assistências que estava obrigado a cumprir), entendeu a Direcção da AAM revogar a inscrição provisória em virtude de não a poder converter em definitiva.
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2. Ao acto sindicado, o recorrente contencioso tinha imputado os seguintes vícios:
- De forma, por cumprimento defeituoso da audiência de interessados;
- De forma, por falta de fundamentação de direito;
- De violação de lei, por erro de interpretação das normas jurídicas e por violação dos princípios da boa-fé, da confiança e da proporcionalidade.
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3. Depois de dar por claudicado o primeiro dos vícios, a sentença do Tribunal Administrativo julgou procedente o recurso contencioso com base na ocorrência do vício de forma por falta de fundamentação, ao abrigo dos arts. 114º, nº1, al. c) e 115º, nº2, do CPA.
Fê-lo suportado na convicção de que as disposições legais (arts. 6º, 28º e 29º do Regulamento do Acesso à advocacia) e a Cláusula VI do Protocolo celebrado entre a Ordem dos Advogados em Portugal e Associação dos Advogados em Macau, citadas no acto, não permitem alcançar qualquer conclusão acerca do incumprimento do período de adaptação pelo advogado provisoriamente inscrito, nem, consequentemente, acerca da possibilidade da revogação da inscrição provisória.
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4. A Direcção da AAM, no presente recurso jurisdicional, diverge da decisão sindicada, considerando inexistir violação do dever de fundamentação e pugnando, por isso, pela revogação da sentença do TA.
Cumpre apreciar.
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5. Cremos que o sentido da sentença do TA, com o devido respeito, não pode sufragar-se.
Quando se fala em falta ou insuficiência de fundamentação, está-se a lidar com um vício de forma.
Contudo, uma coisa é fundamentar, outra é acertar na fundamentação. Ou seja, podem os fundamentos utilizados não estar correctos, porque contêm lapso ou erro na indicação das normas e princípios jurídicos invocados, por exemplo. Mas, quando tal acontece, do que se trata não é de falta de fundamentação, mas de uma fundamentação que não se ajusta à situação concreta. Por exemplo, se se cita uma norma que nada tem a ver com o caso, o que ocorre é uma má aplicação da lei e, portanto, acarretará vício de violação de lei. Ou seja, estaremos aí perante um vício que não é formal, mas substancial.
Ora, no caso vertente o acto impugnado apresenta fundamentação jurídica, quando, como suporte da decisão revogatória, cita aqueles preceitos do Regulamento do Acesso à Advocacia e a cláusula VI, n.os 2, 3 e 4 do referido Protocolo. Isto é fundamentação, que ninguém duvide disso.
Para a entidade ora recorrente, a invocação daqueles preceitos, aliada às considerações que teceu acerca da necessidade de vincular os inscritos provisoriamente à presença em Macau no período aludido (3/6 meses), ao contacto permanente com o direito de Macau, com os tribunais da RAEM, com o escritório do patrono, etc., é fundamentação, de acordo com a exigência plasmada no art. 115º do CPA.
E se “a fundamentação é um conceito relativo, que varia em função do tipo legal de acto e em razão das circunstâncias de cada caso concreto, de cada procedimento, de cada acto, sendo suficiente se, perante um certo conjunto de factores, for possível ficar a saber-se por que se decidiu num sentido e não noutro, de forma que o interessado, discordando do acto, o possa impugnar sem qualquer limitação, nem constrangimento, quanto às razões da discórdia.” (Ac. do TSI, de 21/02/2019, Proc. nº 1060/2017), então mais nos convencemos de que a justificação dada pela recorrente jurisdicional no acto revogatório apresenta todos os ingredientes para dar a conhecer ao recorrente contencioso as razões por que decidiu naquele sentido e não noutro.
Saber se essa fundamentação se adequa à situação é coisa completamente diferente e que já contende com o mérito ou com a substância do recurso.
Serve isto, e basta, para conceder razão à ora recorrente AAM.
Significa que os autos devem voltar à 1ª instância para aí prosseguirem com vista ao conhecimento dos restantes vícios imputados ao acto, de acordo com o disposto no art. 159º, nº1, do CPAC, talhado no respeito pelo duplo grau de jurisdição.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença impugnada e determinando o prosseguimento nos termos descritos.
Custas a final, em razão do decaimento.
T.S.I., 28 de Novembro de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Mai Man Ieng
Proc. nº 767/2019 18