打印全文
Processo nº 576/2019
Data do Acórdão: 28NOV2019


Assuntos:

Embargos de executado
Força probatório do documento particular


SUMÁRIO

A força probatória plena a que se refere o artº 370º do CC só diz respeito à materialidade das declarações e não também à veracidade do facto declarado, não indo portanto além da existência da declaração nele exarada.


O relator



Lai Kin Hong


Processo nº 576/2019


Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I
Por apenso à execução ordinária nº CV1-16-0238-CEO que lhe move a A, veio B deduzir os embargos de executado, dizendo que lhe não emprestou dinheiro algum e portanto lhe nada deve.

A final veio a ser proferida a seguinte sentença julgando procedentes os embargos e extinta execução:

  B, do sexo masculino, titular do BIRM nº 13XXXXX(5) e residente em Macau na Avenida XX nº XX, Edifício XX, XXº andar XX.
  Executado nos autos de execução de que estes são apenso, onde é Exequente,
  A, do sexo masculino, titular do BIRM nº 73XXXXX(1) e residente em Macau na Avenida XX, Edf. XX, XXº andar XX.
  Vem deduzir os presentes embargos, alegando que o Exequente nunca emprestou ao Executado a quantia de HKD3.000.000,00 nem nunca este recebeu tal montante, sendo que o que se passou foi que a mãe do Executado, viciada em jogo, há vários anos, contraiu um empréstimo de HKD3.000.000,00 junto do Exequente, empréstimo esse para jogo, tendo aquela assinado em 24.03.2015 um documento onde declarava que o Exequente lhe havia emprestado HKD3.600.000,00, sendo que o valor de HKD600.000,00 correspondia a juros nunca tendo sido emprestada tal quantia. Contudo como a mãe do Executado, agora Embargante, não possuía qualquer património e o Embargante era proprietário de uma fracção autónoma o Exequente, ora Embargado, exigiu que a mãe do Embargante forçasse este a assinar como fiador o que este fez. Uma vez que a mãe do Embargante perdeu toda a quantia de HKD3.000.000,00 no jogo e não tinha como devolver o respectivo montante o Embargado levou a que a mãe do Embargante, temendo pela sua segurança e da sua família, forçasse este (o Embargante) a assinar um título de dívida de modo a que o imóvel que possuía, pudesse servir de garantia de pagamento da mesma, tendo o Embargante assinado tal documento, sendo certo que à data tinha 18 anos, não tinha qualquer experiência de vida nem consciência do que estava a fazer e se limitava a obedecer às ordens de sua mãe.
  Mais alega que a mãe do Embargante do montante em dívida já restituiu HKD2.400.000,00 e que não se prova o valor das despesas jurídicas de MOP300.000,00.
  Concluindo pede que se julgue extinta a execução ou se assim não se entender que apenas está em dívida o valor de MOP618.000,00.
  Notificado o Embargado para querendo contestar veio este fazê-lo defendendo-se por impugnação e concluindo pela improcedência dos embargos.
  Foi proferido despacho saneador sendo seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
  Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal mantendo-se a validade da instância.
  
  As questões a decidir nestes autos consistem em apreciar da inexistência jurídica do contrato de empréstimo; se o contrato de mútuo que serve de base à execução efectivamente se realizou e consequentemente dos efeitos do documento assinado pelas partes e que constitui o título executivo; da simulação do contrato de mútuo; da validade do empréstimo por ter objecto contrário à lei e por usura; do pagamento parcial da dívida exequenda e da inexistência das despesas jurídicas reclamadas.
  
  Da instrução e discussão da causa apurou-se que:
a) O Embargado utilizou como título executivo o contrato de mútuo constante a fls. 6 dos autos principais para deduzir execução contra o Embargante, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; (alínea a) dos factos assentes)
b) Relativamente ao empréstimo aludido na alínea a), foi reembolsado ao Embargado a quantia de HKD2.000.000,00; (alínea b) dos factos assentes)
c) Em 24 de Março de 2015, o Exequente e a C celebraram um acordo de empréstimo (fls. 15 dos autos, ora aqui se dá por integralmente reproduzido), entre os quais, consta o seguinte (…) :
“Visto que o primeiro outorgante (Exequente) em 24 de Março de 2015, emprestou o montante de HKD3.600.000,00 à segunda outorgante (C), para giro comercial.
A segunda outorgante comprometeu-se a reembolsar integralmente o montante do empréstimo ao primeiro outorgante, antes do dia 20 de Novembro de 2015.
Caso a segunda outorgante não conseguisse reembolsar integralmente o montante do empréstimo antes do dia 20 de Novembro de 2015, o primeiro outorgante tem o direito de intentar acção junto do Tribunal, mediante o presente acordo, a fim de proteger os seus próprios créditos, sendo que todas as custas judiciais, procuradoria e etc, serão suportadas pelo creditado.”
(alínea c) dos factos assentes)
d) Em 24 de Março de 2015, o Exequente, a C e o Embargante celebraram um outro acordo de empréstimo (vide fls. 16 dos autos, ora aqui se dá por integralmente reproduzido) entre os quais, consta o seguinte:
“Visto que o primeiro outorgante (o Exequente) em 24 de Março de 2015, emprestou o montante de HKD3.600.000,00 à segunda outorgante (C), pelo que a segunda outorgante comprometeu-se a reembolsar integralmente o montante do empréstimo ao primeiro outorgante antes do dia 20 de Novembro de 2015.
Caso a segunda outorgante não conseguisse reembolsar integralmente o montante do empréstimo antes do dia 20 de Novembro de 2015, o primeiro outorgante tem o direito de intentar acção junto do Tribunal, mediante o presente acordo, a fim de proteger os seus próprios créditos, sendo que todas as custas judiciais, procuradoria e etc, serão suportadas pelo creditado.
O terceiro outorgante (B, Embargante) tem conhecimento sobre o pedido de empréstimo que a segunda outorgante fez ao primeiro outorgante, ao mesmo tempo o terceiro outorgante declarou ser fiador do referido empréstimo com responsabilidade solidária.”
(alínea d) dos factos assentes)
e) Os documentos nº 2 e 3 – datados de 24.3.2015 da petição de embargos (fls. 15 e 16) e o título executivo apresentado pelo Embargado datado de 29.12.2015 (fls. 6 dos autos principais) reportam-se todos ao mesmo empréstimo; (alínea e) dos factos assentes)
f) O Embargante nasceu no dia 5 de Outubro de 1997”; (alínea e-1) dos factos assentes)
g) Em 29 de Dezembro de 2015, o Exequente não emprestou ao Executado a quantia de HKD3.000.000,00, equivalente a MOP3.090.000,00; (resposta ao quesito nº 1 da base instrutória)
h) O Embargante nunca recebeu o empréstimo do contrato de mútuo, constante a fls. 6 dos autos principais; (resposta ao quesito nº 2 da base instrutória)
i) O Embargante nunca teve a vontade de celebrar com o Embargado, o contrato de mútuo constante a fls. 6 dos autos principais; (resposta ao quesito nº 3 da base instrutória)
j) O Embargado também nunca teve a vontade de celebrar com o Embargante o contrato de mútuo constante a fls. 6 dos autos principais; (resposta ao quesito nº 4 da base instrutória)
k) A vontade subjacente à celebração do contrato de mútuo entre o Embargante e o Embargado era apenas para garantir o pagamento da dívida que a C tem para com o Embargado, aproveitando o referido contrato como título executivo para deduzir a acção executiva contra o Embargante a fim de satisfazer os direitos do Embargado; (resposta ao quesito nº 5 da base instrutória)
l) No momento da assinatura do contrato mútuo, ora constante a fls. 6 dos autos da acção principal, o Embargante apenas tinha completado 18 anos de idade, na altura encontrava-se a estudar o ensino secundário; (resposta ao quesito nº 6 da base instrutória)
m) No momento da assinatura do contrato mútuo constante de fls. 6 da acção principal, o Embargante era inexperiente e dependente da sua mãe C; (resposta ao quesito nº 7 da base instrutória)
n) O Embargado aproveitou-se da inexperiência, e da dependência que o Embargante tinha para com a sua mãe C, para o Embargante assinar o contrato mútuo, ora constante a fls. 6 dos autos, fazendo com que o Executado mesmo não tendo contraído empréstimo ou recebido quaisquer montantes, se comprometesse a pagar ao Exequente; (resposta ao quesito nº 8 da base instrutória)
o) Em 6 de Janeiro de 2016, para liquidar a dívida do contrato mútuo, ora constante a fls. 6 dos autos da acção principal, a C reembolsou ao Exequente o montante de HKD50.000,00 em numerário; (resposta ao quesito nº 9 da base instrutória)
p) Em 4 de Agosto de 2016, para liquidar a dívida do contrato mútuo, ora constante a fls. 6 dos autos da acção principal, a C por forma de livrança, reembolsou ao Exequente o montante de HKD2.000.000,00; (resposta ao quesito nº 9-A da base instrutória)
q) Em 1 de Setembro de 2016, para liquidar a dívida do contrato mútuo, ora constante a fls. 6 dos autos da acção principal, a C reembolsou ao Exequente o montante de HKD10.000,00, mediante transferência bancária; (resposta ao quesito nº 10 da base instrutória)
r) Em 29 de Setembro de 2016, para liquidar a dívida do contrato mútuo, ora constante a fls. 6 dos autos da acção principal, a C reembolsou ao Exequente o montante de HKD10.000,00, mediante transferência bancária; (resposta ao quesito nº 11 da base instrutória)
s) Em 1 de Novembro de 2016, para liquidar a dívida do contrato mútuo, ora constante a fls. 6 dos autos da acção principal, a C reembolsou ao Exequente o montante de HKD10.000,00, através de depósito na máquina de ATM; (resposta ao quesito nº 12 da base instrutória)
t) Em 2 de Dezembro de 2016, para liquidar a dívida do contrato mútuo, ora constante a fls. 6 dos autos da acção principal, a C reembolsou ao Exequente o montante de MOP10.300,00, equivalente a HKD10.000,00, através de depósito na máquina de ATM; (resposta ao quesito nº 13 da base instrutória)
u) Em 4 de Janeiro de 2017, para liquidar a dívida do contrato mútuo, ora constante a fls. 6 dos autos da acção principal, a C reembolsou ao Exequente o montante de HKD10.000,00, através de depósito na máquina de ATM; (resposta ao quesito nº 14 da base instrutória)
v) O Embargado emprestou o montante constante no acordo de empréstimo a fls. 15 dos autos à C para apostar nos jogos, bem como cobrou antecipadamente os juros no montante de HKD600.000,00; (resposta ao quesito nº 15 da base instrutória)
w) Em 30.11.2015, o Embargante procedeu a uma hipoteca do imóvel de que era proprietário para garantir “facilidade bancária”, até ao montante de MOP4.200.000,00, junto do Banco D que foram concedidos a ele, Embargante, e à sua mãe; (resposta ao quesito nº 20 da base instrutória)
x) O Embargante procedeu à venda do apartamento que era proprietário em 19 de Julho de 2016. (resposta ao quesito nº 21 da base instrutória)
  Cumpre assim apreciar e decidir.
  
  Nos termos da al. b) do artº 677º do CPC “os documentos exarados ou autenticados por notário que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação”, podem servir de base à execução.
  A execução de que estes são apenso foi instaurada com base em declaração de dívida cuja assinatura do declarante, aqui Embargante, foi autenticada por notário, e onde reconhece (o declarante) dever o montante de HKD3.000.000,00.
  De acordo com o disposto no nº 1 do artº 699º do CPC fundando-se a execução em título autenticado por notário pode o Executado opor qualquer fundamento que lhe seria possível deduzir como defesa no processo de declaração.
  Começa o Embargante por invocar em I e II da sua p.i. de embargos que entre Embargante e Embargado não houve qualquer empréstimo nem este entregou àquele qualquer quantia nem aquele recebeu qualquer quantia deste (alegação em I), passando depois a alegar com base no facto de não ter havido empréstimo que o contrato de mútuo celebrado entre ambos e que constitui título executivo é inexistente, pelo que nos termos da al. a) do artº 697º do CPC deve ser extinta a execução.
  Ora, o artº 697º do CPC indica quais os fundamentos dos embargos à execução fundada em sentença referindo na al. a) a inexistência do título.
  Pese, embora, nos termos do nº 1 do artº 699º do CPC o embargante possa também invocar os fundamentos previstos no artº 697º do CPC, para que se pudesse falar de inexistência era necessário a ausência do título, ou seja, sendo a inexistência o não ser, seria necessário “o não ser do título”, “o não existir”.
  Ora, no caso em apreço, no que ao título concerne – contrato de mútuo celebrado – não é assacado qualquer vício, nomeadamente, não se põe em causa o texto, não se põe em causa a assinatura pelos outorgante nem a veracidade da mesma, ou seja, o título de forma alguma é inexistente, ele existe e foi assinado naqueles precisos termos pelos outorgantes.
  Assim sendo improcede o argumento da inexistência do título.
  
  Ao mesmo tempo que se invoca a al. a) do artº 697º do CPC vem também o Embargante invocar a inexistência do contrato ou a nulidade por simulação do contrato, sustentando a sua arguição no facto de nunca ter sido celebrado mútuo algum entre Embargante e Embargado.
  A este respeito o que se provou foi que efectivamente nunca foi celebrado mútuo algum entre Embargante e Embargado – cf. al. c), d), e), g), h), i), j) e k) da factualidade apurada – nem tão pouco havia intenção de o fazer.
  A situação subjacente à outorga do “suposto” contrato de mútuo que serve de base à execução é garantir que com esse contrato o Embargado conseguiria obter a satisfação do seu crédito pagando-se através do Embargante do empréstimo que havia feito a um terceiro (a mãe do Embargante), o mesmo é dizer pagando-se através do património do Embargante, embora este nunca tivesse contraído dívida alguma – cf. al. k) da factualidade apurada -.
  Paralelamente a toda essa situação o que também se verifica é que, aquando da outorga do contrato de mútuo que serve de base à execução, o Embargante tinha 18 anos, estava a estudar no secundário, era inexperiente e totalmente dependente de sua mãe – a verdadeira devedora -, sendo que, o Embargado se aproveitou dessa situação de dependência do Embargante para com a mãe para fazer com que este assinasse o contrato – cf. al. l) a n) da factualidade apurada -.
  No caso subjacente o que sucede é que não houve mútuo algum entre Embargado e Embargante, aquele não emprestou dinheiro algum a este e este nada recebeu daquele. A inexperiência, a idade e a dependência da mãe por banda do Embargante são demonstrativas de que este, sem culpa uma vez que se limitava a obedecer à mãe, fez uma declaração negocial sem ter consciência do que estava fazer, situação esta que era do perfeito conhecimento do declaratário e até provocada por este – cf. al. n) da factualidade apurada -, fazendo com a sua declaração não produza qualquer efeito nos termos da al. b) do nº 1 do artº 239º do C.Civ..
  Aliás para alguma Doutrina, no caso em apreço poderíamos até falar de ausência de vontade de acção1 prevista na al. a) do nº 1 do artº 239º, uma vez que, o Embargante é levado a agir e a proferir a sua declaração por influência/obediência à mãe, para garantir o pagamento de uma dívida de jogo desta – cf. al. v) da factualidade apurada -.
  Sendo que, o propósito de obter a declaração de dívida do Embargante com vista a obter a cobrança do crédito do Embargado daquele e não da verdadeira devedora resulta de ser o Embargante e não a sua mãe a ter património imobiliário como resulta dos autos e das alíneas w) e x) da factualidade apurada. Património esse que aliás foi primeiro hipotecado para garantir um empréstimo à mãe do Embargante e depois vendido.
  «A ineficácia dos negócios jurídicos traduz, em termos gerais, a situação na qual eles se encontram quando não produzam todos os efeitos que, dado o seu teor, se destinariam a desencadear» - cit. De António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, pág. 639 -.
  No caso do artº 239º do C.Civ. entendeu o legislador cominar a ausência de vontade de acção ou de consciência de fazer a declaração com a não produção de qualquer efeito.
  Esta é a solução que melhor se adequa à situação dos autos, entendendo-se que no caso nunca caberia o recurso à figura da simulação como o Embargante subsidiariamente alega, uma vez que a simulação pressupõe que há uma vontade de declarar mas que dolosamente se declara em sentido diverso daquele que corresponde à verdade. Independentemente de se aceitar que na esteira do que ensina o Prof. Oliveira Ascenção essa divergência entre a vontade e a declaração possam por analogia com o disposto no artº 232º do C.Civ. conduzir à nulidade do negócio jurídico, no caso dos autos, entendemos que nem essa se verifica uma vez que, por banda do Embargante declarante não havia vontade de emitir declaração alguma ou a consciência de o fazer.
  Termos em que, não produzindo a declaração do Embargante no contrato de mútuo que serve de base à execução qualquer efeito, não há em substância declaração de dívida e como tal inexiste a obrigação de pagar por banda do Embargante/Executado, impondo-se julgar a execução extinta.
  
  Pese embora a procedência do argumento anterior ser suficiente para a procedência da acção e ficar prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas, nada obsta que se referia que tendo-se provado que o empréstimo foi para jogo – cf. al. v) da factualidade apurada -, sempre seria de julgar extinta a execução uma vez que o mútuo em causa não era fonte de obrigações civis2.
  
  Concluindo-se pela extinção da execução com base na falta de produção de efeitos da declaração do Embargante fica prejudicada a apreciação de todas as demais questões suscitadas.
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgando-se procedentes porque provados os embargos, julga-se extinta a execução.
  
  Custas a cargo do Embargado.
  
Não se conformando com essa sentença, vem agora o embargado A recorrer dela para este Tribunal de Segunda Instância, concluindo e pedindo:
a) Vem o presente recurso interposto da sentença de fls. 171 e segs. que julgou procedentes os embargos deduzidos pelo executado e, consequentemente, julgou extinta a execução.
b) Em execução que moveu ao executado, B, veio o embargado, ora recorrente, peticionar o pagamento da quantia de MOP$1,371,028.00, acrescida de juros vincendos, até integral pagamento.
c) Das questões elencadas pelo embargante, e perante a matéria de facto assente, entendeu o Tribunal “a quo” que nunca foi “... celebrado mútuo entre Embargante e Embargado ... nem tão pouco havia intenção de o fazer.”
   Pelo que,
Nos termos do art.º 239°, nº 1, do C.C., o documento assinado pelas partes não produziu efeitos.
d) O documento em causa é um documento particular, com reconhecimento notarial (art.ºs 367° e 369° do C.C.) sendo que o embargante não arguíu a falsidade do documento.
   Ora,
e) Nos termos do art.º 370° do C.C. “o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.”
f) Sucede, contudo, que o embargante não arguíu a falsidade do documento em causa.
Limitou-se a impugnar o seu conteúdo.
A falsidade de um documento é arguida em incidente previsto no art.º 469º e segs. do C.P.C .. O que não foi o caso.
Assim sendo, nos termos do n° 2 do supra referido art.º 370º do C.C., “os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.”
g) Uma vez que não foi arguída e provada a falsidade do documento “subjudice”, então, as declarações dele constantes são verdadeiras, vinculando quem as emitiu, na medida em que forem contrárias aos interesses do declarante.
Por outras palavras, sendo formalmente autêntico um documento, então, também o é o seu conteúdo.
   Razão pela qual,
h) Entende o embargado que o documento - que foi o título executivo que apresentou - sendo formalmente válido, por não ter sido arguída a respectiva falsidade, faz prova plena quanto ao seu conteúdo, na medida em que, tendo as assintuaras sido presencialmente reconhecidas, este conteúdo não pode ser abalado por mera prova testemunhal (art.º 369º, nº 3 “a contrario”).
  Como foi o caso.
   Por outro lado,
i) Entendeu o Tribunal “a quo” “... tendo-se provado que o empréstimo foi para jogo - cf al.ª v) da factualidade apurada - sempre seria de julgar extinta a execução uma vez que o mútuo em causa não era fonte de obrigações civis.”
Só que,
j) Deu-se nos autos como assente - não obstante, diga-se, a absolvição do embargante no processo crime, que pelos mesmos factos, lhe foi movido (v. documento junto aos autos) - que “... o montante constante no acordo de empréstimo a fls. 15 dos autos à Chan Liu Hou (foi) para apostar nos jogos ...”
k) E o título executivo que o embargado juntou aos autos refere-se a uma dívida do embargante, B, e não a uma dívida da C, uma vez que, como se disse, o conteúdo do documento em causa deve considerar-se integralmente provado, sendo de concluir que o mútuo celebrado entre embargante e embargado produziu os respectivos efeitos.
   Termos em que,
Pela procedência deste recurso, deverá revogar-se a sentença recorrida e, consequentemente, a prossecução da execução a que os presentes embargos estão apensos.
   Assim se fazendo JUSTIÇA

Notificado das alegações, o embargado não contra-alegou.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

O embargado, ora recorrente, coloca-nos, em sede de recurso, as seguintes questões:

1. Da força probatória do título executivo; e

2. Da natureza ilícita do empréstimo.

Então vejamos.

1. Da força probatória do título executivo

Para o recorrente, sendo um documento particular com reconhecimento notarial e não tendo sido arguida a sua falsidade, o título executivo deve ser considerado um meio de prova dotado de força probatória plena quanto às declarações dele constantes. Sendo verdadeiras as declarações, devem vincular quem as emitiu, na medida em que foram contrários aos seus interesses. E sendo formalmente autêntico um documento, então também o é o seu conteúdo.

Ou seja, para o recorrente, deveria ficar plenamente provado o empréstimo contraído pelo embargante por força probatória do documento particular, notarialmente reconhecido e servido de título executivo na presente a acção executiva.

No presente apenso dos embargos, o embargante alegou e logrou provar a matéria exceptiva do direito invocado pelo exequente.

Na óptica do exequente/embargado, ora recorrente, enquanto não tiver sido arguida a falsidade do documento que se serviu de título executivo, a matéria exceptiva não poderia ter sido julgada provada, dada a força probatória plena do documento. Assim, ao julgar provada a matéria exceptiva da existência do empréstimo, o Tribunal a quo violou o disposto no artº 370º/2 do CC, que confere força plena probatória ao título executivo para a demonstração da existência do empréstimo.

Ora, a força probatória dos documentos particulares, notarialmente reconhecidos, encontra-se regulada nos artºs 369º e 370º do CC.

Estes artigos têm a seguinte redacção:

Artigo 369.º
(Reconhecimento notarial)
1. Se estiverem reconhecidas presencialmente, nos termos das leis notariais, a letra e a assinatura do documento, ou só a assinatura, têm-se por verdadeiras.
2. Se a parte contra quem o documento é apresentado arguir a falsidade do reconhecimento presencial da letra e da assinatura, ou só da assinatura, a ela incumbe a prova dessa falsidade.
3. Salvo disposição legal em contrário, o reconhecimento por semelhança vale como mero juízo pericial.
Artigo 370.º
(Força probatória)
1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
3. Se o documento contiver notas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras, emendas ou outros vícios externos, sem a devida ressalva, cabe ao julgador fixar livremente a medida em que esses vícios excluem ou reduzem a força probatória do documento.
Ao que parece, o recorrente segue este raciocínio:

Face ao disposto nos artºs 369º/2 e 370º/2 do CC, não tendo sido arguida a falsidade do documento notarialmente reconhecido que se serviu de título executivo, o facto de o embargante ter contraído empréstimo ao embargado, objecto das declarações contidas no título executivo, deve ser tido por provado, por força probatória plena do documento.

Não tem razão a recorrente.

É exacto que, face à conjugação das normas citadas supra, o documento que se serviu de título executivo demonstra plenamente que foram feitas pelo embargante as declarações dele constantes.

O que significa apenas que o embargante fez aquelas declarações.

A propósito do alcance da força probatória de um escrito particular cuja autoria é reconhecida por não ter sido impugnada pela parte contra quem o documento é apresentado, diz Vaz Serra que:

Uma vez determinado que o documento particular é da autoria da pessoa ou pessoas a quem se refere, provado fica que estas fizeram as declarações que nele lhes são atribuídas (Cód. Proc. Civil de 1961, art. 538º, nº 1; novo Cód.Civil, art. 376º, nº 1), e os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (Cód. Proc. Civil de 1961, art. 538º, nº 2; novo Cód.Civil, art. 376º, nº 2).

Isto só quer dizer que os factos que são objecto da declaração (……) se consideram provados quando contrários aos interesses do declarante, não excluindo a possibilidade de o interessado se valer dos meios gerais de impugnação da declaração documentada. Trata-se ali apenas de uma presunção derivada da regra de experiência de que quem afirma factos contrários aos seus interesses o faz por saber que são verdadeiros: ora essa regra não tem valor absoluto, bem podendo acontecer que alguém afirme factos opostos aos seus interesses apesar de eles não serem verdadeiros, e que tal afirmação não concorde com a sua vontade ou se ache afectada por algum vício do consentimento (o facto declarado no documento considera-se verdadeiro, embora não o seja, por aplicação das regras da confissão, mas também de harmonia com as regras desta, pode o declarante valer-se dos meios de impugnação respectivos).

Não está, por isso, o interessado inibido de provar que a declaração constante do documento não correspondeu à sua vontade ou que esta foi afectada por algum vício do consentimento. – in RLJ, ano 101º, págs. 269 e s.s..

Segundo esse douto Ensinamento de Vaz Serra, aqui citado como doutrina no direito comparado, uma coisa é a materialidade das declarações, outra é a veracidade dos factos contidos nas declarações.

A força probatória plena a que se refere o artº 370º/1 e 2 do CC diz respeito à materialidade das declarações e não também necessariamente à veracidade absoluta do facto declarado, que pode ser abalada por meios gerais de prova em contrário.

Assim, a força probatória plena do documento particular, a que se refere o artº 370º do CC, em relação ao qual o ensinamento doutrinário acima citado se não encontra desactualizado, não vai além da existência da declaração nele contida.

Na esteira desse entendimento, o título executivo prova in casu plenamente que foram feitas pelo embargante as declarações dele constantes, mas já não comprovam absolutamente que sejam exactos os factos constantes das declarações exaradas nele.

Não sendo absolutamente exactos, os factos objecto das declarações não representam mais do que factos presumidos e por isso ilidíveis mediante meios gerais de prova em contrário, nomeadamente a prova testemunhal.

É aliás o que sucedeu in casu.

Pois o Tribunal a quo admitiu, produziu e valorou a prova testemunhal no julgamento de facto relativamente à matéria exceptiva do direito invocado pelo exequente, e acabou por julgar não provado o empréstimo contraído pelo embargante, objecto das declarações constantes do título executivo.

Assim, bem andou o Tribunal a quo e nada temos a censurar a sentença recorrida.

2. Da natureza ilícita do empréstimo

Ex abundantia diz a sentença recorrida na parte final que pese embora a procedência do argumento anterior ser suficiente para a procedência da acção e ficar prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas, nada obsta que se referia que tendo-se provado que o empréstimo foi para jogo – cf. al.v) da factualidade apurada – , sempre seria de julgar extinta a execução uma vez que o mútuo em causa não era fonte obrigações civis.

Veio reagir o recorrente contra este entendimento do Tribunal a quo, tendo dito que se deu nos autos como assente …… que”…… o montante constante no acordo de empréstimo a fls. 15 dos autos à C (foi) para apostar nos jogos ……” e o título executivo que o embargado juntou aos autos refere-se a uma dívida do embargante, B, e não a uma dívida de C…… .

Ora, para nós, o Tribunal disse isto é apenas para realçar que a execução é sempre de julgar extinta, mesmo partindo da hipótese de que o embargante subscreveu o documento que serviu de título executivo só para a garantia do empréstimo contraído pela sua mãe C, uma vez que face ao disposto no artº 13º da Lei nº 8/96/M e na Lei nº 5/2004, este empréstimo nunca foi judicialmente exigível por ser contraído para jogo.

É exacto.

Exacto porque se for ilícito o empréstimo a montante, a garantia a jusante não pode deixar de ser viciada por contaminação.

De qualquer maneira, este entendimento do Tribunal a quo não é fundamento para julgar extinta a execução, pois a comprovação da matéria exceptiva do empréstimo invocado pelo embargado de per si já conduz à procedência dos embargos e à consequente extinção da execução.


Em conclusão:

A força probatória plena a que se refere o artº 370º do CC só diz respeito à materialidade das declarações e não também à veracidade do facto declarado, não indo portanto além da existência da declaração nele exarada.

Tudo visto resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar improcedente o recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida que julgou procedentes os embargos deduzidos pelo executado e extinta a execução.

Custas do recurso pelo recorrente.

Registe e notifique.

RAEM, 28NOV2019
_________________________
Lai Kin Hong
_________________________
Fong Man Chong
_________________________
Ho Wai Neng

1 Veja-se anotação nº 4 ao artº 239º do C.Civ. em Código Civil de Macau Anotado e Comentado de João Gil de Oliveira e José Cândido de Pinho.
2 Nos termos do artº 4º da Lei nº 5/2004 só a concessão de crédito para jogo por quem esteja legalmente habilitado para o efeito constitui fonte de obrigações civis. Não estando o embargado autorizado a conceder empréstimos para jogo, sem prejuízo da responsabilidade criminal que ao caso pudesse caber nos termos do artº 13º da Lei nº 8/96/M não é esta obrigação fonte de obrigações civis, tratando-se de mera obrigação natural à semelhança do que que se estabelece no nº 1 do artº 1171º do C.Civ.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------

576/2019-21