Proc. nº 953/2019
Recurso Jurisdicional em Matéria Cível
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 28 de Novembro de 2019
Descritores:
- Contrato de abertura de crédito
- Extracto de conta corrente
- Título executivo
SUMÁRIO:
I - Os contratos de abertura de crédito em conta corrente assinados pelo devedor, acompanhados da cópia certificada dos títulos de levantamento de fundos e o extracto da conta corrente, comprovativos da utilização da totalidade das facilidades bancárias concedidas, reúnem as condições legalmente exigidas para serem qualificados como título executivo.
II - A apresentação do extracto de conta corrente, que regista os movimentos de levantamentos de capital e os respectivos retornos, sendo embora documento interno do Banco (e por isso insusceptível de estar assinado pelo devedor), constitui a concretização do ónus a cargo do exequente de tonar liquida a dívida exequenda, nos termos do art. 689º, nº1, do CPC.
Proc. nº 953/2019
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I - Relatório
A, em chinês, A有限公司, sociedade comercial anónima, com sede em Macau, na Avenida XX, n.º XX, registada na Conservatória dos Registos Comercial e Bens Móveis sob o n.º 1XXX8(SO), ---
Instaurou no TJB Acção Executiva para Pagamento de Quantia Certa (Proc. nº CV3-19-0029-CEO) contra ---
B (4XX1-1XX2-7XX9), casada, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º 50XXXXX(8), emitido em 19 de Junho de 2014, residente em Macau, na Rua de XX, n.º XX, Edifício XX, XX.º andar “XX”.
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Por despacho de 18/03/2019, foi indeferido liminarmente o requerimento de execução.
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A exequente interpôs recurso jurisdicional deste despacho, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“A. A alínea c) do artigo 677.º do CPC, “À execução apenas podem servir de base: c) os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º do CPC.
B. O artigo 689.º do CPC estabelece que “Se a obrigação for ilíquida e a liquidação depender de simples cálculo aritmético, cabe ao exequente, no requerimento inicial da execução, fixar o quantitativo a pagar.”.
C. O documento particular assinado pelo devedor que importa a constituição de obrigações pecuniárias, no caso em apreço até ao limite do crédito concedido, cujo valor seja determinável nos termos do artigo 689.º do CPC, constitui título executivo legalmente admissível, conforme o estatuído na alínea c) do artigo 677. º do CPC.
D. O artigo 689.º do CPC, no seu n.º 1 estabelece que, se a obrigação for ilíquida e a liquidação depender de simples cálculo aritmético, cabe ao exequente, no requerimento inicial de execução, fixar o quantitativo a pagar.
E. Com efeito os extractos juntos pelo exequente, tal como se aludiu supra, têm o propósito de quantificar o montante da dívida que, por conseguinte, se torna certa, líquida e exigível.
F. O contrato encontra-se assinado pela executada e o montante da obrigação pecuniária é determinado nos termos da liquidação feita pelo exequente e comprovada pelo extracto de conta corrente,
G. Nesta conformidade, o Doc. n.º 1 completado pelo Doc. n.º 2 constituem o título executivo, nos termos da al. c) do artigo 677.º do CPC.
H. E tal liquidação teve lugar no próprio requerimento inicial de execução, onde o exequente, concluiu com um pedido líquido.
I. A prática jurisdicional do Tribunal Judicial de Base até aqui estabelecida, tem vindo a admitir títulos executivos desta natureza.
J. Por razões atinentes ao princípio da economia processual, torna-se desnecessário ao credor, salvo melhor opinião, sobrecarregar o Tribunal Judicial de Base com litigância excessiva, ao impor-se ao exequente a instauração de acções declarativas para obtenção de títulos executivos, quando aquele já se encontra munido dos mesmos.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a douta decisão de fls. 33, ora recorrida, e substituída por outra que admita o requerimento inicial de execução, seguindo-se os ulteriores termos até final, assim se fazendo a costumada, JUSTIÇA!”
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1. Entre o A e a recorrida B foi celebrado o seguinte contrato de abertura de crédito, “XX” (fls. 11), até ao limite de MOP$ 38.000,00.
2. Por alegadamente a executada estar a dever-lhe a quantia de MOP$ 50.803,02, o A instaurou execução, para cobrança coerciva dessa importância, bem como dos juros de mora à taxa acordada até efectivo e integral pagamento.
3. O juiz do processo proferiu em 18/03/2019 o seguinte despacho:
“Tendo em conta o facto de que o documento 1 apensado pelo exequente é um documento de requerimento de linha de descoberto assinado pela executada, apesar de o requerimento ter sido autorizado pelo exequente, apenas a partir do documento, não se consegue confirmar a existência de uma dívida. Quanto ao documento 2 apensado pelo exequente, crê-se que se trata de um registo discriminado da linha de crédito realmente usada pela executada, que serve como um suplemento ao documento 1. Porém, o registo aqui em discussão é um documento interno do exequente, no qual não se encontra a assinatura da executada. Nos termos do art.º 677.º, alínea c) do CPC, apenas os documentos assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento do montante de uma dívida é que podem servir como título executivo.
O juízo notou a jurisprudência citada pelo exequente. Salvo o devido respeito pela opinião diferente, o signatário entende que a razão pela qual a lei atribui a um documento particular normal a qualidade do título executivo necessário para a abertura de uma acção executiva, sem a necessidade da interposição precedente da acção declarativa, consiste na assinatura do executado constante do documento que reconhece a dívida. Nos termos do art.º 370.º, n.º 1 e n.º 2 do CC, se a assinatura no documento é verdadeira, então o documento faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, e os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante. Caso contrário, se a partir de um documento com a assinatura do executado, não se consegue reconhecer a existência de uma dívida, e para o efeito se deve procurar outros documentos externos que sirvam de suplementos, então a certeza que se tem sobre a existência da dívida diminui em grande medida, sem qualquer dúvida, eis porque daqueles documentos externos não consta a assinatura do executado. Então estamos em face de uma situação semelhante àquela da incerteza em uma acção declarativa. Portanto, segundo o signatário, no caso que um documento particular serve como título executivo, o único caso no qual se constitui o título executivo previsto pelo art.º 677.º, alínea c) do CPC é quando se pode reconhecer a existência da dívida somente a partir de um documento assinado pelo executado.
Apesar do facto de que a fase de embargos nas acções executivas também tem a natureza declarativa, não se pode ignorar uma diferença importante entre as acções executivas e as acções declarativas, que é nas acções executivas, a apresentação dos embargos não obsta ao andamento da acção executiva; por outras palavras, mesmo com os embargos já apresentados, o património do executado sempre pode continuar a ser penhorado dentro da acção. Então qual é a razão que serve como fundamento à tese? Obviamente é a definição rigorosa dada pelos legisladores ao título executivo. Quando se trata de um documento particular, então deve ser um documento assinado pelo devedor para confirmar a dívida.
Quanto à importância da assinatura do devedor, pode-se verificar a partir do art.º 701.º, n.º 2 do CPC; ou seja, se o fundamento do embargo é a não genuinidade da assinatura e se se junta documento que constitua princípio de prova, pode o juiz, ouvido o exequente, mandar suspender a execução. Disso pode-se ver que se do documento não consta a assinatura do devedor ou se a assinatura é falsificada, então a acção executiva não deve ser aberta ou não deve continuar a desenrolar-se.
Precisamente pelas razões acima mencionadas, falta ao presente processo o título executivo, pelo que o signatário decide ora rejeitar liminarmente o requerimento de execução apresentado pelo exequente.
Custas pelo exequente.
Notifique e registe.”
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III – O Direito
Celebrou o A um contrato de abertura de crédito (doc. nº1) com a executada, que esta utilizou durante perto de 5 anos, pagando os juros convencionados. E porque em 23/09/2016 a executada teria deixado de cumprir as obrigações assumidas, o exequente exerceu o direito de resolver o contrato e exigindo o pagamento da dívida então existe, que era de MOP$ 38.082,37, a que se somaria o valor dos juros, quantificados em MOP$ 12.582,83. É esta a tese do exequente, que alicerçou em documentos que juntou aos autos.
O tribunal “a quo” entendeu, porém, que não estaria perante um título executivo, pelo simples facto de o documento nº2 não estar assinado pela executada, face ao art. 677º do CPC.
Apreciando.
O art. 677º, al. c), do CPC dispõe que “A execução…podem servir de base os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689º…”.
Que o documento nº1 é um título executivo não se duvide, pois o TSI até já o afirmou “Os contratos de abertura de crédito em conta corrente assinados pelo devedor, acompanhados da cópia certificada dos títulos de levantamento de fundos e o extracto da conta corrente, comprovativos da utilização da totalidade das facilidades bancárias concedidas, reúnem as condições legalmente exigidas para serem qualificados como título executivo.” (Ac. do TSI, de 26/03/2009, Proc. nº 637/2008). E isso mesmo pode ser confirmado em sede de jurisprudência em direito comparado (v.g., Ac. do STJ, de 15/05/2001, Proc. nº 01A1113; e de 7/05/2001, Proc. nº 01A1527; Ac. da RG, de 24/04/2012, Proc. nº 1030/10; Ac. da RC, de 13/11/2015, Proc. nº 5705/14).
O próprio despacho não questiona, sequer, o documento nº1 (contrato de abertura de crédito, “XX”), ao abrigo do qual nasceram, livremente assumidas e convencionadas, obrigações para ambas as partes. E esse documento está assinado pela executada. É dele, pois, que advém o carácter de título executivo oferecido à execução.
A preocupação contida no despacho impugnado reside no facto de o documento nº2 ser apenas um “documento interno do exequente” desprovido daquele carácter executivo.
Mas, salvo o devido respeito, o despacho sindicado labora em má percepção do valor desse documento.
Trata-se de um documento “interno” do A, sem dúvida. Mas só é interno, enquanto registo bancário dos movimentos lançados a débito e crédito na conta corrente por onde seriam utilizadas as importâncias de que a interessada carecesse ao abrigo do referido contrato de abertura de crédito. Mas, como é bom de ver, os efeitos desse documento projectam-se na esfera de cada um dos intervenientes contratuais, pois é a partir dele que o credor acompanha a situação do devedor.
Claro que um tal documento, precisamente por ser uma espécie de conta-corrente bancária onde se registam as operações de disponibilização do capital ao “mutuário” e pagamentos parcelares efectuados, não contém a assinatura do devedor. Nem é possível tê-la. Na verdade, trata-se de um extracto que, se serve para o credor ir acompanhando o quadro de cumprimento do contrato por parte do outro contraente, também não deixa de, em caso de execução, servir ao exequente para documentar, como é seu ónus, a liquidação da obrigação, tal como o impõe o art. 689º, nº1, do CPC.
Com efeito, ao exequente cumpre tornar líquida a obrigação que, no caso em apreço, era variável em função dos quantitativos levantados pela executada em razão das “facilities” concedidas pela abertura do crédito bancário e os montantes de cada retorno. Ora, isto só se consegue através de um registo, em extracto de conta corrente, como é aquele que suporta o referido documento.
Ou seja, não está assinado pela executada, porque ele representa um ónus que apenas cabe ao exequente exibir, que é, como se disse, o da liquidação da dívida exequenda.
Saber se esses valores estão certos, isso já é coisa diferente, que só a executada poderá impugnar pelo meio próprio e no momento oportuno.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho impugnado, que deve ser substituído por outro que mande prosseguir a execução, a não ser que outra qualquer causa a tal obste.
Sem custas por não serem devidas.
T.S.I., 28 de Novembro de 2019
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
Proc. nº 953/2019 9