打印全文
Processo n.º 686/2018 Data do acórdão: 2019-12-5
Assuntos:
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– acidente de viação
– queda da passageira dentro do autocarro por desequilíbrio corporal
– fractura óssea por causa da queda
– comprovação do momento da fractura óssea
– art.o 58.o, n.o 3, da Lei do Trânsito Rodoviário
– retomar a marcha do autocarro
– tomar precauções necessárias para evitar qualquer acidente
– acto de fazer fechar bem a porta do autocarro
– passageira com idade avançada
– bom pai de família
– advertência verbal da manobra de condução
– culpa do condutor
– art.o 477.o, n.o 1, do Código Civil
– indemnização autónoma da invalidez parcial corporal
– incapacidade permanente parcial
S U M Á R I O
1. Como do teor da fundamentação fáctica do acórdão recorrido resulta nítido que o tribunal sentenciador já investigou sobre todo o tema probando dos autos sem qualquer lacuna ou omissão, nunca pode ter ocorrido o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
2. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
3. No caso, no tocante à comprovação da fractura óssea sofrida pela ofendida já no próprio dia do acidente de viação por causa desse acidente, é de atender, desde já, a que a livre convicção do tribunal recorrido nessa parte se fundou na análise global e crítica de todos os elementos probatórios dos autos.
4. Assim, tudo conjugado e apreciado criticamente, não se pode censurar ao tribunal recorrido a decisão, aliás razoável, de dar por provado que a ofendida sofreu fractura óssea no próprio dia do acidente, dentro do autocarro dos autos, por causa da queda dela no chão desse autocarro. O facto de não ter havido qualquer documento médico ou policial a referir que a ofendida já tinha fractura óssea no dia do acidente por causa da queda dela dentro do autocarro não obsta à formação da livre convicção por parte do tribunal recorrido na indagação do momento de ocorrência da fractura óssea no corpo da ofendida.
5. Segundo o disposto no art.o 58.o, n.o 3, da Lei do Trânsito Rodoviário, ao retomar a marcha, o condutor de veículos de transporte colectivo de passageiros deve assinalar devidamente a manobra e tomar as precauções necessárias para evitar qualquer acidente.
6. O acto do condutor de fazer fechar bem a porta do veículo de transporte colectivo por ele conduzido após a tomada de passageiros não equivale ao acto de assinalar devidamente a manobra de retomar a marcha do veículo. Retomar a marcha do autocarro sem fazer fechar bem toda a porta do autocarro é indubitavelmente um acto de condução perigosa, e mesmo que a porta do autocarro estivesse bem fechada, a manobra de retomar a marcha do autocarro também poderia ser realizada de forma não prudente. Por isso, o facto de a porta do autocarro estar bem fechada não é decisivo para aferir o cumprimento, ou não, pelo condutor do autocarro, daquela norma da Lei do Trânsito Rodoviário.
7. No caso dos autos, perante uma passageira com idade avançada a dirigir-se a um assento dentro do autocarro, deveria o condutor demandado, aos ditames do bom pai de família, tomar precaução em relação a ela antes de retomar a marcha do autocarro, para evitar qualquer acidente, precaução que poderia ser feita, por exemplo, através da advertência verbal, da preparação da iniciação da manobra de retomar a marcha do veículo, para a passageira em causa poder estar prevenida dessa manobra.
8. O facto de não estar provado que o condutor demandado tenha retomado de modo súbito a marcha do autocarro não releva para afastar a conclusão acima tirada, pois as regras da experiência da vida ensinam que mesmo que a marcha do autocarro não fosse retomada de forma súbita, as passageiras idosas, por efeito da manobra de novo arranque do autocarro, também perderiam facilmente o equilíbrio corporal se não estivessem sentadas.
9. Como da matéria de facto provada, não resulta revelado que a ofendida tenha procedido com descuido ao dirigir-se ao assento oferecido por outrem a ela, o condutor demandado foi, pois, o único culpado pela produção do acidente dos autos: caiu a ofendida no chão do autocarro por desequilíbrio corporal dela, desequilíbrio esse que se deu porque o condutor demandado não observou cabalmente a regra do n.o 3 do art.o 58.o da Lei do Trânsito Rodoviário, e daí, por essa causalidade adequada, a culpa exclusiva do condutor demandado pela produção do acidente – cfr. mormente o art.o 477.o, n.o 1, do Código Civil.
10. A invalidez parcial corporal da ofendida demandante, decorrente da sua taxa de incapacidade permanente parcial (IPP) fixada médico-pericialmente, é susceptível de indemnização autónoma, enquanto as dores e incómodos sofridos por ela por causa da IPP já devem ser objecto de indemnização através de um montante atribuído a título de indemnização por danos não patrimoniais.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 686/2018
(Autos de recurso penal)
Recorrentes:
A, S.A.
B






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 349 a 358 do Processo Comum Colectivo n.° CR3-17-0243-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, com enxertado pedido cível de indemnização emergente de acidente de viação, ficou o arguido C absolvido do crime negligente de ofensa grave à integridade física, enquanto a civilmente demandada A, S.A., como seguradora do autocarro então conduzido por aquele, ficou condenada a pagar à ofendida demandante a quantia total (indemnizatória de danos patrimoniais e não patrimoniais) de MOP402.599,85 (com juros legais desde a data dessa decisão até integral e efectivo pagamento), correspondente à entendida percentagem de 50% da responsabilidade civil por risco por parte do condutor.
Inconformada, veio a demandada seguradora recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar que a ofendida fosse declarada como a única parte culpada pela produção do acidente de viação, e que fosse como fosse a responsabilidade civil por risco por parte do condutor demandado não pudesse ser superior a 20% e que a quantia indemnizatória de 15% da taxa de invalidez corporal da ofendida não pudesse ser superior a MOP100.000,00, tendo alegado, na sua essência, o seguinte na sua motivação de fls. 365 a 378 dos presentes autos correspondentes:
– a decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, porquanto, para já, não houve prova documental, por exemplo, médica ou policial nos autos a comprovar que a ofendida já tinha sofrido fractura óssea em 2 de Janeiro de 2016, daí que o Tribunal recorrido não poderia ter julgado como provado que a ofendida sofreu fractura óssea nesse dia do acidente de viação dos autos apenas com base nas declarações da ofendida, com a achega de que fosse como fosse, sempre seria de observar que a queda da ofendida no chão dentro do autocarro teria sido devido ao desequilíbrio corporal dela por culpa dela própria, pelo que errou o Tribunal recorrido notoriamente na apreciação da prova quando entendeu que a ofendida não teve culpa na queda no chão;
– a mesma decisão enferma também do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, uma vez que ante a matéria de facto entretanto dada por provada no acórdão recorrido, não seria aplicável ao caso dos autos a figura de responsabilidade civil por risco, e mesmo que houvesse alguma responsabilidade por risco por parte do condutor do autocarro, essa responsabilidade não deveria ter sido fixada em percentagem acima de 20%;
– além disso, sempre seria excessivo o valor de MOP250.000,00 atribuído pelo Tribunal sentenciador para a indemnização da taxa de invalidez corporal da ofendida, quantia essa que deveria passar a ser de menos de MOP100.000,00, por o Tribunal recorrido já ter fixado o valor indemnizatório de danos não patrimoniais da ofendida em MOP400.000,00.
Por outra banda, a ofendida interpôs recurso subordinado através da motivação de fls. 382 a 393 dos autos, para pedir, principalmente, a declaração do condutor como o único culpado pela produção do acidente de viação, com todas as consequências legais daí advenientes, tendo alegado (na sua essência) e peticionado o seguinte:
– a decisão civil recorrida sofre do vício de erro notório na apreciação da prova, porque a decisão do Tribunal recorrido no sentido de o condutor já ter cumprido o dever de cuidado na condução do autocarro foi tomada com fundamento numa conclusão inaceitável à luz do art.o 58.o, n.o 3, da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), qual seja, a de que o facto de a porta do autocarro ter sido bem fechada pelo condutor após a tomada de passageiros na estação de autocarro significa que o condutor já assinalou devidamente a manobra de retomar a marcha do autocarro; de facto, o próprio condutor declarou até na audiência de julgamento que na altura em que a ofendida subiu ao autocarro, já reparou ele que a ofendida era uma pessoa muito idosa, ao que acresce a circunstância de a ofendida trouxe com ela na altura uma bengala, pelo que ela tinha dificuldade no andamento, o que conforme ensinam as regras da experiência da vida humana reclama maior atenção por parte do condutor para prevenir a ocorrência de qualquer acidente em relação à ofendida; no caso dos autos, bastaria ao condutor esperar por mais um ou dois segundos para deixar a ofendida ficar sentada no assento cedido na altura por uma outra passageira a ela; por tudo isto, fica demonstrado que aquela conclusão tirada pelo Tribunal recorrido fere as regras da experiência da vida e afasta toda a utilidade daquela norma legal;
– a decisão recorrida sofre também do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ao não ter explicado por quê é que a ofendida tinha 50% de responsabilidade por risco;
– à falta de factos provados susceptíveis de fazer imputar à ofendida qualquer responsabilidade pela produção do acidente, o condutor deve ser condenado como o úncio culpado pelo acidente;
– e fosse como fosse, a responsabilidade da ofendida pela produção do acidente nunca poderia ser superior a 10%.
Não deixou a ofendida de responder ao recurso principal da seguradora, pugnando materialmente, a fls. 394 a 404, pela improcedência do mesmo.
Outrossim, respondeu a seguradora ao recurso subordinado da ofendida, preconizando, a fls. 412 a 414, o não provimento do mesmo.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, opinou não ter legitimidade para emitir parecer, por se tratar de matéria recursória de natureza meramente civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 349 a 358, cujo teor integral, incluindo a respectiva fundamentação fáctica e probatória, se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Nos autos, existe videograma de gravação visual sobre o acidente ocorrido em 2 de Janeiro de 2016, dentro do autocarro dos autos – cfr. mormente as imagens extraídas desse videograma e ora constantes de fls. 40 a 43.
3. No relatório do exame médico de 12 de Janeiro de 2016, consta escrito, a fl. 25, que a ofendida disse que em 2 de Janeiro de 2016 tinha caído no chão e que após dessa queda sentia dores inclusivamente na cintura e nas costas.
4. No relatório de perícia médico-legal de fl. 45, foi atestada a fractura óssea da ofendida.
5. A ofendida prestou declarações na audiência de julgamento sobre a ocorrência dos factos. A filha e a neta da ofendida depuseram na audiência de julgamento que a ofendida não tinha chegado a cair dentro dos dez dias após a ocorrência do acidente. O genro da ofendida depôs na audiência de julgamento que dentro dos dez dias depois da ocorrência do acidente, não tinha chegado a acontecer algo. Sobre tudo isto, cfr. o teor da fundamentação probatória do acórdão, escrita na páginas 9 a 11, do respectivo texto, a fls. 353 a 354.
6. Na fundamentação probatória do acórdão recorrido, consta escrito (originalmente em chinês, no penúltimo parágrafo da página 10 do respectivo texto, a fl. 353v) que:
O art.o 58.o, n.o 3, da LTR dispõe que ao retomar a marcha o condutor de veículos de transporte colectivo de passageiros deve assinalar devidamente a manobra e tomar as precauções necessárias para evitar qualquer acidente. A lei não exige que o condutor tenha que esperar no sentido de todos os passageiros ficarem seguramente de pé ou bem sentados para poder retomar a marcha, exigência deste tipo que aliás é irrealista na vida real. A lei também não exige sobre a forma de assinalar devidamente a manobra de retomar a marcha. Após ter ficado a porta do veículo bem fechada, as regras da experiência ditam que os passageiros já sabem que o veículo está a retomar logo a marcha.
7. O Tribunal recorrido fixou em MOP250.000,00 o valor indemnizatório da taxa de 15% de invalidez corporal da ofendida, e em MOP400.000,00 o valor indemnizatório dos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida.
8. O mesmo Tribunal, depois de ter fixado todas as quantias parcelares indemnizatórias e calculado o respectivo total, decidiu condenar a seguradora a pagar apenas a metade desse total (acrescido de juros legais), em correspondência à decidida taxa de 50% de percentagem da responsabilidade civil por risco, por parte do condutor demandado, no acidente de viação dos autos.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando:
Ambas as recorrentes chegaram a assacar à decisão civil recorrida o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Entretanto, os argumentos concretamente tecidos por elas para sustentar a verificação desse vício, a que alude o art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), não têm a ver com o alcance e sentido desse vício de foro próprio de julgamento de factos, mas sim com o eventual erro de julgamento de direito por parte do Tribunal sentenciador na questão de aplicabilidade, ou não, do regime de responsabilidade civil por risco ao caso dos autos, e com a eventual injusteza no juízo de valor judicial fixador da percentagem dessa responsabilidade.
Com efeito, do teor da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, resulta nítido que o Tribunal recorrido já investigou sobre todo o tema probando dos autos (no caso, traçado previamente pela matéria fáctica alegada nos articulados), sem qualquer lacuna ou omissão, pelo que nunca poderia ter ocorrido o vício referido nessa norma processual penal (nesse sentido, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
Passa-se a aquilatar agora do vício de erro notório na apreciação da prova, simultaneamente invocado, e nuclearmente, pelas duas recorrentes nas suas motivações.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, mesmo que não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos elementos constantes dos autos, para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, no tocante à comprovação da fractura óssea sofrida pela ofendida já no próprio dia do acidente de viação (em 2 de Janeiro de 2016) por causa desse acidente, é de atender, desde já, a que a livre convicção do Tribunal recorrido nessa parte se fundou, conforme o declarado por esse Tribunal na fundamentação probatória da sua decisão ora recorrida, na análise global e crítica de todos os elementos probatórios dos autos.
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
– há videograma de gravação visual sobre a ocorrência do acidente dentro do autocarro dos autos (cfr. mormente as imagens extraídas desse videograma e ora constantes de fls. 40 a 43), que deu para comprovar cabalmente que a ofendida caiu no chão dentro do mesmo autocarro, no dia 2 de Janeiro de 2016;
– no relatório do exame médico de 12 de Janeiro de 2016, consta escrito, a fl. 25, que a ofendida disse que em 2 de Janeiro de 2016 tinha caído no chão e que após dessa queda sentia dores inclusivamente na cintura e nas costas;
– no relatório de perícia médico-legal de fl. 45, foi atestada qual a fractura óssea sofrida pela ofendida;
– a ofendida prestou declarações na audiência de julgamento sobre a ocorrência dos factos; a filha e a neta da ofendida depuseram na audiência de julgamento que a ofendida não tinha chegado a cair dentro dos dez dias após a ocorrência do acidente; e o genro da ofendida depôs na audiência de julgamento que dentro dos dez dias depois da ocorrência do acidente, não tinha chegado a acontecer algo. Sobre tudo isto, cfr. o teor da fundamentação probatória do acórdão, escrita na páginas 9 a 11, do respectivo texto, a fls. 353 a 354.
Assim, tudo conjugado e apreciado criticamente, não se pode censurar ao Tribunal recorrido a decisão, aliás razoável, de dar por provado que a ofendida sofreu fractura óssea no próprio dia do acidente, dentro do autocarro dos autos, por causa da queda dela no chão desse autocarro.
O facto de não ter havido qualquer documento médico ou policial a referir que a ofendida já tinha fractura óssea no dia do acidente (por causa da queda dela dentro do autocarro nesse dia) não obsta à formação da livre convicção por parte do Tribunal recorrido na indagação do momento de ocorrência da fractura óssea no corpo da ofendida.
Em suma, não se vislumbra que a livre convicção do Tribunal recorrido nesta parte tenha sido formada com violação patente das regras da experiência da vida, ou das leges artis, ou de qualquer norma sobre o valor legal das provas. A livre convicção desse Tribunal nessa parte está, pois, dentro do padrão da razoabilidade humana.
A ofendida imputou ao Tribunal recorrido o cometimento de erro notório na apreciação da prova na parte em que julgou no acórdão recorrido que o condutor demandado já tinha observado a norma do n.o 3 do art.o 58.o da LTR. Entretanto, afigura-se ao presente Tribunal ad quem que a argumentação concretamente tecida por esta recorrente nesta parte do seu recurso subordinado tem a ver propriamente com a decisão de direito do Tribunal recorrido, e já não com a decisão da matéria de facto, pelo que vai ser apreciada, em seguida, a questão da já observância ou não, pelo condutor demandado, daquela norma legal, como pressuposto para se decidir da questão da culpa pela produção do acidente, colocada ao mesmo tempo pelas duas recorrentes.
Segundo o disposto no art.o 58.o, n.o 3, da LTR, ao retomar a marcha, o condutor de veículos de transporte colectivo de passageiros deve assinalar devidamente a manobra e tomar as precauções necessárias para evitar qualquer acidente.
Realiza o presente Tribunal de recurso que o acto do condutor de fazer fechar bem a porta do veículo de transporte colectivo por ele conduzido após a tomada de passageiros não equivale ao acto de assinalar devidamente a manobra de retomar a marcha do veículo.
Retomar a marcha do autocarro sem fazer fechar bem toda a porta do autocarro é indubitavelmente um acto de condução perigosa, e mesmo que a porta do autocarro estivesse bem fechada, a manobra de retomar a marcha do autocarro também poderia ser realizada de forma não prudente. Por isso, o facto de a porta do autocarro estar bem fechada não é decisivo para aferir, em sede jurídica, o cumprimento, ou não, pelo condutor do autocarro, daquela norma da LTR.
No caso dos autos, perante uma passageira com idade avançada a dirigir-se a um assento dentro do autocarro (cfr. o ponto 2 e a parte inicial do ponto 9 da matéria de facto provada), deveria o condutor demandado, aos ditames do bom pai de família, tomar precaução em relação a ela antes de retomar a marcha do autocarro, para evitar qualquer acidente (é que conforme as regras da experiência da vida humana pessoa idosa perde facilmente equilíbrio corporal dentro do autocarro quando não esteja sentada), precaução que poderia ser feita, por exemplo, através da advertência verbal da preparação da iniciação da manobra de retomar a marcha do veículo, para a passageira em causa poder estar prevenida dessa manobra.
Nota-se que o facto de não estar provado que o condutor demandado tenha retomado de modo súbito a marcha do autocarro não releva para afastar a conclusão acima tirada, pois as regras da experiência da vida ensinam que mesmo que a marcha do autocarro não fosse retomada de forma súbita, as passageiras idosas, por efeito da manobra de novo arranque do autocarro, também perderiam facilmente o equilíbrio corporal se não estivessem sentadas.
Como da matéria de facto provada, não resulta revelado que a ofendida tenha procedido com descuido ao dirigir-se ao assento oferecido por outrem a ela, o condutor demandado foi, pois, o único culpado pela produção do acidente dos autos: caiu a ofendida no chão do autocarro por desequilíbrio corporal dela, desequilíbrio esse que se deu porque o condutor demandado não observou cabalmente a regra do n.o 3 do art.o 58.o da LTR, e daí, por essa causalidade adequada, a culpa exclusiva do condutor demandado pela produção do acidente (cfr. mormente o art.o 477.o, n.o 1, do Código Civil), conclusão essa que preclude as conclusões tiradas, a respeito da questão jurídica de aferição da culpa do condutor, pelo Tribunal a quo e descritas nas linhas 9 a 14 da página 8 do texto do acórdão recorrido a fl. 352v.
E agora do montante indemnizatório da taxa de invalidez corporal da ofendida: Desde logo, deve entender-se que a invalidez parcial corporal da ofendida demandante, decorrente da sua taxa de incapacidade permanente parcial (IPP) fixada médico-pericialmente em 15%, é susceptível de indemnização autónoma, enquanto as dores e incómodos sofridos por ela por causa da IPP já devem ser objecto de indemnização através de um montante atribuído a título de indemnização por danos não patrimoniais (neste sentido, cfr. nomeadamente o acórdão deste TSI, de 30 de Maio de 2019, do Processo n.o 997/2018). Assim, atenta a matéria de facto provada, de acordo com a qual a ofendida sofreu 15% de IPP, não se patenteia que haja qualquer injustiça notória na fixação, pelo Tribunal recorrido, segundo juízo equitativo, da quantia de MOP250.000,00 para a indemnização da taxa de 15% da invalidez corporal da ofendida, pelo que é de louvar esta parte da decisão já tomada no acórdão recorrido (cfr. o art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP).
Em jeito de decisão final, tendo o condutor culpa exclusiva pela produção do acidente, há que passar a condenar a demandada seguradora no pagamento da quantia total indemnizatória de MOP805.199,70 (oitocentas e cinco mil, cento e noventa e nove patacas e setenta avos) (por ser este a soma de todos os valores indemnizatórios inicialmente fixados pelo Tribunal recorrido – cfr. o teor da linha 19 e da parte inicial da linha 20, ambas da página 17 do texto do acórdão recorrido, a fl. 357), com juros legais contados a partir de hoje até integral e efectivo pagamento.
Dest’arte, naufraga o recurso principal e procede o pedido principal do recurso subordinado, sem mais indagação por prejudicada.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em negar provimento ao recurso principal da seguradora demandada, e julgar procedente o pedido principal do recurso subordinado da ofendida demandante, passando, por conseguinte, a condenar a seguradora a pagar à demandante a quantia indemnizatória total de MOP805.199,70 (oitocentas e cinco mil, cento e noventa e nove patacas e setenta avos), com juros legais a contar de hoje até integral e efectivo pagamento.
Custas do pedido cível em ambas as Instâncias pelas demandante e pela seguradora na proporção dos respectivos decaimentos finais.
Macau, 5 de Dezembro de 2019.
__________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
__________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
__________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



Processo n.º 686/2018 Pág. 21/21