Processo nº 1023/2019 Data: 05.12.2019
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “homicídio por negligência”.
Crime de “condução perigosa de veículo rodoviário”.
Concurso de crimes.
Pena.
SUMÁRIO
1. Os crimes de “homicídio por negligência” cometido no exercício da condução e o de “condução perigosa de veículo rodoviário” estão numa relação de “concurso aparente”.
2. Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art. 65°, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites.
3. A “sinistralidade rodoviária”, ainda que devida à (mera) negligência dos utentes da via pública, tem vindo a adquirir proporções (extremamente) preocupantes, e em face das suas consequências, muitas vezes, duradouras, permanentes, trágicas e até mortais, (como é o caso dos autos), muito fortes são as necessidades de prevenção (geral) deste tipo de ilícito, o que, (e, especialmente, em casos de “culpa grosseira” de um dos intervenientes), reclama (alguma) “dureza na reacção penal”.
4. Com os recursos não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de 1ª Instância em matéria de determinação da pena, devendo esta ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis.
O relator,
______________________
Processo nº 1023/2019
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, arguido com os sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenando pela prática como autor material, e em concurso real, de 1 crime de “homicídio por negligência”, p. e p. pelo art. 134°, n.° 2 do C.P.M. e art. 93°, n.° 3, al. 1), e 94°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, e 1 outro de “condução perigosa de veículo rodoviário”, p. e p. pelo art. 279°, n.° 1, al. a), 281° e 273° do C.P.M, na pena de 1 ano de prisão.
Em cúmulo jurídico, fixou-lhe o T.J.B. a pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, condenando-o, também, na pena acessória de inibição de condução por 2 anos e 3 meses e no pagamento da indemnização civil de MOP$735.304,80; (cfr., fls. 907 a 915 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para, a final, concluir afirmando o que segue:
“1ª Imputa o ora recorrente à decisão recorrida, vícios de erros de direito integrado no fundamento indicado no art°. 400°, n°.1, do Código de Processo Penal – “quaisquer questões de direito de que pudesse conhecer a decisão recorrida” – no que concerne a violação por condenação excesso da pena consagrado nos art.° 40.° e art. 65.° do Código Penal.
2ª O arguido não pode conformar com a a decisão do Tribunal a quo relativamente a pena ora condenada por existir um vício de excesso de pena condenada.
3.ª Código Penal de Macau, no seu art.° 40.° determina que: a aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; a pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa; a medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.
4.ª O art.° 65.° n°.2 do mesmo diploma legal determina que o Tribunal, na medida da pena, atenda todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra do agente, considerando nomeadamente: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifesta no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
5.ª O recorrente entende que as penas parcelares pelo crime de homicídio por negligência grosseira na pena de 3 anos e 3 meses de prisão e pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário na pena de 1 ano de prisão, e em cúmulo na pena única e 3 anos e 9 meses e prisão, condenadas pelo Tribunal a quo na medição da pena excedeu o grau da sua ilicitude.
6.ª Considerando o recorrente dado o facto de se tratar de um delinquente sem registo criminal; o facto de ter confessado os factos que lhe foram imputados desde o início até em ambas vezes em audiências de discussão e julgamento; ter reparado as consequências do crime por ter depositado voluntáriamente a quantia de Mop$500,000; e é filho único que toma cuidado da sua mãe, ambos residentes permanentes em Macau.
7.ª Crendo-se que pelo crime de homicídio por negligência grosseira deveria ser condenado na pena de 2 anos de 8 meses de prisão e pelo crime condução perigosa de veículo rodoviário deveria ser condenado na pena de 8 meses de prisão, em cúmulo deveria ser mais justa para o recorrente a de 3 anos de prisão.
8.ª Prescreve o art.° 48.° do Código Penal “O tribunal pode supender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstância deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
9.ª Perante assim especialmente ter reparado as consequências do crime, as condições da sua vida e particulamente a vida familiar, é adequada à culpa da agente e suficiente para realizar a tutela dos bens jurídicos protegidos, crendo-se que seja suspensa a execução da pena de prisão por um período de 3 anos”; (cfr., fls. 932 a 940).
*
Respondendo, considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 943 a 947).
*
Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público douto Parecer opinando também no sentido da improcedência do recurso; (cfr., fls. 994 a 995).
*
Oportunamente, observou-se o contraditório sobre uma eventual alteração da “qualificação jurídico-penal” da factualidade dada como provada.
*
Nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados no Acórdão recorrido, a fls. 908-v a 909-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como autor material, e em concurso real, da prática de 1 crime de “homicídio por negligência”, p. e p. pelo art. 134°, n.° 2 do C.P.M. e art. 93°, n.° 3, al. 1), e 94°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, e 1 outro de “condução perigosa de veículo rodoviário”, p. e p. pelo art. 279°, n.° 1, al. a), 281° e 273° do C.P.M, na pena de 1 ano de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, na pena acessória de inibição de condução por 2 anos e 3 meses e no pagamento da indemnização a que já se fez referência.
Entende que o Acórdão recorrido padece de “excesso de pena (principal)”, e que a mesma, após redução, lhe devia ser suspensa na sua execução.
Porém – e sendo de se ter como definitivamente fixada a matéria de facto dada como provada, (dada a inexistência de qualquer vício do art. 400°, n.° 2, al. a), b) e c) do C.P.P.M.) – importa ponderar no seguinte.
Em recente Acórdão deste T.S.I. – datado de 24.10.2019, Proc. n.° 90/2018 – e abordando a questão do “concurso real” entre o crime de “ofensa grave à integridade física por negligência grosseira” e o de “condução perigosa agravado pelo resultado”, consignou-se que se devia considerar haver um “concurso aparente”; (neste sentido, cfr., também M. Leal-Henriques in “Anotação e Comentário ao C.P.M.”, vol. VI, C.F.J.J., 2018, pág. 47 e segs.).
Reflectindo sobre o decidido, afigura-se-nos, (atenta também a factualidade, in casu, dada como provada), que adequado é o assim entendido, sendo de se proceder à sua transposição, (com as devidas adaptações), para a situação dos autos.
Nesta conformidade, observado que foi o contraditório sobre a questão, e sendo de se adoptar o entendimento exposto, continuemos, passando-se a decidir da pena a aplicar.
Ao crime de “homicídio por negligência” em questão, (isto é, com “negligência grosseira”), cabe a pena de 2 anos e 7 meses a 5 anos de prisão; (cfr., art. 134°, n.° 2 do C.P.M. e art. 93°, n.° 2 e 3, al. 1) da Lei n.° 3/2007).
Prescreve o art. 40° do C.P.M. que:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
Por sua vez, temos entendido que “Na determinação da medida da pena, adoptou o Código Penal de Macau no seu art.º 65.º, a “Teoria da margem da liberdade”, segundo a qual, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, determinados em função da culpa, intervindo os outros fins das penas dentro destes limites”; (cfr., v.g., os recentes Acs. deste T.S.I. de 11.04.2019, Proc. n.° 289/2019, de 30.05.2019, Proc. n.° 453/2019 e de 10.10.2019, Proc. n.° 861/2019).
Ora, a “sinistralidade rodoviária”, ainda que devida à (mera) negligência dos utentes da via pública, tem vindo a adquirir proporções (extremamente) preocupantes, e em face das suas consequências, muitas vezes, duradouras, permanentes, trágicas e até mortais, (como é o caso dos autos), muito fortes são as necessidades de prevenção (geral) deste tipo de ilícito, o que, em nossa opinião, (e, especialmente, em casos de “culpa grosseira” de um dos intervenientes), reclama (alguma) “dureza na reacção penal”.
Por sua vez, temos vindo a entender que com os recursos não se visa eliminar a margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de 1ª Instância em matéria de determinação da pena, e que esta deve ser confirmada se verificado estiver que no seu doseamento foram observados os critérios legais atendíveis; (cfr., v.g., os Acs. do Vdo T.U.I. de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014 e de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015).
Como igualmente decidiu o Tribunal da Relação de Évora:
“I - Também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, pelo que o tribunal de recurso deve intervir na pena (alterando-a) apenas e só quando detectar incorrecções ou distorções no processo de determinação da sanção.
II - Por isso, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de apreciação livre reconhecida ao tribunal de 1ª instância nesse âmbito.
III - Revelando-se, pela sentença, a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo e a ponderação devida dos critérios legalmente atendíveis, justifica-se a confirmação da pena proferida”; (cfr., o Ac. de 22.04.2014, Proc. n.° 291/13, in “www.dgsi.pt”, aqui citado como mera referência, e Acórdão do ora relator de 09.05.2019, Proc. n.° 403/2019, de 12.09.2019, Proc. n.° 698/2019 e de 10.10.2019, Proc. n.° 701/2019).
No mesmo sentido se decidiu também que: “Não havendo injustiça notória na medida da pena achada pelo Tribunal a quo ao arguido recorrente, é de respeitar a respectiva decisão judicial ora recorrida”; (cfr., o Ac. deste T.S.I. de 24.11.2016, Proc. n.° 817/2016).
E, como se tem igualmente considerado:
“O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
A intervenção correctiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Lisboa de 24.07.2017, Proc. n.° 17/16).
“O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detectar incorrecções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto da pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada”; (cfr., o Ac. da Rel. de Guimarães de 25.09.2017, Proc. n.° 275/16).
Nesta conformidade, ponderando na factualidade dada como provada, na atrás referida moldura penal, e atentos os critérios para a determinação da medida concreta da pena, (cfr., art. 40° e 65° do C.P.M.), afigura-se-nos que excessiva não se apresenta a pena de 3 anos e 3 meses de prisão pelo T.J.B. fixada para o crime em questão, (afastada estando assim a pretendida suspensão da sua execução; cfr, art. 48° do C.P.M.).
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao presente recurso, ficando o ora recorrente condenado pela prática de 1 crime de “homicídio por negligência”, p. e p. pelo art. 134°, n.° 2 do C.P.M. e art. 93°, n.° 3, al. 1), e 94°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão e na pena acessória de inibição de condução pelo período de 2 anos e 3 meses, (mantendo-se a indemnização arbitrada pelo T.J.B.).
Pelo seu decaimento, pagará o arguido a taxa de justiça de 4 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, remetam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 05 de Dezembro de 2019
_________________________
José Maria Dias Azedo
_________________________
Tam Hio Wa
_________________________
Chan Kuong Seng
(afigurando-se-me que não tendo o arguido nem o M.P. recorrido da decisão do Tribunal recorrido de enquadramento jurídico-penal dos factos provados, não seria de alterar oficiosamente essa decisão).
Proc. 1023/2019 Pág. 16
Proc. 1023/2019 Pág. 15