Processo n.º 999/2019 Data do acórdão: 2020-1-9
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– regra da experiência da vida humana
– reenvio do processo para novo julgamento
– declarações do ofendido para memória futura
– inexistência nos autos das declarações dos arguidos
– usura para jogo com exigência ou aceitação de documento
– cláusula sobre a obrigatoriedade da entrega do documento
– art.os 13.o e 14.o da Lei n.o 8/96/M
S U M Á R I O
1. A inexistência nos autos das declarações dos quatro arguidos sobre a matéria fáctica, acusada pelo Ministério Público, de exigência do documento de identificação do ofendido como garantia do dinheiro emprestado para este jogar em estabelecimento de casino não pode relevar como contraprova das declarações prestadas pelo jogador ofendido para memória futura de acordo com as quais o seu documento de identificação foi tirado pelo segundo dos arguidos para garantia do dinheiro emprestado.
2. No caso, a já comprovação efectiva da cláusula contratual de obrigatoriedade de entrega do documento de identificação pelo ofendido para garantia do dinheiro emprestado limita a livre convicção do julgador na apreciação da prova no atinente à questão de exigência de documento, porquanto a hipótese de não execução, por banda da parte mutuante, dessa cláusula é que contraria patentemente as regras da experiência da vida humana, visto que se não fosse executada essa cláusula os interesses da própria parte mutuante ficariam naturalmente prejudicados. Portanto, é razoável e congruente, conforme as regras da experiência da vida humana, a aludida versão fáctica do jogador ofendido no ponto em causa.
3. Há, assim, erro notório na apreciação da prova por parte do tribunal recorrido na apreciação da prova respeitante a todos os crimes de usura para jogo com exigência ou aceitação de documento como garantia, por que vinham acusados os arguidos nos termos previstos nos art.os 13.o e 14.o da Lei n.o 8/96/M, o que justifica o reenvio do objecto do processo sobre esses crimes para novo julgamento por um novo tribunal colectivo (cfr. o art.o 418.o, n.os 1 e 3, do Código de Processo Penal).
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 999/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: 1.a arguida A (A)
2.o arguido B (B)
3.o arguido C (C)
4.o arguido D (D)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 316 a 328 do Processo Comum Colectivo n.° CR3-18-0286-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte em que se julgou não verificada, em relação aos quatro arguidos desse ora subjacente processo penal, chamados A, B, C e D, todos eles acusados da prática, em co-autoria material, do tipo legal de usura para jogo, a circunstância fáctica, prevista na norma incriminadora do art.o 14.o da Lei n.o 8/96/M, de 22 de Julho, de exigência de documento de identificação do devedor para servir de garantia, veio a Digna Delegada do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a condenação dos ditos quatro arguidos pelo referido tipo-de-ilícito de usura para jogo com exigência de documento como garantia pelo qual tinham sido acusados, com fundamento nuclear na verificação do vício de erro notório na apreciação da prova cometido pelo Tribunal sentenciador (cfr. em detalhes, a motivação do recurso apresentada a fls. 339 a 344v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, responderam os quatro arguidos (na motivação una deles a fls. 358 a 367 dos autos), preconizando a improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer (a fls. 376 a 377v), pugnando pelo reenvio do processo para novo julgamento com fundamento na constatação efectiva, no acórdão ora recorrido, do vício de erro notório na apreciação da prova, assacado na motivação do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. Os quatro arguidos do presente processo penal foram julgados em primeira instância à sua revelia como tal consentida pelos próprios, e foram dadas por lidas na audiência de julgamento realizada perante o Tribunal Colectivo ora recorrido as declarações então prestadas pelo ofendido para memória futura e registadas a fls. 127 a 128 dos autos (cfr. o teor da acta dessa audiência de julgamento, lavrada a fls. 312 a 314 dos autos).
2. Em sede das suas declarações para memória futura, o ofendido disse que o arguido B (ou seja, 2.o arguido) ficou sempre com o documento de identificação do próprio ofendido (cfr. o teor das linhas 2 a 3 da fl. 128 dos autos).
3. O acórdão recorrido encontrou-se proferido a fls. 316 a 328 dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
4. Da leitura do ponto 3 do facto 2 provado, do ponto 3 do facto 7 provado, da parte final da 3.a linha do teor do facto 11 provado, e da parte final do teor do facto 14 provado, sabe-se que o Tribunal recorrido deu por provada a seguinte cláusula de todos os quatro empréstimos em questão nos autos: “o ofendido tem que entregar o seu bilhete de identidade de residente da China como garantia do dinheiro emprestado”.
5. O mesmo Tribunal julgou por não provada a retenção, por parte dos quatro arguidos, do documento de identificação do ofendido como garantia do dinheiro emprestado (cfr. o primeiro facto descrito como não provado, na página 13 do texto do aresto recorrido, a fl. 322 dos autos).
6. De acordo com a fundamentação probatória do aresto impugnado, o Tribunal recorrido acabou por decidir em dar por não provada, por força do princípio de in dubio pro reo, a acusada circunstância fáctica da exigência, por parte dos quatros arguidos, do documento de identificação do jogador ofendido, porque, no entender desse Tribunal, considerando que nos autos não havia declarações dos quatros arguidos sobre essa matéria, que não foi encontrado pelo pessoal policial no corpo do 2.o arguido, no momento em que este ficou detido para efeitos de investigação, o documento de identificação do ofendido (apesar de o mesmo ofendido ter referido que foi este 2.o arguido quem lhe tirou o documento de identificação aquando da concessão do 2.o empréstimo para jogos), e que nem foi encontrado no corpo dos restantes arguidos o documento de identificação em causa, ao que acrescendo a falta de elementos probatórios a revelar a transferência do documento de identificação do ofendido para outro sítio, as ditas declarações do ofendido passam a ser uma prova solitária, e como tal insuficiente (cfr. o primeiro parágrafo da página 16 do texto do acórdão recorrido, a fl. 323v dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, vê-se que a Digna Delegada do Procurador ora recorrente apontou à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova (aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP)), na parte respeitante à aí decidida inverificação da circunstância fáctica de exigência, por parte dos quatro arguidos, de documento de identificação do devedor para servir de garantia.
Sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso, da leitura da fundamentação probatória que o Tribunal recorrido teceu para a sua decisão sobre a matéria de facto controvertida, sabe-se que o Tribunal a quo entendeu que não se podia dar por provada a acusada circunstância fáctica da exigência, por parte dos quatros arguidos, do documento de identificação do jogador ofendido, porque, no entender desse Tribunal, considerando que nos autos não havia declarações dos quatros arguidos sobre essa matéria, que não foi encontrado pelo pessoal policial no corpo do 2.o arguido, no momento em que este ficou detido para efeitos de investigação, o documento de identificação do ofendido (apesar de o mesmo ofendido ter referido que foi este 2.o arguido quem lhe tirou o documento de identificação aquando da concessão do 2.o empréstimo para jogos), e que nem foi encontrado no corpo dos restantes arguidos o documento de identificação em causa, ao que acrescendo a falta de elementos probatórios a revelar a transferência do documento de identificação do ofendido para outro sítio, as declarações do ofendido passam a ser uma prova solitária, e como tal insuficiente, pelo que por força do princípio de in dubio pro reo, há que julgar por não provada tal circunstância fáctica da exigência do documento.
Para o presente Tribunal ad quem, desde já, a inexistência nos autos das declarações dos quatro arguidos sobre a matéria de exigência de documento de identificação do ofendido como garantia do dinheiro emprestado para este jogar não pode relevar como contraprova das declarações prestadas pelo ofendido para memória futura.
Entretanto, o facto de não ter sido encontrado no corpo do 2.o arguido B (aquando da detenção policial deste para investigação) o documento de identificação do ofendido já revela para contraprovar as declarações do ofendido segundo as quais foi este 2.o arguido quem ficou sempre com o documento de identificação em causa. Até qui, parece ficou neutralizada efectivamente a força probatória das referidas declarações do ofendido, no ponto concreto da questão de exigência do documento de identificação.
Contudo, no caso dos autos, há um pormenor ainda: o Tribunal recorrido acabou por dar por provada a seguinte cláusula em todos os quatro empréstimos em questão: “o ofendido tem que entregar o seu bilhete de identidade de residente da China como garantia do dinheiro emprestado”. Ora, a comprovação efectiva dessa cláusula dá força à versão fáctica dita pelo ofendido segundo a qual o seu documento de identificação foi sempre retido pelo 2.o arguido.
Como de acordo com essa versão fáctica do ofendido quem se encarregou da retenção do documento foi o 2.o arguido, a não descoberta do documento no corpo dos restantes três co-arguidos já não pode relevar para afastar a versão fáctica do ofendido.
E quid juris quanto à não descoberta do documento no corpo do 2.o arguido na altura da detenção policial deste para efeitos de investigação?
Como se sabe, essa circunstância de o documento não estar no corpo do 2.o arguido não afasta necessariamente a possibilidade fáctica de o documento ter sido retido pelo 2.o arguido em algures. Por isso, se não houvesse a efectiva constatação daquela cláusula contratual sobre a obrigatoriedade de o ofendido entregar o seu bilhete de identidade de residente da China como garantia do dinheiro emprestado, tudo poderia cair, em princípio, no campo da livre convicção do julgador, sob aval do art.o 114.o do CPP.
Quer dizer, no caso, a constatação efectiva daquela cláusula de obrigatoriedade de entrega do documento de identificação pelo ofendido para garantia do dinheiro emprestado limita já a livre convicção do julgador. Ou seja, a hipótese de não execução, por banda da parte mutuante, dessa cláusula é que contraria patentemente as regras da experiência da vida humana, visto que se não fosse executada essa cláusula (a qual, compreensivelmente, serve para proteger a posição da parte mutuante), os interesses da própria parte mutuante ficariam naturalmente prejudicados.
Portanto, é razoável e congruente, conforme as regras da experiência da vida humana, a aludida versão fáctica declarada pelo ofendido para efeitos de memória futura.
Há, assim, erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido na apreciação da prova respeitante a todos os crimes de usura para jogo com exigência ou aceitação de documento como garantia, por que vinham acusados os quatro arguidos nos termos previstos nos art.os 13.o e 14.o da Lei n.o 8/96/M, o que justifica o reenvio do objecto do processo sobre esses crimes para novo julgamento no Tribunal Judicial de Base, por um novo Tribunal Colectivo (cfr. o art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP).
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar provido o recurso do Ministério Público, reenviando o objecto do processo para novo julgamento na parte respeitante a todos os crimes de usura para jogo com exigência ou aceitação de documento como garantia, pelos quais vinham acusados os quatro arguidos.
Custas do recurso pelos quatro arguidos, com uma UC de taxa de justiça individual.
Cada um dos arguidos pagará trezentas patacas de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa, por esta ter minutado a resposta deles ao recurso.
Macau, 9 de Janeiro de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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