Processo nº 581/2018
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 20 de Fevereiro de 2020
ASSUNTO:
- Caducidade da concessão do terreno
- Falta de fundamentação
- Abuso de direito
- Princípios da imparcialidade, da igualdade, da justiça e da boa-fé
SUMÁRIO:
- O termo do prazo da concessão provisória sem esta ter sido convertida em definitiva determina inevitavelmente a declaração da caducidade da concessão, que consiste numa actividade vinculada da Administração.
- A fundamentação é um conceito relativo que depende do tipo legal do acto, dos seus termos e das circunstâncias em que foi proferido, devendo dar a conhecer ao seu destinatário as razões de facto e de direito em que se baseou o seu autor para decidir nesse sentido e não noutro, não se podendo abstrair da situação específica daquele e da sua possibilidade, face às circunstâncias pessoais concretas, de se aperceber ou de apreender as referidas razões, mormente que intervém no procedimento administrativo impulsionando o itinerário cognoscitivo da autoridade decidente.
- O abuso de direito, para vingar no recurso contencioso, impõe a prova de um exercício ilícito de direito, implica a demonstração de que o titular do direito o exerceu em termos clamorosamente ofensivos da justiça e que excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.334º, do CC). E não preenche estes requisitos a actuação administrativa que se limita, como no caso vertente, a cumprir as cláusulas do contrato e a lei e a acatar as normas imperativas de direito público sobre o regime legal das concessões.
- Os princípios da imparcialidade, da igualdade, da justiça e da boa-fé não são operantes nas actividades administrativas vinculadas.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 581/2018
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 20 de Fevereiro de 2020
Recorrente: Sociedade de Investimento Imobiliário Pun Keng Van, S.A.
Entidade Recorrida: O Chefe do Executivo da RAEM
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Sociedade de Investimento Imobiliário Pun Keng Van, S.A., melhor identificada nos autos, vem interpor o presente Recurso Contencioso contra o despacho do Chefe do Executivo de 03/05/2018, que declarou a caducidade da concessão do terreno com a área de 3,449m2, designado por lote 9 da Zona A do empreendimento denominado “Fecho da Baía da Praia Grande”, situado na península de Macau, concluíndo que:
- Vem o presente recurso interposto do Despacho do Chefe do Executivo, de 3 de Maio de 2018, tornado público pelo Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 19/2018, publicado no Boletim Oficial n.º 20, II Série, de 16 de Maio de 2018, que declarou a caducidade da concessão do terreno com a área de 3 449 m2, designado por lote 9 da zona A do empreendimento denominado “Fecho da Baía da Praia Grande”, situado na península de Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 22 298, a fls. 84 do livro B8K (o “Terreno”);
- Como adiante melhor se demonstrará a decisão contida no acto recorrido é uma decisão inesperada e contrária a todas as indicações recebidas ao longo dos anos da Administração pela Recorrente;
- Ainda assim, a Entidade Recorrida preteriu a formalidade essencial da audiência pelo que o procedimento administrativo está ferido de vício de forma por preterição das formalidades essenciais, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 93.º do CPA, o que determina a ilegalidade do acto e a sua anulabilidade nos termos do disposto no artigo 124.º do referido diploma legal;
- A Recorrente é titular de uma concessão por arrendamento do Terreno, destinado à construção de um edifício, em regime de propriedade horizontal, destinado a escritórios e estacionamento, a qual originalmente concedida à Sociedade de Empreendimentos Nam Van, S.A.R.L. (“Nam Van”) por escritura de 30 de Julho de 1991 e sucessivamente alterada em vários Despachos.
- Pelo Despacho 97/SATOP/94, do Secretário-Adjunto para os Transportes e Obras Públicas, publicado no Boletim Oficial n.º 30, II Série, de 27 de Julho de 1994, foi autorizada a transmissão, a favor da Recorrente, dos direitos resultantes da concessão por arrendamento do Terreno;
- A declaração de caducidade do Terreno de que ora se recorre foi despoletada pela Proposta n.º 364/DSODEP/2016, de 8 de Setembro (fls. 4 do Proc. 58/2016 do PA da CT) que na sua descrição de factos omite outros que não pode ignorar e que deturpam o relato que faz;
- De acordo com o contrato de concessão, o arrendamento do Terreno era válido por 25 anos, até 31 de Julho de 2016, podendo ser sucessivamente renovado até 19 de Dezembro de 2049;
- A contagem dos 25 anos iniciou-se em 1991, embora o terreno só tenha sido concedido em 1994, e em qualquer das datas o Terreno não existia porquanto era “terreno a conquistar ao mar”;
- Ainda assim, a a Nam Van e a Recorrente passaram os sete anos seguintes a lotear os terrenos da Zona A e a construir infraestruturas que constituiam os encargos especiais do contrato para a Zona A, em particular os arruamentos de toda área e zonas limítrofes, redes de circulação rodoviária, circulações pedonais, estacionamentos públicos, arranjos paisagísticos, arranjos exteriores, etc.
- Os projectos iniciais da Nam Van, aprovados pela Administração, ficaram parados em virtude da crise que se abateu sob o mercado da construção e o enorme esforço financeiro de construção que havia feito com todos os encargos e infraestruturas do contrato de concessão de terras; os terrenos e áreas concedidos abrangiam toda a área desde o actual NAPE até à Torre de Macau;
- O fim dos trabalhos de infraestruturas e do loteamento do Terreno, já pela Recorrente, coincide com a recessão imobiliária que se fez sentir, uma das maiores crises imobiliárias de que há memória em Macau e que se veio a agravar com o decorrer dos anos seguintes que determinou um aumento dos custos de construção superior a 40%;
- A repercussão desta crise nas dificuldades de construção e desenvolvimento dos projectos, em concreto no cumprimento dos prazos de aproveito que terminavam naqueles anos, como era o caso do Terreno, foi reconhecida pela Administração conforme acima se mencionou na informação que serviu de base à prorrogação do prazo de aproveitamento, que veio, a final ser fixado para Agosto de 2008;
- Face a este quadro de crise e à saturação do mercado imobiliário para comércio, a Recorrente abordou a Administração no sentido de saber se a finalidade da sua concessão era alterável para habitação;
- A Administração confirmou a possibilidade de alteração da finalidade e, logo em 2004, a Recorrente apresentou o estudo prévio T-4685, de 3 de Setembro de 2004, com alteração de finalidade do Terreno de comércio para habitação, da área do lote para 4.556 m2 e altura máxima para 190 m NMM, considerado passível de aprovação (ponto 9.1.1 da Proposta 364/DSODEP/2016, fls. 7 do PA da CT);
- Por despacho de 12 de Novembro de 2004, o Secretário para os Transportes e Obras Públicas aprovou a alteração de finalidade de escritório para habitação, (fls.36 do PA da DSSOPT);
- Em 29 de Novembro de 2004 foi emitida a Planta de Alinhamento Oficial n.º 2004A051 (fls.39 do PA da DSSOPT), com finalidade para habitação, com 55,800 m2 de ABC permitida, uma cota altimétrica de 190 m NMM e a dispensa do cumprimento da Portaria 69/91/M, de 18 de Abril de 1991;
- Os documentos subsequentes entregues pela Reqcorrente em 2007 (o T-4421, de 28/6/2007 e o T-5582, de 27/8/2007, foram igualmente considerados passíveis de aprovação [vide ponto 9.1.1 da Proposta 364/DSODEP/2016 (fls. 7 do PA da CT)];
- A Recorrente foi notificada do Ofício 180/DURDEP/2008, de 11 de Janeiro de 2008, informando que o último projecto apresentado pela Recorrente é passível de aprovação (fls. 82 do PA da DSSOPT);
- Em 31 de Janeiro de 2008 a DSSOPT emitiu a licença de obra n.º 51/2008 (a fls. 83 do PA da DSSSOPT) para “obra de demolição das caves existentes e entivações provisórias e escavações, obra de fundação por estaca”, válida de 31/01/2008 a 20/06/2008;
- A Recorrente iniciou os trabalhos de demolição da cave original e, depois é surpreendida ao ser notificada para supender a obra pelo Ofício n.º 3001/DURDEP/2008, de 25 de Março de 2008 (a fls. 70 do PA da CT);
- De acordo com este ofício, a paragem da obra prende-se com razões de segurança dos operadores e do público em geral e circunstâncias relacionadas com a fiscalização da obra, o que é contrário ao descrito no ponto 6. da Proposta n.º 364/DSODEP/2016, de 8 de Setembro (fls. 6 do PA da CT): pois a) a obra não foi mandada parar por estar a ser executada sem autorização da administração e b) na licença de obra n.º 51/2008 não consta que a Administração só autorizou a preparação da obra e não a execução da obra, desde logo porque não existem licenças para preparações de obras mas para execuções de obra e o descritivo da licença é bem explicíto;
- Não pode a Administração vir afirmar, sem manifesta má-fé, no início deste procedimento, que tudo começou porque a Recorrente executou uma obra sem autorização porque o contrato de concessão do Terreno ainda não tinha sido revisto, como aí afirma;
- A obra da Recorrente foi iniciada tendo por base um projecto que submeteu, autorizado pelo STOP para alterar a finalidade do aproveitamento, tendo na sequência dessa autorização sido emitida a Planta de Alinhamento Oficial n.º 2004A051 e a licença de obra n.º 58/2001;
- A obra foi mandada parar antes de ter expirado o prazo de aproveitamento;
- É à Administração que cabe rever o contrato de concessão do Terreno, não tendo a Recorrente qualquer outra escolha que não seja a de aceitar (ou não) a minuta do contrato quando esta lhe for enviada;
- Além da má-fé já invocada, entende a Recorrente há erro de fundamentação do acto recorrido, que aqui teve início, e erro nos pressupostos de facto, assim como manifesto um abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto a Administração encaminha a Recorrente para uma certa actuação, com aprovações, emissão de plantas e licenças de obras, espera que esta inicie a obra, para depois a embargar, vindo mais tarde alegar, como o faz nesta Proposta, que a obra estava a ser realizada sem autorização uma vez que o contrato de concessão não tinha sido revisto;
- Apesar de todos os esforços da Recorrente, a Administração não voltou a emitir a licença de obra, nem reviu o contrato de concessão do Terreno, apesar das promessas;
- Com efeito, logo após a paragem da obra, os representantes da DSSOPT propuseram à Recorrente apresentar nova documentação a designar por “alteração de ante-projecto” que deveria recuar o edifício do alinhamento do lago, condições que foram impostas, não obstante não resultarem de nenhum comportamento da Recorrente e não obstante o prejuízo de tempo e de custo que iriam trazer à Recorrente e que resultavam apenas de reclamações de moradores de prédios vizinhos;
- A Recorrente não teve outra alternativa que não a de aceitar as condições e, como tal, apresentou novo estudo prévio em 19 de Janeiro de 2009, solicitando a emissão de uma nova Planta de Alinhamento Oficial, o que veio a acontecer em 9 de Julho de 2009, tendo a a DSSOPT emitido uma nova Planta de Alinhamento Oficial n.º 2004A51 (fls. 187 do PA da DSSOPT), da qual se constata que o desenho do edifício recuou em relação ao desenho original e previamente aprovado pela DSSOPT;
- Nesta Planta de Alinhamento Oficial de 2009 mantêm-se a finalidade de habitação, a altura máxima de 190 NMM, sempre acima da altura inicial autorizada de 112,3 m NMM constante do contrato inicial, e a ABC de 55,800 m2 e já não menciona a dispensa do cumprimento da Portaria 69/91/M, que aprovou o Plano de Reordenamento da Zona da Baía da Praia Grande, que entretanto havia sido revogada pelo Despacho do Chefe do Executivo n.º 248/2006, em 21 Agosto de 2006;
- Os representantes da DSSOPT voltam a solicitar novas alterações ao projecto, que a Recorrente cumpre, em 25 de Outubro de 2010, e à qual já não obtém resposta;
- Do Parecer n.º 121/2016 da Comissão de Terras de 13 de Outubro de 2016 (a fls.158 do PA da CT) pode ler-se: “19. Apesar da obtenção dos pareceres técnicos emitidos pelas entidades competentes sobre o referido estudo prévio, o respectivo procedimento de apreciação e aprovação não foi concluído e o procedimento de revisão da concessão também não foi concretizado.”
- Em 2008, quando a Administração mandou parar a obra, a Recorrente tinha ainda 8 anos para completar o projecto antes de atingir o limite do prazo de arrendamento e havia duas práticas reiteradas e inegáveis da administração com as quais legitimamente contava: (i) a aprovação dos projectos fora do prazo do aproveitamento, ou eja, não era o decurso do prazo de aproveitamento que impedia a aprovação do projecto e a realização das obras de construção, e (ii) e a renovação sucessiva da concessão após o decurso do prazo de arrendamento;
- Em 7 de Julho de 2016 a Recorrente dirigiu uma carta ao Chefe do Executivo (fls. 98 do PA da CT) contendo os seguintes pedidos: (i) tomada de uma decisão breve, autorizando o projecto submetido pela Recorrente, com compensação de tempo não inferior a 5 anos, de forma a proteger o interesse legítimo da Recorrente (ii) suspensão do prazo de aproveitamento do Terrenos e de prorrogação dos mesmos por cinco anos (contados a partir do fim da suspensão), bem como a renovação da concessão provisória por 10 anos; ou (iii) nova concessão do Terreno, com dispensa de concurso público, a favor da Recorrente, fixando um prazo de arrendamento de 25 anos, com área igual à constante do último estudo prévio/projecto de arquitectura aprovado;
- Em 16 de Maio de 2018, viu declarada a caducidade do arrendamento do Terreno, acto de que ora se recorre;
- O acto recorrido assenta num único argumento jurídico: a concessão é provisória e “não pode ser renovada, de acordo com o previsto no n.º 1 do artigo 48.º da Lei 10/2013 (Lei de Terras), aplicável por força dos seus artigos 212.º e 215.º”. Deste modo a concessão encontra-se caducada pelo termo do respectivo prazo de arrendamento (caducidade preclusiva) (...)” (parecer do SATOP de 4 de Novembro de 2016); o Parecer n.º 121/2016 do Proc. 58/2016 da Comissão, referido neste parecer acrescenta apenas qua a declaração de caducidade dever ser emitida nos termos do artigo 167.º da Lei de Terras;
- A Recorrente não ignora a jurisprudência dos ilustres Tribunais superiores da RAEM mas, salvo o devido respeito, que é muito, não concorda nem se conforma com esta interpretação e aplicação da lei à presente situação;
- Desde logo porque se trata de uma relação contratual, administrativa, regulada em lei especial – a Lei de Terras, seja a antiga, seja a nova – a qual elenca detalhadamente as obrigações e prerrogativas da administração e das concessionárias e trata exaustivamente a forma de terminar as concessões, entre elas a caducidade (artigos 52.º e 166.º);
- A caducidade a declarar pela Entidade Recorrida tem que necessariamente caber dentro das normas previstas da lei de terras, na forma prevista na lei de terras ou nalguma das normas subsidiárias aplicáveis nos termos da própria Lei 10/2013, que determina no artigo 220.º;
- Mas a entidade recorrida não fundamenta a sua decisão nem no artigo artigos 52.º, nem no artigo 166.º da Lei de Terras, nem em nenhum dos diplomas subsididiariamente aplicáveis nos termos do seu artigo 220.º, porquanto não cita nenhum deles, o que desde já redunda num erro na aplicação da lei e erro de fundamentação do acto recorrido;
- E não poderia deitar mão do artigo 166.º da Lei de Terras que não pode ser aplicado às concessões pretéritas, porquanto não houve culpa da Recorrente, o que a própria Administração não nega ou tão pouco invoca, e este preceito pressupõe a inércia da concessionária do terreno;
- E o artigo 215.º da Lei 10/2013 dispõe que esta lei se aplica às concessões provisórias anteriores à sua entrada em vigor – o caso do Terreno – com ressalvas, entre elas a da alínea 3), isto é, “quando tenha expirado o prazo anteriormente fixado para o aproveitamento do terreno e este não tenha sido realizado por culpa do concessionário, aplica-se o disposto no n.º 3 do artigo 104.º e no artigo 166.º.”
- Ora, como aqui demonstrámos, num contrato de 25 anos, a concessionária passou 7 anos a lotear o próprio terreno, que foi conquistado ao mar, e quando se encontrava a construir, com projecto aprovado, a Administração suspendeu a execução e não voltou a encontrar uma solução para o projecto da Recorrente pelo restante tempo de vigência do contrato de concessão do Terreno! E vem agora declarar a caducidade de um tempo que não deixou correr!
- A Recorrente só não concluiu o aproveitamento porque a Administração lhe embargou a obra e não voltou a aprovar mais nenhum projecto seu, independentemente destes projectos conterem todos os requisitos exigidos pela Administração!
- A Administração (i) concedeu em 1994 um terreno por um prazo de 25 anos que começou a ser contado em 1991, (ii) terreno esse que só existiu, de facto, e no qual só se pôde começar o aproveitamento depois de sete anos de obras de loteamento e infraestrutura e (iii) acabou por subtrair os últimos 8 anos de arredamento ao impedir a concretização do aproveitamento pela forma acima descrita;
- O Terreno nunca teve 25 anos de concessão, ao contrário do que a Entidade Recorrida afirma no ponto 2 do douto Parecer do SATOP de 4 de Novembro de 2016 e nos pontos 2 e 22 do Parecer 121/2016 da Comissão de Terras de 13 de Outubro de 2016, o que desde já se identifica como erro nos pressupostos de facto;
- Por outro lado, o artigo 52.º não pode ser aplicado sem a devida avaliação do comportamento da Administração, porquanto na relação entre a Administração e o particular não pode haver lugar a uma verificação de uma caducidade-preclusiva, automática.
- No entender da Recorrente, e de alguma doutrina, na relação entre a Administração e o particular não há lugar à verificação de uma caducidade-preclusiva, automática, trata-se, pelo contrário, de uma actividade administrativa, em que a Administração está vinculada, sim, mas a verificar e avaliar as causas da caducidade;
- A caducidade só pode ser declarada se o incumprimento for imputável ao particular, uma vez que tem sempre a natureza sancionatória, é o que decorre da leitura sistemática da Lei de Terras, na qual os preceitos remetem para essa apreciação, em contraste absoluto com uma interpretação que se cinge à letra da lei, em violação do artigo 8.º do Código Civil;
- Na situação em análise, não pode ser declarada a caducidade porquanto a Recorrente não só não a causou como, pelo contrário, o decurso do tempo que penaliza o incumprimento é causado pela própria Administração!
- O que ofende a ordem jurídica é o acto recorrido e a ilegalidade da actuação da Entidade Recorrida, e é nesta sede que tem de ser invalidado, independentemente de qualquer responsabilidade que possa vir a ser assacada posteriormente à Entidade Recorrida, sendo certo que uma accção de indemnização não é resposta cabal ao comportamento da Administração;
- a Administração reconheceu expressamente à Recorrente direitos relativos à alteração de finalidade para habitação, a altura autorizada (190 m NMM) e à ABC de 55,800 m2, bem como à dispensa de cumprimento dos requisitos da Portaria 69/99/M, e comprometeu-se várias vezes a rever o contrato de concessão do Terreno, em particular através das autorizações do STOP, nos estudos que considerou passíveis de aprovação e na licença de obra emitida;
- autorizou e licenciou a execução de obras com base nestes direitos reconhecidos e, sem que nada o fizesse prever, determinou a paragem das obras que estavam de acordo com os direitos assim reconhecidos e, deste modo, provocou o efeito jurídico impeditivo da caducidade, previsto no artigo 323.º, n.º 2 do Código Civil, o que a imode de agora vir declarar a caducidade pelo decurso do tempo;
- No próprio acto de suspensão, a Administração reconhece o direito-dever das concessionárias em desenvolverem os terrenos da Zona C, direitos que lhes advém dos contratos de concessão e, não obstante, num acto discricionário, entende, simultaneamente suspender esse desenvolvimento, provocando o efeito impeditivo da caducidade, previsto artigo 323.º, n.º 2 do Código Civil, o que impossibilita agora de vir declarar a caducidade pelo acto recorrido;
- Com a sua conduta, a Administração violou o princípio da proporcionalidade, da boa-fé, da decisão e da eficiência.
- Na carta de 7 de Julho de 2016, a Recorrente requereu ao Chefe do Executivo (fls. 206 do Vol. 1 do PA), entre outros pedidos, uma nova concessão do Terreno por mais 25 anos, dos mesmos lotes de terreno ou outros lotes com área equivalente à dos projectos por si apresentados, com dispensa de concurso público, pedido que não mereceu qualquer resposta da Administração;
- Não obstante, em semelhantes circunstâncias esta solução foi várias vezes, usada em outras concessões de terrenos ao longo dos anos, nas quais o aproveitamento não se completou antes do fim do prazo do arrendamento, sendo certo que nestas situações, acima elencadas, a Administração aprecia a culpa para justificar, precisamente, a nova concessão, o que afirma não puder fazer no caso da Recorrente;
- As situações identificadas pela Recorrente são juridicamente legítimas, não se lhes reconhece nenhum vício ou ilegalidade, sendo apenas exemplos entre outros e semelhante solução podia ter sido encontrada para os lotes da Baía da Praia Grande;
- Ao declarar a caducidade sem conceder nova concessão sobre o Terreno, a Administração viola o princípio da igualdade uma vez adoptou comportamento diferente noutras concessões, o que resultou num tratamento desigual, com prejuízo relevante para a Recorrente, proibido nos termos do artigo 5.º do CPA, e em violação do artigo 25.º da Lei Básica;
- Muitos dos considerandos dos despachos mencionados a este propósito podiam aplicar-se à situação da Recorrente mas a Entidade Recorrida entendeu aplicar critérios diferentes para situações idênticas, apreciando a culpa, e verificando a sua falta noutras concessões, para agora entender, no presente caso, que a caducidade opera independentemente da falta de culpa da Recorrente;
- A actuação da Administração, a sua escolha dos critérios, e a aplicação da lei em toda esta situação constitui claro exercício de abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, proibido nos termos do artigo 326.º do Código Civil;
- Por tudo o acima exposto, o acto recorrido incorre em vício de forma, por falta de falta de audiência prévia e falta de fundamentação (também o artigo 115.º/2 CPA), nos termos previstos no artigo 21.º, n.º 1, al. c) do CPAC e viola a lei, nos termos previstos no artigo 21.º, n.º 1, al. d), do CPAC, e, em particular:
- lesa direitos e interesses legalmente protegidos;
- incorre no erro de interpretação e aplicação de lei;
- viola os princípios da igualdade, boa-fé, na sua vertente da tutela da confiança, da decisão e da eficiência da Administração, previstos nos artigos 5.º, 8.º, 11.º e 12.º do CPA;
- padece de erro manifesto nos pressupostos de facto e de direito, incluindo erro na fundamentação;
- manifesta total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários;
- viola o artigo 323.º, n.º 2 e o artigo 326.º do Código Civil; e
devendo, por isso, ser anulado de acordo com o artigo 124.º do CPA.
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Regularmente citada, a Entidade Recorrida contestou nos termos constantes a fls. 143 a 158 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pelo não provimento do recurso.
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Por despachos do Relator de 22/11/2018, foi indeferida a requerida inquirição de testemunhas.
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A Recorrente reclamou para a Conferência do despacho acima em referência, bem como da sua nulidade.
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Devidamente notificada da reclamação, a Entidade Recorrida pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
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Tanto a Recorrente como a Entidade Recorrida ambas apresentaram as alegações facultativas, mantendo, no essencial, as posições já tomadas, respectivamente, na petição inicial e na contestação.
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O Mº Pº emitiu o parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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II – Pressupostos Processuais
O Tribunal é o competente.
As partes possuem personalidade e capacidade judiciárias.
Mostram-se regularmente patrocinadas.
Não existem excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – Factos
É assente a seguinte factualidade com interesse à boa decisão da causa face aos elementos probatórios existentes nos autos:
1. Por escritura pública de 30 de Julho de 1991, exarada a fls. 4 e seguintes do livro 285 da Direcção dos Serviços de Finanças, celebrada em conformidade com o Despacho n.º 203/GM/89, publicado no 4.º Suplemento ao Boletim Oficial de Macau n.º 52, de 29 de Dezembro de 1989, e com as alterações introduzidas pelos Despacho n.º 73/SATOP/92, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 27, de 06 de Julho de 1992, Despacho n.º 57/SATOP/93, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 17, de 26 de Abril de 1993, Despacho n.º 56/SATOP/94, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 22, II Série, de 1 de Junho de 1994, e Despacho n.º 71/SATOP/99, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 33, II Série, de 18 de Agosto de 1999, foi titulada a concessão por arrendamento de vários lotes de terreno inseridos nas zonas A, B, C e D do empreendimento denominado «Fecho da Baía da Praia Grande», situados na Baía da Praia Grande e nos Novos Aterros do Porto Exterior, a favor da Sociedade de Empreendimentos Nam Van, S.A., com sede na Avenida Comercial de Macau, Edifício FIT Center, 21.º andar B, em Macau, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis com o n.º 4144 (SO) a fls. 166 do livro C10.
2. Entretanto, através do Despacho n.º 97/SATOP/94, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 30, II Série, de 27 de Julho de 1994, foi titulada a transmissão onerosa dos direitos resultantes da concessão do terreno com a área de 3,449 m2 , designado por lote 9 da zona A do referido empreendimento, a favor da Sociedade de Investimento Imobiliário Pun Keng Van, S.A., com sede na Avenida Doutor Mário Soares, Edifício FIT Center of Macau, 21.º andar B, em Macau, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis com o n.º 7625 (SO) a fls. 132 do livro C19.
3. O mencionado lote está descrito na Conservatória do Registo Predial, adiante designada por CRP, sob o n.º 22298 a fls. 84 do livro B8K e o direito resultante da concessão inscrito a favor da Sociedade de Investimento Imobiliário Pun Keng Van, S.A. sob o n.º 4304 a fls. 91 do livro F20K, não se encontrando onerado com qualquer hipoteca.
4. De acordo com o estipulado na cláusula segunda do contrato transmissão titulado pelo sobredito Despacho n.º 97/SATOP/94, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 30, II Série, de 27 de Julho de 1994, o arrendamento do terreno é válido até 30 de Julho de 2016.
5. Segundo o estabelecido na cláusula terceira do mesmo contrato de transmissão, o terreno seria aproveitado com a construção de um edifício, em regime de propriedade horizontal, destinado a escritórios e estacionamento, em conformidade com o plano de pormenor e respectivo regulamento, relativo à zona A, aprovado pela Portaria n.º 69/91/M, de 18 de Abril de 1991, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 134/92/M, de 22 de Julho.
6. Em 04/11/2016, o Secretário para os Transportes e Obras Públicas emitiu o seguinte parecer:
“…
1. Através do Despacho n.º 203/GM/89, publicado no 4.º Suplemento ao Boletim Oficial de Macau n.º 52, de 29 de Dezembro de 1989, foi autorizado o contrato de concessão, por arrendamento e com dispensa de concurso público, de vários terrenos situados nas Zonas A, B, C e D do empreendimento designado por «Fecho da Baía da Praia Grande», na Praia Grande e nos Novos Aterros do Porto Exterior, titulado pela escritura pública outorgada em 30 de Julho de 1991, na Direcção dos Serviços de Finanças, e revisto pelos Despachos n.ºs 73/SATOP/92, 57/SATOP/93 e 56/SATOP/94, publicados respectivamente no Boletim Oficial de Macau n.º 27, de 6 de Julho de 1992, no Boletim Oficial de Macau n.º 17, de 26 de Abril de 1993 e no Boletim Oficial de Macau n." 22, II Série, de 1 de Junho de 1994, a favor da Sociedade de Empreendimentos Nam Van, S.A..
2. Nos termos do disposto na cláusula segunda do contrato de concessão titulado pela mencionada escritura, o arrendamento é válido pelo prazo de 25 anos, contados a partir da data da outorga da mesma.
3. Através do Despacho n.º 97/SATOP/94, publicado no Boletim Oficial de Macau n.º 30, II Série, de 27 de Julho de 1994, foi titulada a transmissão onerosa do direito resultante da concessão do terreno com a área de 3449m2, situado na península de Macau, designado por lote 9 da Zona A do empreendimento denominado por «Fecho da Baía da Praia Grande», a favor da Sociedade de Investimento Imobiliário Pun Keng Van, S.A..
4. De acordo com o estabelecido na cláusula segunda do sobredito contrato de transmissão do direito resultante da concessão do aludido lote, o prazo do arrendamento expirou em 30 de Julho de 2016.
5. Segundo o disposto na cláusula terceira do mesmo contrato, o terreno deveria ser aproveitado com a construção de um edifício em regime de propriedade horizontal, destinado a escritórios e estacionamento, de acordo com as condições urbanísticas fixadas nos Regulamentos dos Planos de Pormenor do Plano de Reordenamento da Baía da Praia Grande aprovados pela Portaria n.º 69/91/M, publicada no 2.º Suplemento ao Boletim Oficial de Macau n.º 15, de 18 de Abril de 1991, e as condições fixadas no Regulamento do Plano de Pormenor da Zona A da Baía da Praia Grande aprovado pela Portaria n.º 134/92/M, publicada no Boletim Oficial de Macau n.º 25, de 22 de Junho de 1992. A altura máxima permitida seria de 112,3 mNMM.
6. Uma vez que o prazo de arrendamento do terreno terminou em 30 de Julho de 2016 e o aproveitamento do terreno não foi concluído, a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes propôs que fosse autorizado o seguimento do procedimento relativo à declaração da caducidade da concessão por decurso do prazo de arrendamento e o envio do processo à Comissão de Terras para efeitos de parecer, o que mereceu a minha concordância, por despacho de 12 de Setembro de 2016.
7. Reunida em sessão de 13 de Outubro de 2016, a Comissão de Terras, após ter analisado o processo, tendo em consideração que o prazo de arrendamento terminou, sem que o aproveitamento estabelecido no contrato se mostre realizado, e que, sendo a concessão provisória, não pode ser renovada, de acordo com o previsto no n.º 1 do artigo 48.º da Lei n.º 10/2013 (Lei de terras), aplicável por força dos seus artigos 212.º e 215.º. Deste modo, a concessão encontra-se caducada pelo termo do respectivo prazo de arrendamento (caducidade preclusiva), devendo esta caducidade ser declarada por despacho do Chefe do Executivo.
Consultado o processo supramencionado e concordando com o que vem proposto, solicito a Sua Excelência o Chefe do Executivo que declare a caducidade da concessão do referido terreno…”.
7. Em 03/05/2018, o Senhor Chefe do Executivo proferiu o seguinte despacho:
“…Concordo, pelo que declaro a caducidade da concessão, por arrendamento, a que se refere o Processo n.º 58/2016 da Comissão de Terras, nos termos e com os fundamentos do Parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 4 de Novembro de 2016, os quais fazem parte integrante do presente despacho”.
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IV – Fundamentação
A. Da reclamação do despacho do Relator pelo qual se determinou a não inquirição das testemunhas arroladas e da sua nulidade:
Vem a Recorrente reclamar para a Conferência o despacho do Relator de 22/11/2018 (fls. 167 dos autos), pelo qual de determinou a não inquirição das testemunhas arroladas por entender que a requerida diligência probatória é desnecessária para a boa decisão da causa.
Analisada a situação concreta do caso, concordamos a decisão reclamada no sentido de não ser necessária no âmbito dos presentes autos a produção de prova testemunhal, visto que a caducidade da concessão foi declarada com fundamento no decurso do prazo da concessão provisória sem que esta convertida em definitiva.
Nesta medida, a Recorrente nunca poderá proceder ao seu aproveitamento por qualquer forma face à legislação vigente.
Quanto à alegada nulidade do despacho ora reclamado por se tratar da prática de um acto que a lei não admite e por tal acto influir na decisão da causa, salientamos desde já que conforme supra exposto, a decisão ora reclamada nada influi na decisão da causa, por ser um acto inútil.
Em relação a sua admissibilidade legal, cumpre-nos dizer o facto de o Relator ter ordenado o cumprimento do disposto do artº 64º do CPAC, nada lhe impede que no momento posterior, determina a desnecessidade da produção da prova.
O essencial é saber se a requerida diligaência probatória ser necessária ou não para a boa decisão do mérito da causa.
Nesta conformidade, ainda que determinada a realização da prova testemunhal, nada impede a parte que a requereu, desiste da mesma antes ou no decurso da mesma.
Por outro lado, o Tribunal, no âmbito do seu poder de direcção do processo conferido pelo nº 1 do artº 6º do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, tem o poder-dever de recusar realizar as diligências desnecessárias e impertinentes.
Assim, em nome da economia processual e com vista a evitar a prática de actos inúteis, é de manter a decisão reclamada, julgando improcedente a reclamação apresentada.
B. Do recurso contencioso
O presente recurso contencioso consiste em apreciar a eventual legalidade/ilegalidade do acto recorrido, pelo qual se declarou a caducidade da concessão do terreno em questão.
Sobre o assunto, o Mº Pº emitiu o seguinte parecer:
“Na petição inicial e nas alegações, a recorrente solicitou a anulação do despacho do Exmo. Senhor Chefe do Executivo quem declarou, clara e propositadamente que “Concordo, pelo que declaro a caducidade da concessão, por arrendamento, a que se refere o Processo n.º58/2016 da Comissão de Terras, nos termos e com os fundamentos que constam do Parecer do Secretário para Os Transportes e Obras Públicas, de 4 de Novembro de 2016, os quais fazem parte integrante do presente despacho.” (vide. fls.172 do P.A.)
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1. Do acto vinculado e da arguição da manifesta desrazoabilidade
Interpretando o acto recorrido em coerência com o Parecer do Sr. STOP de 04/11/2016 (doc. de fls.168 a 171 do P.A.), adquirimos que a declaração da caducidade titulada por esse acto tem por base factual que a concessão cuja titular era a recorrente tinha sido sempre provisória até à irreversível expiração do prazo de 25 anos, nunca convertida em definitiva.
Ora, é pacífica e consolidada a brilhante jurisprudência, segundo a qual decorrido o prazo de 25 anos da concessão provisória (se outro prazo não estiver fixado no contrato) o Chefe do Executivo deve declarar a caducidade do contrato se considerar que, nesse prazo, não foram cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas, e o Chefe do Executivo não tem que apurar se o incumprimento das cláusulas de aproveitamento se deve ter por motivo não imputável ao concessionário (cfr. Acórdãos do TUI nos Processos n.º28/2017, n.º43/2018 e n.º72/2019). Pois a jurisprudência de Macau vai sempre no sentido de considerar a caducidade da concessão do terreno pelo decurso do prazo de arrendamento como caducidade preclusiva (a título exemplificativo, cfr. Acórdãos do TUI nos Processos n.º69/2017, n.º102/2018 e n.º26/2019).
A nossa leitura dos arestos dos Venerandos TUI e TSI convence-nos de ser constante e unânime a orientação jurisprudencial, no sentido de que é vinculado o poder administrativo para declarar a caducidade, quer de preclusão quer de sanção, das concessões de terrenos (cfr. Acórdãos do TUI nos Processos n.º62/2017 e 111/2018, do TSI nos n.º433/2015, n.º436/2015 e n.º743/2016).
Ora, a frase reiterada pelo Venerando TUI de que “se outro prazo não estiver fixado no contrato” significa iniludivelmente que o prazo da concessão, seja de 25 anos seja de duração mais curta, não é decisivo, o que causa directa e inevitavelmente à caducidade preclusiva da concessão é a peremptória expiração do prazo de concessão contratualmente fixado.
Nestes termos e na medida em que é válida até 31/07/2016 a concessão transmitida à recorrente na qualidade de terceiro outorgante, não podemos deixar de concluir que o despacho atacado nestes autos é acto vinculado. Daí resulta que não se verifica in casu a arrogada manifesta e total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, trata-se, deste modo e em boa verdade, dum argumento impertinente.
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2. Da arguida falta de fundamentação
Ora, é praticamente uniforme a inculca de que “A fundamentação é um conceito relativo que depende do tipo legal do acto, dos seus termos e das circunstâncias em que foi proferido, devendo dar a conhecer ao seu destinatário as razões de facto e de direito em que se baseou o seu autor para decidir nesse sentido e não noutro, não se podendo abstrair da situação específica daquele e da sua possibilidade, face às circunstâncias pessoais concretas, de se aperceber ou de apreender as referidas razões, mormente que intervém no procedimento administrativo impulsionando o itinerário cognoscitivo da autoridade decidente.” ( a título exemplificativo, Acórdão do STA no processo n.º44302)
Não se deve olvidar que concordar é uma coisa, e compreender é outra, a discordância duma posição não se equivale à incompreensão ou à incompreensibilidade. Por isso, a não concordância do interessado com a posição da Administração não germina a falta de fundamentação. De outra banda, interessa realçar que a falta de fundamentação se distingue da falta de fundamentos (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º663/2009)
Bem, sufragamos a douta jurisprudência que preconiza (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º288/2015): O acto administrativo considera-se fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal … possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de reacção, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.
Em esteira, e considerando o supramencionado Parecer do Exmo. Sr. STOP e o Parecer n.º121/2016 da Comissão de Terras (docs. de fls.168 a 171 e 155 a 166 do P.A.), não podemos deixar de concluir que é falida a arguição da falta de fundamentação, pois, o ponto 7 do Parecer do Exmo. Sr. STOP assegura a recorrente a apreender suficientemente os fundamentos de facto e de direito da declaração da caducidade da concessão.
Por cautela e na mera hipótese de ser insuficiente a fundamentação do despacho recorrido, colhemos que tal insuficiência é irrelevante, dado que ao caso sub judice se aplica o princípio do aproveitamento dos actos administrativos praticados no exercício de poderes vinculados.
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3. Da não verificação da caducidade e causa impeditiva
Bem, sustentando o pedido de anulação do despacho em questão, a recorrente arguiu a não verificação da caducidade bem como o erro nos pressupostos de direito e da causa impeditiva da caducidade, arrogando que o incumprimento das cláusulas do contrato de concessão é imputável à Administração e esta reconheceu os direitos resultantes da transmissão à recorrente relativos ao terreno identificado no contrato de concessão.
Repare-se que “As vicissitudes ocorridas no prazo de concessão e respeitantes ao aproveitamento do terreno não se revelam pertinentes, já que, no caso de declaração da caducidade pelo decurso do prazo de arrendamento do terreno, não é essencial a questão de culpa no não aproveitamento do terreno, pois com o decurso do prazo máximo da concessão provisória sem a conclusão do aproveitamento do terreno, a mesma concessão não pode ser renovadas, desde que não se verifique a excepção prevista na lei (art.48.º n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 10/2013).” (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º29/2019) Daí resulta que mesmo sejas constatadas e verdadeiras, a não imputabilidade e inocência da recorrente não obstam à verificação da caducidade preclusiva da concessão.
É bom de lembrar a brilhante jurisprudência inculcando que “Ainda que estivessem em causa direitos disponíveis, uma informação da Direcção dos Serviços de Programação e Coordenação de Empreendimentos, independentemente do que ela contivesse, nunca poderia constituir reconhecimento de nenhum direito da recorrente por parte da RAEM, dado que informações burocráticas de técnicos da Administração ou mesmo de directores de serviços não representam nem obrigam a RAEM, pelo que nunca poderiam reconhecer direito algum da recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º2 do artigo 323.º do Código Civil.” (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º16/2019)
Pois, as comunicações de serviço interno da DSSOPT, bem como a atitude da DSSOPT revelada nos ofícios, com os quais as recorrentes foram notificadas que os projectos apresentados eram passíveis de aprovação pela DSSOPT, mas que o procedimento administrativo ficava suspenso provisoriamente até que fosse aprovado o novo plano de intervenção urbanística da zona onde se encontram os terrenos concedidos, nunca poderiam constituir reconhecimento de nenhum direito das recorrentes por parte da RAEM, uma vez que as informações ou opiniões nelas contidas não representam nem obrigam a RAEM, muito menos depois do termo do prazo de arrendamento dos terrenos. (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º2/2019)
E, os actos praticados pela Administração, invocados pela recor-rente para demonstrar que a Administração criou legítimas expectativas na recorrente, nomeadamente, ao afirmar que iria rever o contrato de concessão atenta a alteração de finalidade do terreno, nunca poderiam constituir o reconhecimento de algum direito da recorrente por parte da RAEM (por exemplo o direito de aproveitar o terreno depois do termo do prazo de arrendamento) nem obstar à declaração da caducidade pelo decurso de tal prazo. (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º12/2019)
Em sintonia com tais sensatas jurisprudências, estamos convictos de que falece incuravelmente a arguição da não verifica da caducidade e da existência da causa impeditiva da mesma, portanto, o despacho atacado no presente recurso não colide com o art.323º do Cód. Civil.
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4. Do abuso de direito e violação dos princípios gerais
Como causa de pedir, a recorrente assacou, ao despacho em escrutínio, ainda o abuso de direito e a violação dos princípios da igualdade, da boa fé na sua vertente da tutela de confiança, da decisão e da eficiência da Administração, previstos nos arts.5º, 8º, 11º e 12º do CPA.
4.1. Ora, o abuso de direito, para vingar no recurso contencioso, impõe a prova de um exercício ilícito de direito, implica a demonstração de que o titular do direito o exerceu em termos clamorosamente ofensivos da justiça e que excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.334º, do CC). E não preenche estes requisitos a actuação administrativa que se limita, como no caso vertente, a cumprir as cláusulas do contrato e a lei e a acatar as normas imperativas de direito público sobre o regime legal das concessões.” (cfr. Acórdãos do TSI nos Processos n.º179/2016, n.º290/2017 e n.º578/2018)
Em harmonia com essa sagaz jurisprudência, não podemos deixar de concluir que consubstanciado em declarar a caducidade preclusiva da concessão, o despacho em questão não enferma do abuso de direito, e por isso, não infringe o preceito no art.326º do Código Civil.
4.2. No actual ordenamento jurídico de Macau vê-se solidamente consolidada a brilhante jurisprudência, no sentido de que os princípios gerais de igualdade, de proporcionalidade, da imparcialidade, da justiça e de boa fé se aplicam apenas ao exercício de poderes discricionários, semdo assim inoperante para os actos vinculados. (a título exemplificativo, cfr. Acórdãos do TUI nos Processos n.º32/2016, n.º79/2015 n.º46/2015, n.º14/2014, n.º54/2011, n.º36/2009, n.º40/2007, n.º7/2007, n.º26/2003 e n.º9/2000, a jurisprudência do TSI vem andar no mesmo sentido).
Seja como for, a violação do princípio da igualdade não releva no exercício de poderes vinculados, já que não existe um direito à igualdade na ilegalidade, o princípio da igualdade não pode ser invocado contra o princípio da legalidade: um acto ilegal da Administração não atribui ao particular o direito de exigir a prática no futuro de acto de conteúdo idêntico em face de situações iguais (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º7/2007).
Ainda preconiza peremptoriamente o Venerando TUI que “Havendo fundamento para declarar a caducidade de concessão de terreno urbano, porque houve culpa da concessionária no não aproveitamento do terreno no prazo fixado, tal constitui um acto vinculado para a Administração. Se esta, noutros procedimentos administrativos, ilegalmente, não declarou a caducidade de outras concessões, supostamente havendo semelhança dos mesmos factos essenciais, tal circunstância não aproveita, em nada, à concessionária em causa visto que os administrados não podem reivindicar um direito à ilegalidade.” (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º111/2018)
Em esteiras destas brilhantes jurisprudência e dado que o despacho atacado nestes autos constitui a única resolução legalmente admissível, estamos convictos de que tal despacho não pode ofender nem ofende os princípios da boa fé na vertente da tutela da confiança, da igualdade e do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos.
Ressalvado respeito pela opinião diferente, inclinamos a entender que não pode deixar de ser flagrantemente vaga e descabida a arguição da violação dos princípios da decisão e da eficiência, bem como do erro manifesto nos pressupostos de facto e de direito.
***
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso contencioso..”.
Trata-se duma posição com a qual concordamos na sua íntegra e que está conforme com a jurisprudência do TUI e deste TSI nos processos congéneres.
A título exemplificativo, vide os Acs. do T.U.I. de 11/10/2017, Proc. n.º 28/2017; de 06/06/2018, Proc. n.º 43/2018; de 31/07/2018, Proc. nº 13/2018; de 05/12/2018, Proc. n.º 98/2018 e de 19/12/2018, Proc. n.º 91/2018.
Nesta conformidade e com a devida vénia, fazemos como nossos os fundamentos invocados no parecer acima transcrito para julgar a improcedência do presente recurso contencioso.
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V – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar improcedente a reclamação apresentada, bem como o recurso contencioso, confirmando a decisão reclamada e o acto recorrido.
*
Custas pela Recorrente com 4UC e 10UC de taxa de justiça, respectivamente, para a reclamação e o recurso contencioso.
Notifique e D.N..
*
RAEM, aos 20 de Fevereiro de 2020.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Mai Man Ieng
1
30
581/2018