Processo nº 63/2018 Data: 19.02.2020
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Embargos à execução.
Ampliação da matéria de facto.
Causa – origem – da dívida exequenda.
Circunstâncias da assinatura da declaração de dívida.
SUMÁRIO
A ampliação da matéria de facto, determinada pelo tribunal de recurso, tem lugar quando o tribunal inferior, com poder de cognição da matéria de facto, não conhece de matéria de facto alegada, relevante e controvertida. Não, quando este tribunal julga não provados certos factos, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 63/2018
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por sentença datada de 15.06.2016, julgaram-se improcedentes os embargos à execução que A (甲) deduziu à execução por B (乙) instaurada no Tribunal Judicial de Base; (cfr., fls. 130 a 132 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformado com o assim decidido, o referido embargante recorreu; (cfr., fls. 155 a 194).
*
Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 01.03.2018, (Proc. n.° 931/2016), decidiu-se conceder provimento ao recurso, determinando-se a ampliação da matéria de facto constante da base instrutória e a repetição de todo o julgamento; (cfr., fls. 294 a 305).
*
Notificado do assim decidido, e porque com o mesmo inconformado, veio o exequente/embargado (B) recorrer, alegando para, a final, produzir as conclusões seguintes:
“1. O presente recurso tem por objecto o douto acórdão proferido pelo TSI que, concedendo provimento ao recurso interposto pelo Recorrente Embargante, determinou a anulação da sentença e "ampliação da matéria constante da base instrutória e repetição de todo o julgamento nos sobreditos termos" e que constam da página 20 do referido acórdão.
2. Como fundamento da referida decisão o TSI invoca a circunstância de na sua peça de fls. 39 e 40 o Embargante ter alegado factos "de onde se pode vir a concluir que aquele montante debitório [ou seja, o montante a que o documento dado à execução se refere] pode ter resultado de empréstimo para jogo", o que, a confirmar-se, teria como resultado a inexigibilidade judicial da obrigação exequenda por força do regime previsto na Lei n.° 5/2004 (Regime jurídico da concessão de crédito para jogo ou aposta em casino) ou da eventual usura na génese deste negócio.
3. Por outro lado, quanto aos restantes factos que o TSI pretende ver aditados à base instrutória diz o tribunal recorrido que os artigos que compõem o questionário são "manifestamente insuficientes para a revelação da [pretensa] coacção exercida sobre o embargante e que ele invocou no seu articulado".
4. Posto isto, passando já à questão do aditamento à base instrutória de um quesito no qual seja perguntada a "causa da dívida declarada do documento", importa recordar que o título executivo em apreço – cujo conteúdo e genuinidade da assinatura, é bom frisar, o Embargante não impugnou – consiste numa confissão de dívida do Executado e faz menção à respectiva causa.
5. Com efeito, nesse documento o Embargante não só confessa dever ao Exequente a quantia de HKD$420.000.000,00 – ou seja reconhece a existência da dívida e o respectivo montante –, como confessa o facto constitutivo da obrigação de pagar ao Recorrido: o empréstimo que este lhe concedeu.
6. Ou seja, a causa da dívida exequenda (o mútuo que o Embargante confessou ter recebido) encontra-se apurada e demonstrada por essa confissão, cujo alcance e valor probatório o TSI ignorou por completo.
7. Por outro lado, sendo um documento que contém um reconhecimento de dívida, com menção da respectiva causa, o título executivo tem, por força do disposto no artigo 351.° do CC, força probatória plena contra o Embargante quanto às declarações nele proferidas demonstrando cabalmente a realidade dos factos a que se refere.
8. Isto significa que, não tendo o Embargante impugnado a genuinidade do documento, nem a genuinidade da sua assinatura, o seu valor como confissão extrajudicial com força probatória plena apenas poderia ter sido afastada mediante a prova do contrário ou se se tivesse provado que o mesmo padecia de alguma fonte de invalidade (vide o disposto no artigo 352.° do CC).
9. Doutro passo, dúvidas não restam que era sobre o Embargante, ora Recorrido, que recaía o ónus de provar o contrário do que resulta do título executivo (ou seja de que não deve a quantia exequenda ao Embargado), ou que tal título padece de alguma invalidade.
10. Neste particular o Embargado limitou-se a alegar que o (i) empréstimo não existiu; e (ii) que o documento dado à execução havia sido assinado por si sob coacção, factos que foram, e bem, transpostos para a base instrutória.
11. Ora, quanto à matéria relativa ao empréstimo há que afirmar que, salvo o devido respeito por opinião diversa, jamais foi alegado pelo Recorrido, quer na petição inicial de embargos, quer na peça de fls. 39 e 40, que o empréstimo que confessou ter recebido do Embargado constituía uma concessão de crédito para jogo ou que o mesmo constituiu uma usura e que, por via, dessa circunstância tal empréstimo era ilícito e que com base nessa ilicitude deveriam os embargos ser considerados procedentes por a obrigação exequenda ser inexigível.
12. No que à causa da dívida exequenda diz respeito o Embargante, reitere-se, limitou-se a negar a existência do dito empréstimo e nada mais, jamais tendo apontado como causa da sua ilicitude o facto de o mesmo se tratar de uma concessão de crédito para jogo ou uma usura!
13. Ora, a demonstração da inexistência do empréstimo – ou seja, a prova do contrário daquilo que resulta do título executivo – não foi lograda pelo Embargante que, em termos de ilicitude desse título, se limitou a alegar a pretensa coacção de que teria sido vítima na sua assinatura.
14. Assim, o Recorrido não pode discordar de forma veemente da circunstância de o Tribunal a quo considerar que na peça de fls. 39 e 40 o Embargante alegou uma série de factos que indiciariam que o "montante debitório pode ter resultado de um empréstimo para jogo" quando, como acima se disse, o que expressa e consistentemente foi alegado por aquele foi que jamais recebeu qualquer quantia por parte do Embargado, conforme resulta claro do parágrafo 8.1 do requerimento de fls. 39 e 40 (que, diga-se de passagem, constitui uma cópia da queixa-crime apresentada pelo Embargante contra o Embargado, cujo respectivo processo terminou com a não pronúncia do Recorrente pela prática de qualquer crime), onde aquele afirma ter-lhe sido sugerido a contracção de um empréstimo junto do Exequente mas que recusou.
15. Aliás, caso assim tivesse sucedido não deixaríamos de estar perante uma verdadeira contradição no que ao fundamento dos embargos diz respeito consubstanciada no facto de, por um lado, o Embargante negar ter recebido qualquer montante do Embargado e, por outro, reconhecer que afinal recebeu tal quantia mas que a mesma consistiu num crédito para jogo!
16. Por conseguinte, não tendo sido alegado um único facto pelo Embargante/Recorrido no que concerne à pretensa concessão de crédito para jogo e/ou usura e tratando-se de um facto essencial pois o mesmo poderia constituir, por si só, uma causa de pedir autónoma e distinta daquelas que aquele invocou nos embargos (e, como se disse, até contraditória com as mesmas) que a comprovar-se teria como consequência a ilicitude do título executivo, independentemente da coacção, a sua inclusão na base instrutória constituiria uma clara violação do princípio dispositivo consagrado no artigo 5.° do CPC.
17. Com efeito, por força do referido princípio está vedado ao tribunal substituir-se às partes na definição do objecto do litígio, pois tratando-se o supra mencionado um facto essencial à procedência da pretensão deduzida pelo Embargante (a insusceptibilidade do cumprimento da obrigação exequenda ser exigido em juízo por força do regime das obrigações naturais) cabia àquele ter alegado os factos necessários integrantes da respectiva causa de pedir, ou seja, os factos que demonstrariam, sem margem para dúvidas, que o empréstimo que recebeu consistia numa concessão de crédito para jogo ou que o mesmo se traduzia em usura o que a ter sido feito não deixaria de conflituar com o fado de o Recorrido ter alegado a inexistência do empréstimo o que se traduziria na alegação de duas causas de pedir contraditórias.
18. A decisão do TSI de alargar a base instrutória com um quesito destinado a discutir a matéria em apreço constitui, pois, uma patente violação do artigo 5.° do CPC e do princípio dispositivo aí consagrado.
19. Diga-se ainda que ao ordenar a ampliação da matéria de fado a fim de se apurar a causa do empréstimo que constitui a obrigação exequenda, mais concretamente a fim de apurar se tal empréstimo consistiu numa concessão de crédito para jogo ou usura pois daí resultaria a inexequibilidade daquela obrigação, o venerando tribunal a quo exorbita claramente dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 629.° do CPC.
20. Efectivamente, é isso o que sucede com esta decisão do TSI que considera insuficiente o julgamento da matéria de facto feita pela 1.ª Instância, determinando a repetição do mesmo em ordem à indagação da matéria de facto considerada indispensável para a decisão de direito, e define logo o direito aplicável, declarando qual o regime jurídico a aplicar ao caso concreto.
21. Ademais, o TSI não poderia ter ignorado de que a prova do contrário que pode ser feita para afastar a prova plena que resulta do título executivo (e que o Embargado não logrou fazer) está sujeita a restrições especialmente determinadas, sendo a prova testemunhal uma dessas restrições.
22. É que, por força do disposto nos artigos 340.° e 387.°, n.° 2 do CC, apenas através de prova documental (e não testemunhal) poderia ser contrariada ou afastada a realidade que resulta do título executivo em apreço (mormente a dívida em que aí o Embargante se confessou devedor perante o Embargado), em virtude da sua força probatória plena.
23. Algo que este não fez, não tendo junto um único documento a demonstrar ou sequer indicar a inexistência da dívida a que se refere o título executivo, pelo que a plena validade e eficácia deste não pode ser posta em causa com repetição do julgamento em que a prova se resumirá ao depoimento das testemunhas arroladas pelas partes.
24. Em suma, o douto acórdão recorrido violou, como acima se demonstrou as seguintes disposições legais: 335.°, 340.°, 351.°, 387.° do CC e 5.° e 629.° do CPC.
25. Por outro lado, nos pontos 3.2 e 3.3 do douto acórdão recorrido o Tribunal a quo justifica o exercício do poder que os n.°s 3 e 4 do artigo 629.° do CPC com o facto de base instrutória ser "manifestamente insuficiente para o apuramento dos factos invocados e para a solução que o caso merece".
26. Salvo o devido respeito, tal afirmação não se afigura como correcta uma vez que a base instrutória se limita a condensar a matéria relevante para a decisão da causa tal qual a mesma foi alegada pelo Embargante, saber: a inexistência do empréstimo titulado pela declaração confessória dada à execução e a coacção de que aquele teria sido vítima na assinatura de tal documento.
27. Por outro lado, tendo o tribunal de primeira instância optado pela referida condensação, não levando à base instrutória os factos instrumentais que o TSI pretende ver discutidos, o uso desta faculdade (que implica a cassação da decisão recorrida e a repetição do julgamento) só se justificaria se esses factos não tiverem sido discutidos em sede de audiência de discussão e julgamento.
28. Ora, não foi isso o que sucedeu. Com efeito, as testemunhas que prestaram depoimento na audiência de discussão e julgamento foram extensivamente questionadas e responderam sobre:
(i) os "factos alegados pelo embargante acerca de tudo o que se passou no interior do quarto do [Hotel(1)], os quais traduzem a pressão para a assinatura do documento [título executivo] sob pena de ser impedido de sair das instalações e de sofrer alguma consequência "desfavorável";
(ii) a "causa da dívida declarada no documento";
(iii) "as condições da viagem de regresso do embargante até Hong Kong juntamente com as suas empregadas e os "acompanhantes" enviados alegadamente para os vigiarem, a mando do embargado";
(iv) "as condições em durante um mês foi alegadamente pressionado num hotel de Hong Kong por alguns homens para o pagamento em falta".
29. Com efeito, conforme demonstram as passagens da gravação da audiência de discussão e julgamento acima transcritas, as testemunhas arroladas pelo Embargante pronunciaram-se exaustivamente sobre toda a matéria factual sobre todos os concretos pontos da matéria de facto que a decisão do TSI considerou com base no argumento de que tal matéria havia sido desconsiderada pela 1.ª instância.
30. Por conseguinte, afigura-se ao Recorrente que o uso da faculdade prevista no artigo 629.° do CPC por parte do TSI foi injustificado e, por isso, ilegal.
Termos em que, deverá o acórdão proferido pelo TSI ser revogado e substituído por outra decisão:
a) que julgue totalmente improcedente o recurso interposto pelo Embargante da sentença proferida em 1.ª Instância, mantendo-se esta nos exactos termos em que foi proferida;
b) para a eventualidade deste Venerando Tribunal entender não poder fixar já o regime jurídico aplicável ao presente caso, hipótese que apenas por cautela se admite, que ordene a remessa dos autos ao TSI para que conheça do mérito da causa com base nos factos que foram dados como assentes, sem necessidade de remessa dos autos à 1.ª instância para ser feita novo julgamento, (…)”; (cfr., fls. 314 a 349-v).
*
Contra-alegando, e em conclusões, diz A que:
“I. Vem o recurso a que ora se responde sindicar o douto Acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância que, concedendo provimento ao recurso interposto pelo aí Recorrente, ora Recorrido, determinou a anulação da sentença a ampliação da matéria constante da douta Base Instrutória, e a repetição de todo o julgamento nos sobreditos termos.
II. O douto Tribunal de Segunda Instância concedeu parcial provimento ao recurso interposto pelo aí Recorrente A, ora Recorrido, tendo, tão-só, concedido provimento ao segmento do recurso que incidiu sobre o despacho do douto Tribunal de Primeira Instância, o qual havia indeferido a reclamação contra a selecção da matéria de facto levada à douta Base Instrutória.
III. O Venerando Tribunal de Segunda Instância determinou o alargamento da douta Base Instrutória com os factos alegados pelo ora Recorrido nos artigos 8.1 a 8.7 da Oposição por Embargos à Execução, conjugada com o requerimento de aperfeiçoamento a fls. 39 e 40, nos termos do disposto no artigo 629.°, n.°s 3 e 4 do CPC.
IV. No entendimento do Recorrido B, ora Recorrente, o Tribunal de Segunda Instância com esta decisão violou o princípio do dispositivo consagrado no artigo 5.° do CPC e extravasou os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 629.°, n.ºs 3 e 4, do CPC.
V. Nada há a apontar à decisão recorrida.
VI. Alega ora Recorrente que as testemunhas já prestaram depoimento em sede de audiência de discussão e julgamento também sobre os factos que o Venerando Tribunal de Segunda Instância agora considerou deverem ser aditados à douta Base Instrutória, e que por esse motivo não se vislumbra necessidade de se repetir a audiência de discussão e julgamento da causa.
VII. Não tem razão o ora Recorrente.
VIII. O Tribunal de Última Instância, em matéria cível, não tem poder de cognição de apreciação da matéria de facto, quando julga em recurso correspondente a 3° grau de jurisdição, o que é o caso, nos termos do disposto no artigo 649.°, n.° 1 do CPC, em conjugação com o artigo 47.°, n.° 2 da Lei n.° 9/1999.
IX. O Tribunal de Última Instância, quando julgue em recurso correspondente a 3.° grau de jurisdição, apenas conhece de matéria de direito.
X. O conteúdo do depoimento das testemunhas não deverá ser (re)apreciado pelo Venerando Tribunal de Última Instância, porquanto carece de poderes para apreciar da matéria de facto.
XI. Não compete ao Venerando Tribunal de Última Instância apreciar a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento da causa, em concreto, os depoimentos das testemunhas ora transcritos pelo ora Recorrente.
XII. Com a repetição da audiência de discussão e julgamento, bem assim com a ampliação da douta Base Instrutória, as partes serão novamente notificadas para requererem ou alterarem os respectivos requerimentos probatórios, i.e., para indicarem as respectivas provas, nos termos do disposto no artigo 553.°, n.° 3 do CPC, extensível à hipótese prevista no artigo 629.°, n.°s 3 e 4 do CPC.
XIII. Outra não poderá ser a decisão do Venerando Tribunal de Última Instância senão a de rejeitar este segmento do presente recurso, em cumprimento com o disposto no artigo 649.º, n.º 1 do CPC, em conjugação com o artigo 47.º, n.º 2 da LBOJ, e com o comando normativo do artigo 553.º, n.º 3 do CPC.
XIV. Em face do alegado nos artigos 8.1 a 8.7 da Oposição por Embargos à Execução, em conjugação com o requerimento de aperfeiçoamento a fls. 39 e 40, outra não poderia ser a decisão do Venerando Tribunal de Segunda Instância, qual seja determinar a anulação da sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância e, usando da faculdade prevista no artigo 629.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, determinar a ampliação da douta Base Instrutória, com a inevitável repetição da audiência de discussão e julgamento da causa.
XV. Acompanha-se na íntegra a fundamentação aduzida pelo Tribunal de Segunda Instância.
XVI. O douto Tribunal de Primeira Instância não dispunha de toda a factualidade alegada e necessária para a justa composição do presente litígio.
XVII. O douto Tribunal de Primeira Instância omitiu da douta Base Instrutória os factos demonstrativos da existência de uma coacção por parte do Embargado, ora Recorrente, aquando da assinatura do Embargante, ora Recorrido, do documento particular que serve de base à presente execução, o título executivo em apreço.
XVIII. Estes factos revelam que o Embargado forçou o Embargante a assinar um documento, o título executivo ora em apreço, confessando, assim, uma dívida para com aquele, uma dívida de jogo.
XIX. O douto Tribunal de Primeira Instância omitiu da douta Base Instrutória os factos concernentes à natureza da dívida exequenda, ou seja, que o empréstimo consistiu numa concessão de crédito para jogo e/ou usura.
XX. Toda essa factualidade revelava-se, e revela-se, necessária e imprescindível para a boa decisão da causa e justa composição do presente litígio.
XXI. O douto Tribunal de Primeira Instância não estava dotado de toda a matéria factual relevante para poder aplicar "as várias soluções plausíveis da questão de direito", cfr. dispõe o artigo 430.º, n.º 1, in fine, do CPC.
XXII. Todos esses factos foram efectivamente alegados pelo Embargante, ora Recorrido, em sede própria, qual seja na Oposição por Embargos à Execução e no respectivo requerimento de aperfeiçoamento a fls. 39 e 40.
XXIII. O douto Tribunal de Primeira Instância tinha o poder-dever de apurar os exactos circunstancialismos em que o documento particular foi assinado por banda do Embargante, ora Recorrido, qual seja a ameaça e receio de sofrer um mal maior.
XXIV. O douto Tribunal de Primeira Instância tinha o poder-dever de aferir da concreta causa deste pretenso empréstimo, ao abrigo dos princípios do dispositivo e do inquisitório, respectivamente consagrados nos artigos 5.° e 6.° do CPC.
XXV. Os factos vertidos nos três artigos da douta Base Instrutória revelavam-se manifestamente insuficientes para o efeito.
XXVI. Não interessa atentar na legalidade formal do documento in casu, ou na respectiva força probatória formal.
XXVII. Interessa aferir se as declarações constantes no documento in casu correspondem à vontade e aos interesses do declarante, isto é, se estão ou não inquinadas por um qualquer vício da vontade, por forma a vincular, ou não, o respectivo declarante.
XXVIII. O que verdadeiramente importa é apurar os exactos circunstancialismos em que o documento particular foi assinado pelo Embargante, ora Recorrido, isto é, se efectivamente houve constrangimentos, ameaças e receios de sofrer um mal maior, que fez com que aquele fosse coagido a assinar o referido documento, no qual reconhece uma dívida que não era sua intenção contrair.
XXIX. A declaração confessória da dívida para com o Embargado, ora Recorrente, porque inquinada de um vício da vontade, qual seja a coacção moral, não exprime uma verdadeira vontade de assunção da dívida por parte do Embargante, ora Recorrido, sendo, na verdade, contrária aos seus interesses.
XXX. Não há correspondência das declarações constantes no documento dado à execução com a realidade dos factos.
XXXI. Nos termos do disposto no artigo 249.° do Código Civil ("CC), "a declaração negocial extorquida por coacção é anulável".
XXXII. Nos termos do disposto no artigo 352.º, n.º 1 do CC, "a confissão, judicial ou extrajudicial, pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão, se ainda não tiver caducado o direito de pedir a sua anulação".
XXXIII. O douto Tribunal de Primeira Instância deveria ter incluído na douta Base Instrutória os factos que demonstram claramente o vício da vontade na declaração confessória extrajudicial de dívida, plasmada no documento particular que constitui o título executivo da presente execução, valorando-os, e, desse modo, julgar procedente a Oposição por Embargos à Execução.
XXXIV. Nenhum facto concernente à causa da dívida exequenda foi transposto para a douta Base Instrutória, quando tal matéria foi alegada pelo Embargante, ora Recorrido, em sede própria, como bem salienta o Venerando Tribunal de Segunda Instância.
XXXV. Qualquer prova que se faça em sede de audiência de discussão e julgamento da causa não reflectirá a verdade dos factos, a história como efectivamente aconteceu.
XXXVI. Há que apurar todos os factos, toda a realidade factual.
XXXVII. É necessário que se proceda à ampliação da douta Base Instrutória, com a inevitável inclusão de todos os factos que foram alegados pelo Embargante, ora Recorrido, qual sejam os factos vertidos nos artigos 8.1 a 8.7 da Oposição por Embargos à Execução, conjugada com o requerimento de aperfeiçoamento a fls. 39 e 40.
XXXVIII. Dever-se-á repetir a audiência de discussão e julgamento da causa com uma nova e ampliada Base Instrutória.
XXXIX. Andou bem o Venerando Tribunal de Segunda Instância ao decidir como decidiu, o que fez em estrito cumprimento do preceituado nos artigos 5.º e 629.º, n.ºs 3 e 4, ambos do CPC.
XL. Deverá improceder o recurso do ora Recorrente, porquanto não existe uma violação do princípio do dispositivo plasmado no artigo 5.º do CPC, pelo contrário, nem o Venerando Tribunal de Segunda Instância extravasou os poderes que lhe são conferidos pelo artigo 629.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, pelo contrário.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso a que ora se responde ser rejeitado, nos termos supra expostos, em cumprimento com o disposto no artigo 649.°, n.° 1 do CPC, em conjugação com o artigo 47.°, n.° 2 da LBOJ, e com o comando normativo do artigo 553.°, n.° 3 do CPC, devendo ainda ser negado provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser confirmado na íntegra o douto Acórdão recorrido.
(…)”; (cfr., fls. 355 a 374).
*
Adequadamente processados os autos, passa-se a apreciar.
Fundamentação
Dos factos
2. Em sede de “matéria de facto provada”, o Acórdão recorrido elenca a seguinte:
“1 - A fls. 53 o embargante A apresentou reclamação contra a matéria de facto, entendendo que na peça da selecção da matéria de facto devem constar os artigos 8.1 a 8.7 da sua petição inicial de embargos, alegadamente demonstrativos da existência de uma coacção por parte do embargado aquando da assinatura do título executivo que serve de base à execução.
2 - A fls. 67 e vº o titular do processo proferiu o seguinte despacho:
«No presente processo, o embargante apresentou reclamação sobre o despacho da selecção da matéria de facto (v. fls.55 a 59 dos autos).
O embargado não pronunciou sobre a reclamação do embargante.
Cabe agora analisar e decidir sobre as reclamações apresentadas pelos dois Réus.
*
Na sua reclamação, o embargante solicitou ao tribunal para acrescentar na Base Instrutória o conteúdo alegado complementarmente a fls.39-40.
Tal como foi alegado a fls.43 pelo embargado, o conteúdo que o embargante alegou complementarmente apenas se trata da reprodução da denúncia criminal de fls.5 a 8 dos autos. Ao mesmo tempo, pode-se considerar que as alegações complementares não foram expostas devidamente em articulado e na forma concisa, de certo que não se trata de uma forma satisfatória de apresentar as suas alegações.
Bem como devido a essa forma de apresentação das alegações, o tribunal teve de despender mais tempo para seleccionar os factos essenciais relevantes para serem julgados na presente acção, dado que a maior parte do teor se trata somente de factos instrumentais. Demais, o embargante não retirou uma conclusão do meio da complexidade desses factos como facto essencial para julgar procedente a sua reclamação. Sem dúvida que neste aspecto o embargante não assumiu as suas devidas responsabilidades.
Não obstante, analisando mais uma vez o quesito 2º da Base Instrutória, a fim de melhor julgar o meio de coacção que o embargante indicou que foi empregado, entendo que se deve alterar o quesito 2º para o seguinte:
“2. Em 14 de Janeiro de 2014, no quarto nº 2517 do [Hotel(1)], o embargado ameaçou o embargante que caso não assinasse a declaração de dívida mencionada na alínea A dos Factos Assentes, iria fazer mal ao embargante, bem como não permitiria que o embargante se ausentasse do quarto do hotel?”
Demais, ordene-se que seja acrescentado o seguinte quesito:
“3. Devido à ameaça referida no quesito anterior, no dia 15 de Janeiro de 2014, o embargante assinou a declaração de dívida mencionada na alínea A dos Factos Assentes?”
*
Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a reclamação do embargante, ordeno proceder à alteração da Base Instrutória conforme o conteúdo acima indicado.
*
Ordeno a tradução da referida alteração para a língua portuguesa no prazo de dez dias.
Notifique e tome as devidas medidas.
*
D.s.
(ass.) vide original»
3 - A sentença, por seu turno, deu por assente a seguinte factualidade:
O exequente instaurou o processo de execução com base no título executivo constante do documento de fls. 4 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzidos para todos os efeitos jurídicos.
Acrescenta-se ainda o seguinte:
4 - O documento dado à execução (fls. 4 da execução) tem o seguinte teor:
Declaração de Dívida
Eu, A, portador do Bilhete de Identidade de Hong Kong nº MXXXXXX(X), pedi, em 1 de Dezembro de 2013, dinheiro emprestado a B ,portador do Bilhete de Identidade n.º XXXXXXX(X) ,no valor de quatrocentos e vinte milhões de dólares de Hong Kong (por extenso), ou HKD420.000.000,00 (em algarismo), para circulação de capital na exploração dos negócios.
Prometo devolver o aludido empréstimo sem juros antes do dia 31 de Dezembro de 2013: Mais confirmo que já recebi o aludido empréstimo.
Para constar, assino a presente declaração.
Assinatura do devedor: A (Ass.:
Vide o original) (Impressão digital: Vide o original)
Assinatura da testemunha:
Data: 13 de Dezembro de 2013
Observação: Caso o devedor não consiga cumprir a tempo o compromisso de devolução de empréstimo, o interessado tem o direito de pedir execução da devolução de empréstimo contra o devedor junto do tribunal de Hong Kong ou de Macau.
Os meus dados, fotografia recente e cópia do bilhete de identidade são os seguintes:
Fotografia:
[Endereço]”; (cfr., fls. 298-v a 300).
Do direito
3. Tem o presente recurso como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que – anulando a sentença do Tribunal Judicial de Base que tinha julgado improcedentes os embargos do ora recorrido – ordenou a devolução dos autos para ampliação da matéria da base instrutória e repetição do julgamento.
E como se constata do veredicto agora recorrido, dois são os “motivos” que levaram à referida decisão: a necessidade de se apurar a “causa da dívida declarada pelo embargante”, (se tem como origem um “empréstimo para jogo”), e as “circunstâncias da sua declaração”, (se foi efectuada “sob coacção”).
Insurgindo-se contra o decidido, (atento o alegado e levado às conclusões do seu recurso, e em síntese que se nos apresenta adequada), diz o embargado, ora recorrente que, no que toca à “causa da dívida”, a mesma não foi matéria pelo embargante alegada, e, assim, que ilegal é a decidida ampliação.
Quanto às “circunstâncias – (eventual) coacção para a feitura – da declaração da dívida (exequenda)”, considera ser matéria que já foi objecto de discussão na audiência de julgamento efectuada no Tribunal Judicial de Base e que tendo resultado “não provada”, apresenta-se igualmente ilegal a decretada ampliação.
Ponderado no assim considerado, merecendo o recurso conhecimento e analisados os autos e o Acórdão recorrido, eis o que se nos mostra de consignar.
–– Começando pelas “circunstâncias da assinatura da declaração de dívida”, vejamos.
Pronunciando-se sobre idêntica “questão”, teve já esta Instância oportunidade de consignar que “A ampliação da matéria de facto, determinada pelo tribunal de recurso, tem lugar quando o tribunal inferior, com poder de cognição da matéria de facto, não conhece de matéria de facto alegada, relevante e controvertida. Não, quando este tribunal julga não provados certos factos, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova”; (cfr., o Ac. de 29.06.2016, Proc. n.° 38/2016, podendo-se também sobre a matéria ver o Ac. de 29.11.2019, Proc. n.° 111/2019)
Nesta conformidade, o decidido não é de manter.
Com efeito, a “matéria em questão” foi (já) levada à base instrutória – “quesitos 2° e 3°” – e foi (efectivamente) dada como “não provada”; (cfr., fls. 72 a 72-v e 125 a 127).
Reconhece-se que os referidos “quesitos” – com a inclusão das expressões o “embargado «ameaçou» o embargante” e “devido à «ameaça»…” – podiam ter tido outra, (melhor), redacção, mais explícita e concreta.
Porém, considerando o “thema decidendum” em questão – e em causa não estando um “processo crime”, em que se averiguava ou imputava a prática de um (eventual) crime de “ameaça” ou “coacção” (ou outro) – apresenta-se-nos de considerar, atenta também a fundamentação exposta no Acórdão do Tribunal Judicial de Base, que adequada não é a decretada ampliação.
Importa ter presente que na sua decisão, podia o Tribunal restringir, (aproveitando para concretizar), a sua “resposta” (ao quesito), dando-o, (ainda que fosse) tão só em parte, como provado – não deixando assim de poder emitir (parcial) pronúncia sobre a “matéria e questão aí subjacente” – e, não sendo o que sucedeu, imperativo é que se retire uma clara “conclusão” em relação à mesma.
Por sua vez, e em relação às considerações pelo Colectivo a quo tecidas – a fls. 20 do seu Acórdão – quanto “ao que se passou no quarto do hotel”, “à viagem de regresso até Hong Kong” e “à pressão para o pagamento em falta”, outro é também o nosso ponto de vista.
Com efeito, em relação “ao que se passou no quarto do hotel”, temos para nós que é “matéria” levada aos supra referidos quesitos e que estes já a incluíam, apresentando-se, desta forma, constituir uma inadequada repetição.
No que toca à “viagem de regresso até Hong Kong” e à “pressão para o pagamento”, (e embora se entenda a preocupação do Tribunal recorrido), cabe notar que, apesar de tudo, são aspectos que se referem a um “momento posterior” ao da questionada “assinatura da dívida”, e, nesta conformidade, não se apresentando como matéria relevante ou necessária, não se pode, nesta parte, manter o decidido.
–– Quanto à “natureza ou causa da dívida”, vejamos.
Em síntese, diz o ora recorrente que tal matéria não foi alegada, pelo que motivos não existem para que venha a integrar a base instrutória, como decidido foi no Acórdão agora impugnado.
Ora, da reflexão que nos foi possível efectuar, cremos que, aqui, bem andou o Colectivo do Tribunal de Segunda Instância.
De facto, em causa está saber se foi – efectivamente – alegado se a “dívida e quantia exequenda” tem, como causa (ou origem), um “empréstimo para jogo” que, a se verificar, e escapando à “concessão de crédito” (legal) a que se refere o art. 3° da Lei n.° 5/2004, torna o seu pagamento uma (mera) “obrigação natural” e não jurídica, (art. 4° da referida Lei n.° 5/2004), cujo cumprimento não pode ser judicialmente exigível, (art. 396° do C.C.M.).
E do expediente pelo ora recorrido (tempestiva e regularmente) apresentado (a convite do Exmo. Juiz titular do processo), colhe-se que este alegou, expressamente, que “veio jogar a Macau e conheceu um bate-ficha…”, que “quando perdeu, este pagou dinheiro, que pertencia a um outro”, resultando (também) claro do aí alegado que o que sucedeu de seguida – em especial, a dita “assinatura da dívida” – está directamente relacionado com o jogo no casino que antes tinha ocorrido; (cfr., fls. 39 a 40).
Perante isto, mostra-se-nos (totalmente) acertada a decisão do Colectivo a quo em ter como alegada a matéria em questão – no sentido que a dívida exequenda tem como causa um “empréstimo para jogo” – e constituindo, como se viu, matéria relevante para a solução a adoptar em relação aos deduzidos embargos, adequada é a sua inclusão com a consequente ampliação da base instrutória em conformidade, assim como do seu julgamento pelo Tribunal Judicial de Base, proferindo-se, de seguida, nova decisão.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, anulando-se nos exactos termos consignados o Acórdão recorrido, devendo, como aí se decidiu, os autos baixar ao Tribunal Judicial de Base para se proceder à decretada ampliação da base instrutória e seu julgamento, proferindo-se, a final, nova decisão.
Custas pelo vencido a final.
Registe e notifique.
Macau, aos 19 de Fevereiro de 2020
Juízes: José Maria Dias Azedo – Song Man Lei – Sam Hou Fai
Proc. 63/2018 Pág. 24
Proc. 63/2018 Pág. 23