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Proc. nº 1027/2019
Recurso Jurisdicional em Matéria Cível
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 12 de Dezembro de 2019
Descritores:
- Usucapião
- Acessão da posse
- Posse titulada
- Presunção de má fé

SUMÁRIO:

I – Sendo nulo o contrato de compra e venda de imóvel por não observância da forma legal, ele não pode considerar-se um “meio abstractamente idóneo para adquirir o direito”, de acordo com a fórmula introduzida no art. 1183º, nº1, do Código Civil.

II – Nesse caso, a posse considera-se não titulada e presume-se de má fé (art. 1184º, do CC).

III – Sendo ilidível esta presunção, a parte interessada deve, entre os factos elencados na causa de pedir, alegar e provar o convencimento de que a sua posse jamais ofendeu os direitos de ninguém. Não o fazendo, mantem-se a presunção de má fé.
IV – Inexistindo título, nem registo da mera posse, a usucapião só pode dar-se ao fim de 20 anos (art. 1221º, do CC).

V – A acessão da posse (art. 1180º, do CC) implica uma série de posses em sucessão (diferente da sucessão hereditária), com as características de continuidade e homogeneidade.

VI – Havendo quebra dessa continuidade e homogeneidade, ou verificando-se na cadeia de transmissões alguma nulidade (v.g., por falta de forma solene na translação do direito de propriedade), não se pode dar a acessão e, em vez disso, somente é possível a invocação da posse própria e não já a dos antecessores.

Proc. nº 1027/2019

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I – Relatório
A, casada, residente na Rua XXX, na Taipa, Macau, instaurou no TJB (Proc. nº CV2-17-0064-CAO) acção declarativa com processo comum sob forma ordinária contra: ---
1. B, presumivelmente morto, porque interveio na escritura de compra e venda que se juntou como Documento n.º 4 enquanto maior em 1932 (data em que a idade em que se atingia a maioridade era 21 anos) pelo que terá hoje 106 anos, ---
2. C, herdeira de B, presumivelmente morta, cfr. Doc. 5 apresentado no artigo 8.º, com última morada conhecida no Prédio posteriormente identificado. ---
3. HERDEIROS INCERTOS DE D; e ---
4. E, solteira, titular do BIR n.º 7279015(7) emitido em 28 de Agosto de 2013 pelos Serviços de Identificação de Macau, residente na Rua do XXX, Taipa, Macau, ---
Pedindo, com fundamento em usucapião, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre prédio que na petição identifica.
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A sentença julgou a acção improcedente.
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É contra essa sentença que ora vem interposto pela autora o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações, estão formuladas as seguintes conclusões:
“1. A ora Recorrente veio no âmbito da acção ordinária onde foi A. pugnar pela aquisição originária por usucapião do prédio urbano sito na Taipa, na Rua Ho Lin Vong nºs. 10 e 12, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 6101 a fls. 11 do Livro B24.
2. O Tribunal a quo julgou improcedente a acção e decidiu absolver os Réus B e C do pedido formulado pela A., para tal invocando a falta de actos demonstrativos da posse, subsumíveis aos pressupostos do pedido da A. ora Recorrente.
3. A sentença ora recorrida é claramente nula nos termos e para os efeitos do artigo 571º n.º 1 alínea c) do CPC , porquanto os seus fundamentos estão em manifesta oposição com a decisão.
4. Entende a ora Recorrente que a sentença violou, ainda, o disposto nos artigos 1580º e 1581º do Código de Seabra; o artigo 12º do Código Civil Português de 1966 e os artigos 6º, 12º, 1175º, 1178º, 1179º,1180º, 118P, 1184º, 1185º, 1186º, 1212º, 122P, 124P e 1249º.
5. Pelo que, o entendimento do Tribunal a quo devia ter sido no sentido de que não só a ora Recorrente (alí Autora) tem a posse assim como houve posse dos seus antecessores quer por via do justo título quer por via da entrega do prédio à A.
6. Não podia o Tribunal a quo deixar de admitir a presunção de continuidade da posse por parte de quem a começou.
7. Pelo que, entende a ora Recorrente que tem a posse e houve acessão na posse, somando a sua posse à dos antecessores.
8. Para concluir que se encontra completado o prazo de usucapião tendo deste modo adquirido a propriedade do prédio.
NESTES TERMOS, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, consequentemente, ser revogada a douta sentença recorrida, proferindo-se Acórdão que dê provimento ao presente Recurso e que declare ser a ora Recorrente, para todos os efeitos legais, nomeadamente, para efeitos de registo único e pleno, proprietária do prédio urbano sito na Taipa, na Rua Ho Lin Vong nºs. 10 e 12, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 6101 a fls. 11 do Livro B24., via aquisição originária por usucapião, ao abrigo do disposto nos artigos 1179º, 1180º, 1183º, 1212º e 122P, todos do CCM.
Decidindo desta forma, farão V.Exas., a devida JUSTIÇA!”
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
“- A Autora está casada no regime de separação de bens com F.
- O prédio urbano sito na Taipa, na Rua Ho Lin Vong, nºs 10 e 12, está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 6101 a fls. 11 do livro B24.
- O prédio encontra-se inscrito na matriz predial urbana de Macau com referência matricial n.º 40258 em nome de G e tem o valor matricial de MOP$1.720,00.
- Em 5 de Novembro de 1932, G vendeu o supra identificado prédio a B.
- O prédio encontra-se registado em nome B, conforme inscrição n.º 12033, a fls. 171 do livro G11.
- Por documento particular datado de 9 de Abril de 1987, C, declarou doar o prédio sito na Taipa, na Rua Ho Lin Vong, nº 10 do R/C à D.
- A D era mãe de H, sogra de I e avó de 4ª Ré.
- D faleceu em Macau no passado dia 28 de Setembro de 2003.
- Depois da morte de D, a 4ª Ré continuou a viver no prédio onde viveu com D quando esta estava viva.
- Por contrato celebrado em 18 de Dezembro de 2007, a 4ª Ré, declarando ser proprietária do prédio, vendeu-o à Autora.
- Recebendo a totalidade do preço acordado e entregando as respectivas chaves à Autora.
- A Autora, com intenção de ser dona do prédio, passou a ocupá-lo para fins comerciais.
- Não obstante ter dois números policiais (10 e 12), o prédio só tem uma entrada.
- Na referida entrada (com os números policiais 10 e 12) encontra-se hoje um estabelecimento comercial denominado “Farmácia Chinesa XXX” explorada pela Autora.
- Desde 18 de Dezembro de 2007, a Autora tem vindo a comportar-se como verdadeira e única proprietária do prédio.
- À vista de todos e sem qualquer oposição.
- Com a convicção de ser a sua única, legítima, e plena proprietária.
- Actuando sempre com “animus sibi habendi”.
- A partir do momento em que a Autora comprou e recebeu as chaves do prédio, passou a ser reconhecida como a dona do mesmo por aqueles que consigo privavam, nomeadamente vizinhos.”
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III – O Direito
1. Invocando uma cadeia sucessiva de actos de posse, por si e pelos seus antecessores, a autora pretendia usucapir a propriedade a seu favor de um determinado prédio urbano.
A sentença, porém, e não obstante reconhecer que estariam demonstrados o corpus e o animus possidendi, acabou por não reconhecer à autora o direito de propriedade com fundamento na usucapião. Ou seja, partiu do princípio de que a posse da autora era titulada (com base na aquisição por contrato a E) e presumivelmente de boa fé, nos termos do art. 1183º e 1184º do C. C. Mas, por não se ter verificado registo do título, nem da mera posse, considerou ser de 15 anos o prazo para usucapir, segundo o art. 1221º, do CC, prazo ainda não decorrido (só teriam passado 11 anos).
Cremos, em primeiro lugar, que se o contrato de aquisição pela autora do prédio a E foi celebrado por documento meramente particular (docs. 9 e 10, juntos com a p.i.), e não por escritura pública (art. 94º, nº1, do C.N.) então ele sofre de um vício formal que o torna nulo (arts. 212º, 287º e 866º, do CC).
E sendo nulo por essa razão, o negócio jurídico celebrado não é um” meio abstractamente idóneo para adquirir o direito”, de acordo com a fórmula introduzida no art. 1183º, nº1, do CC1. Ou seja, a posse tem que ter origem num facto jurídico, abstractamente idóneo para provocar a aquisição do direito, que “pode ser inválido substancialmente, mas não formalmente” (tb. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, Reprint, pág. 469).
Em suma, o nº1 do art. 1183º não dispensa a validade formal. Isto é, “A falta de validade formal impede que se fale de título” (Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 5ª ed, revista e ampliada, pág. 97; também Mota Pinto, Direitos Reais, 1971, pág. 199; Orlando de Carvalho, Direito das Coisas, Coimbra Editora, 2012, pág. 280; na jurisprudência comparada, Ac. do STJ, de 19/93/1981, in BMJ nº 305, pág. 294; da RC, de 9/10/1984, In CJ, 1984, IV; pág. 46).
Ora, sendo assim, não havendo título, esta presume-se de má fé (art. 1184º, nº2). O que significa que, por falta de título e de registo da posse, neste caso, o prazo para a usucapião só ocorre ao fim de 20 anos e não apenas 15, como foi afirmado na sentença (art. 1221º). Afirmamo-lo porque quando o art. 1221º se refere a falta do registo do título está igualmente a cobrir os casos em que o título inexiste de todo (Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, Reprint, pág. 473; tb. Ac. do TSI, de 12/04/2018, Proc. nº 1115/2017; no direito comparado, Ac. da RC, de 4/10/1988, in BMJ nº 380, pág. 553).
Claro está que esta presunção de má fé, com o apoio literal que deriva do nº2, do citado art. 1184º, é “iuris tantum”, ilidível, portanto (art. 343º, nº2, do CC).
Significa isto que, apesar da presunção, deveria a autora alegar e provar que a sua posse, além da demonstração do “corpus” e do “animus”, e além da prova de que ela sempre foi pública e pacífica (à vista de todos e sem oposição), não ofendia o direito de ninguém. Isto é, para ilidir a referida presunção, deveria ter alegado e provado que sempre esteve convencida de que, com a sua posse, não lesava direitos alheios ( P. Lima e A. Varela, ob. cit., pág. 21).
Acontece que a autora, quiçá por esquecimento, não incluiu entre a factualidade específica da causa de pedir invocada nenhum facto relativo a esta elisão. E, por conseguinte, se nenhum elemento existe que afaste a presunção de má fé que lhe dota a posse sem título, será com estas características (de má fé) que a sua posse se deve presumir.
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2. A sentença, depois daquela conclusão, refutou a argumentação da autora tendo por base o art. 1180º do CC (acessão da posse). Para o fazer, a decisão impugnada afirmou que a autora não pode somar a sua posse às eventuais posses anteriores, em virtude de nada ter sido alegado sobre actos demonstrativos da posse dos antecessores, além de que a autora não logrou demonstrar que B deixou o imóvel por morte a C, nem que D deixou o prédio a E, o que revela uma quebra na cadeia de posses e inviabiliza a acessão.
Sim, é verdade. Não está demonstrado o modo pelo qual o prédio adveio de B para C. Igualmente, não está provado que D doou o prédio a E. Então, estas quebras na continuidade impedem a acessão, porque este instituto, em especial face ao disposto no nº1, do art. 1180º citado, implica uma série de posses em sucessão (diferente da sucessão hereditária) com as características de continuidade e homogeneidade (apud. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ªed. revista e actualizada, pág. 14).
Vale a pena salientar, por outro lado, que dentro dessa solução de continuidade2, as transmissões [nulas] por falta de forma, em negócios que deveriam respeitá-la, não contam para efeitos de “Prescrição aquisitiva” ou usucapião (Ac. do STA, de 6/07/1976, Proc. nº 66256, in BMJ nº 259, pág. 227).
Ou, como é dito noutro aresto, “I - A acessão de posses pressupõe e exige a existência de um vínculo jurídico por via do qual a situação possessória haja sido regularmente transmitida ao que actualmente a invoca. II - Transmitida a posse por mera tradição verbal, acto nulo como modo legítimo de aquisição de propriedade imobiliária, apenas pode ser invocada a exercida pessoalmente e não a posse dos seus antepossuidores” (Ac. da RP, de 7/01/1976, Proc. nº 11386, in BMJ nº 256, pág. 170).
Tendo isto presente, chega-se à conclusão que apenas pode ser considerada a posse da autora/recorrente para os efeitos pretendidos, tal como a sentença assinalou.
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3. Vale isto por dizer que a sentença não padece do vício de nulidade que a recorrente lhe imputa (art. 571º, nº1, al. c), do CPC). Com efeito, os factos provados na parte alusiva aos arts. 21º a 26º3 da BI apenas dizem respeito ao “animus” e “corpus”, com referência à posse pública e pacífica, mas já não à posse continuada por si e seus antecessores. E, por assim ser, não há a mais leve ponta de contradição entre a fundamentação de facto apurada e a decisão tomada.
A sentença tem pois que manter-se, ainda que com a correcção fundamentativa aludida em III.1.
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IV - Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
T.S.I., 12 de Dezembro de 2019
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 No art. 1259º, nº1 do CC de 1966, em vez daquela expressão, estabelece esta outra “modo legítimo de adquirir”.
2 É fórmula recorrente alegar-se a este respeito “por si e seus antecessores”.
3 Na sentença, os factos provados vieram descritos sem obediência a uma numeração, talvez para fugir ao lapso na resposta aos artigos da BI de fls. 128 a 130, onde está repetido o quesito 21º.
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Proc. nº 1027/2019 1