Processo n.º 120/2019. Recurso jurisdicional em matéria administrativa.
Recorrente: Serviços de Saúde de Macau.
Recorridos: A e B.
Assunto: N.º 4 do artigo 549.º do Código de Processo Civil. Resposta não escrita. Recurso. Tribunal de Segunda Instância. Excesso de pronúncia. Poder de cognição. Matéria de direito. Matéria de facto. Danos causados por funcionamento anormal do serviço público.
Data do Acórdão: 29 de Novembro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Song Man Lei e Sam Hou Fai.
SUMÁRIO:
I – Pode o tribunal de recurso, tanto o Tribunal de Segunda Instância, como o Tribunal de Última Instância, oficiosamente, mesmo não havendo recurso da matéria de facto, no primeiro caso, considerar não escrita pronúncia do tribunal de 1.ª Instância, em matéria de facto, nos termos do n.º 4 do artigo 549.º do Código de Processo Civil.
II – Se o único recorrente não impugna, no recurso, matéria de facto, não pode o TSI, oficiosamente, alterar a decisão de facto, com base em meio de prova livre, submetido à convicção do tribunal, sem que houvesse qualquer contradição com a restante decisão de facto, por não se tratar de matéria de conhecimento oficioso.
Tendo o TSI alterado matéria de facto, sem impugnação do recorrente, violou o princípio dispositivo, nos termos do n.º 3 do artigo 563.º do Código de Processo Civil e incorreu em excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 571.º, n.º 1, alínea d), parte final e 633.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que provoca nulidade do acórdão.
III - Cabe ao autor o ónus da prova dos factos integrantes dos pressupostos da responsabilidade civil do médico ou do hospital público.
IV - A obrigação do médico e do hospital é uma obrigação de meios e não de resultado, tendo uma obrigação de diligência ou de cuidado.
V – A Administração é responsável civilmente pelos danos causados que se devam a um funcionamento anormal do serviço, mesmo que não se identifique nenhum funcionário ou agente causador dos mesmos danos.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A e B intentaram acção declarativa contra Serviços de Saúde de Macau, pedindo a sua condenação no pagamento de MOP$1,500,000.00 (um milhão e quinhentas mil patacas), com fundamento em erros médicos do Centro Hospitalar Conde de S. Januário (CHCSJ), de que resultou a morte da filha dos autores, C.
A acção foi julgada improcedente por sentença do Tribunal Administrativo, de 29 de Outubro de 2018.
Recorreram os autores A e B para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), que, por acórdão de 6 de Junho de 2019:
a) Oficiosamente, considerou não escrita a resposta não provado ao quesito 7.º da base instrutória, julgou não provada a resposta ao quesito 9.º da mesma base, por existir alguma incoerência com o facto assente da alínea C) e alterou a alínea P) dos factos assentes;
b) Revogou a sentença e condenou o réu Serviços de Saúde de Macau a pagar aos autores A e B a quantia de MOP$1,000,000.00 (um milhão de patacas).
Inconformados, interpõe o réu Serviços de Saúde de Macau, recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do acórdão recorrido e suscitando as seguintes questões:
- Ao alterar a matéria de facto dada como provada, quando os ora recorridos não interpuseram recurso da matéria de facto e as circunstâncias do caso não se subsumem no artigo 629.°, n.º 1, alínea b), e n.º 4, do Código de Processo Civil, o TSI incorreu em nulidade por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 571.°, n.º 1, alínea d), 2.a parte, 563.°, n.º 3, e 589.°, n.os 2, 1.a parte, e 3, aplicáveis ex vi artigo 633.°, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
- Ao alterar a matéria de facto provada para nela fazer incluir matéria de facto que não foi alegada nos autos, o TSI violou o princípio do dispositivo, ínsito no artigo 5.°, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, redundando essa intervenção numa nulidade com influência sobre o julgamento da causa.
- Ao substituir os factos descritos no artigo 9.° da Base Instrutória e na alínea P) dos Factos Assentes - que haviam sido admitidos por acordo entre as partes - por outros, que não foram alegados ou provados nos autos, o TSI incorreu em erro de julgamento, violando o disposto nos artigos 562.°, n.º 3, e 629.°, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil
- Os ora recorridos não alegaram ou provaram em que se consubstancia a leges artis, pelo que é jurídica e judicialmente impossível concluir que os médicos assistentes a violaram culposamente e que tal violação tenha conduzido à morte da vítima.
- Ao presumir a ilicitude, a culpa e o nexo de causalidade, à míngua de factos alegados e provados pelos ora recorridos, propugnando uma inversão do ónus da prova, o TSI incorreu em erro de julgamento, violando o artigo 335.°, n.º 1, do Código Civil.
- Ao adoptar presunções judiciais a partir de factos que não foram alegados pelas partes ou julgados provados, o TSI incorreu em erro de julgamento, violando os artigos 342.° e 344.° do Código Civil.
- Ao adoptar presunções judiciais em matéria técnico-científica de natureza médica em termos que não resultam da experiência comum, da lógica corrente ou da intuição humana e em contradição com os depoimentos prestados nos autos por médicos, o TSI incorreu em erro de julgamento, violando os artigos 342.° e 344.° do Código Civil.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso quanto ao mérito, opinando pela absolvição do réu e pela improcedência quanto à alteração da matéria de facto, com excepção da supressão da resposta ao quesito 9.º, em que entende merecer o recurso provimento.
II – Os factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
Da Matéria de Facto Assente:
- No dia 2 de Abril de 2014, no Centro Hospitalar Conde de São Januário (doravante, o CHCSJ), nasceu a filha dos AA. C (doravante designada por vítima) (alínea A) dos factos assentes).
- A vítima nasceu com uma malformação física que afectava apenas a sua audição (alínea B) dos factos assentes).
- Na consulta de especialidade de pediatria de dia 8 de Janeiro de 2015, foi confirmado pelo pediatra Dr. D que a vítima sofria de síndrome de polimicrogiria com desenvolvimento tardio e deficiência auditiva (alínea C) dos factos assentes).
- Devido à condição de que padecia, a vítima perdeu a audição do ouvido direito (alínea D) dos factos assentes).
- Os AA. deslocavam-se respectivamente em 5 e 12 de Maio, 3 e 8 de Setembro de 2015, a consultas das especialidades de Desenvolvimento de Pediatria, de Pediatria Neonatologia e de Cirurgia Plástica, a fim de receber os tratamentos necessários para melhorar a sua condição física (alínea E) dos factos assentes).
- Na consulta de cirurgia plástica referido em E), de 3 de Setembro de 2015, o médico Dr. E concluiu pela necessidade de intervenção cirúrgica plástica à vítima a fim de corrigir a malformação física que a mesma padecia (alínea F) dos factos assentes).
- A intervenção cirúrgica referida em F) foi realizada por Dr. E (alínea G) dos factos assentes).
- Pelas 13h00, no decorrer da intervenção referida em F), os AA. foram informados por Dr. E que ocorreram complicações durante a cirurgia e que tinham surgido obstruções nas vias respiratórias da vítima (alínea H) dos factos assentes).
- Pelas 16h00, os AA. foram informados por Dr. E que era necessário realizar uma outra intervenção cirúrgica à vítima, ou seja, uma cirurgia ao pescoço para efeitos de entubação (alínea I) dos factos assentes).
- A pedido do Dr. E, os AA. assinaram os termos de consentimento para a realização dos outros procedimentos cirúrgicos, nomeadamente, uma traqueotomia (alínea J) dos factos assentes).
- Pelas 20h00 horas, Dr. E e Dra. F informaram que a vítima tinha sofrido uma paragem cardíaca no decorrer da operação, mas que foi ressuscitada com sucesso (alínea K) dos factos assentes).
- No final da noite do mesmo dia, os AA. conseguiram ver a sua filha, a qual estava inconsciente e sem qualquer reacção (alínea L) dos factos assentes).
- Às 00h00 horas, a vítima continuava inconsciente e sem acordar (alínea M) dos factos assentes).
- A vítima esteve em coma profundo após a cirurgia (alínea N) dos factos assentes).
- A vítima acabou por falecer no dia 2 de Março de 2016, às 18h10 (alínea O) dos factos assentes).
- Resultou da certidão de óbito junta que a causa directa da morte da vítima é “Other complications of surgical and medical care, not elsewhere classified”, traduzido em português “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens” (alínea P) dos factos assentes).
- A morte da vítima causou e continuará a causar sempre aos AA. profunda dor, angústia, desgosto, sofrimento e revolta (alínea Q) dos factos assentes).
- Os AA. jamais irão recuperar da perda da sua filha, a qual, juntamente com a irmã mais velha, era a esperança de vida e razão de viver dos AA. (alínea R) dos factos assentes).
- A vítima era uma menina de 2 anos, com muita alegria de viver e com uma vida por preencher, cheia de sonhos e projectos de vida (alínea S) dos factos assentes).
- O tempo de dois meses decorridos entre a intervenção cirúrgica e a morte da vítima foi intensamente insuportável para os AA. (alínea T) dos factos assentes).
- Os AA. tiveram de presenciar a filha em estado de coma, sem saberem se estava em sofrimento ou não e sem nada poderem fazer para a ajuda (alínea U) dos factos assentes).
- Os AA. sempre tiveram esperança que a filha fosse recuperar da intervenção cirúrgica (alínea V) dos factos assentes).
Da Base Instrutória:
- A intervenção cirúrgica referida em F) ficou agendada para o dia 6 de Janeiro de 2016 (resposta ao quesito 2° da base instrutória).
- Pela malformação física descrita em B), havia suspeita de que a vítima sofria do síndrome "TREACHER COLLINS SYNDROME" (resposta ao quesito 9° da base instrutória).
- A intervenção cirúrgica referida em F) era de reparo de fenda palatina (resposta ao quesito 10° da base instrutória).
- Na consulta externa, Dr. D diagnosticou um aumento de peso insatisfatório da vítima, mas sem qualquer infecção no trato respiratório, tendo sido seguida por um período de tempo na Consulta Externa de Desenvolvimento Infantil (resposta ao quesito 11° da base instrutória).
- No dia 5 de Junho de 2014, a vítima foi encaminhada para o médico do Serviço de Cirurgia Plástica, Dr. E, que sugeriu que a vítima fizesse uma cirurgia de reparo da fenda palatina entre as idades de 1 ano e meio e dois anos (resposta ao quesito 12° da base instrutória).
- No dia 3 de Dezembro de 2015, o médico da Consulta Externa de Anestesiologia, G, realizou a avaliação pré-operatória à vítima, tendo determinado que o risco operatório era baixo a moderado, Mallapanti II da via aérea, APTO ASA (American Society of Anesthesiologists), ou seja, risco de nível II (numa escala de I a IV) (resposta ao quesito 13° da base instrutória).
- Depois desta avaliação, foi dado conhecimento à A. quanto aos riscos da anestesia, tendo sido assinado um termo de consentimento (resposta ao quesito 14° da base instrutória).
- Na manhã de 5 de Janeiro de 2016, a vítima foi admitida na Unidade de Internamento do Serviço de Pediatria de modo a ser preparada para a intervenção cirúrgica que iria ser realizada no dia seguinte (resposta ao quesito 15° da base instrutória).
- Na preparação para a cirurgia a médica responsável pela anestesia e entubação/extubação, Dra. F, consultou o sistema informático HIS onde se fazia referencia à malformação mandibular da paciente com suspeitas da paciente padecer do síndrome de treacher collins e onde se indicava que o risco dado na avaliação pré-operatória fora nível II (baixo a moderado) (resposta ao quesito 16° da base instrutória).
- No dia 6 de Janeiro de 2016, pelas 08h30 horas, a vítima foi enviada para o Bloco Operatório Central (resposta ao quesito 17° da base instrutória).
- Pelas 09h00 horas, Dra. F começou a administrar os medicamentos anestésicos à vítima e de seguida começou o processo de entubação (resposta ao quesito 18° da base instrutória).
- Dra. F tentou por duas vezes ver o tamanho da epiglote da vítima com laringoscópio, mas não conseguiu proceder à entubação (resposta ao quesito 19° da base instrutória).
- O Chefe do Serviço de anestesia, Dr. H, também solicitado para colaborar na realização da entubação, optou por utilizar um laringoscópio maior e concluiu a entubação à vítima com sucesso (resposta ao quesito 20° da base instrutória).
- Dr. E concluiu com sucesso a cirurgia de reparo da fenda palatina da vítima (resposta ao quesito 21° da base instrutória).
- Após a intervenção cirúrgica, Dra. F optou por não manter a vítima entubada por mais tempo e decidiu realizar a extubação (resposta ao quesito 22° da base instrutória).
- Nessa altura, a vítima tinha todos os sinais vitais fortes, com respiração espontânea (valor de SP02 a 99%) (resposta ao quesito 23° da base instrutória).
- Pelas 13h36 horas, Dra. F removeu o tubo endotraqueal da vítima (resposta ao quesito 24° da base instrutória).
- Depois da extubação, continuou a ser administrado oxigénio à vítima, mas esta não conseguia tossir de uma forma natural (resposta ao quesito 25° da base instrutória).
- Tentou-se a posição lateral na vítima e constatou-se uma queda do valor de SP02 (resposta ao quesito 26° da base instrutória).
- Imediatamente, Dra. F tentou elevar a mandíbula superior da vítima de forma a facilitar a ventilação, tendo sido aplicada uma máscara de ventilação, mas a vítima não apresentou melhoras (resposta ao quesito 27° da base instrutória).
- Foi solicitada ajuda a Dr. H, mas a paciente teve uma paragem cardíaca (resposta ao quesito 28° da base instrutória).
- Foi administrado “Adrenaline” à vítima, tendo esta recuperado o batimento cardíaco, e Dr. H procedeu a nova entubação endotraqueal (resposta ao quesito 29° da base instrutória).
- Depois de recuperada a frequência cardíaca da vítima, Dr. H procedeu à auscultação estetoscópia dos pulmões e do estômago da paciente, tendo sido verificado pela curva de ETC02 que a entubação por si realizada fora um sucesso (resposta ao quesito 30° da base instrutória).
- Alguns minutos mais tarde, o batimento cardíaco da vítima baixou outra vez tendo entrado em nova paragem cardíaca (resposta ao quesito 31° da base instrutória).
- Dra. F orientou o processo de ressuscitação, tendo sido efectuada à vítima compressão toráxica (resposta ao quesito 32° da base instrutória).
- Dr. H decidiu extubar a vítima e optou por realizar de seguida nova entubação (resposta ao quesito 33° da base instrutória).
- Depois desta entubação, o SPO2 a frequência cardíaca da vítima aumentou, mas a sua situação hemodinâmica era instável, tendo tido nova paragem cardíaca (resposta ao quesito 34° da base instrutória).
- Foi realizada nova ressuscitação à vítima (resposta ao quesito 35° da base instrutória).
- Dr. H propôs chamar um otorrinolaringologista, Dr. I, para uma possível traqueotomia urgente à vítima (resposta ao quesito 36° da base instrutória).
- Subsequentemente, verificou-se que os níveis da curva de ETCO2 da vítima estavam irregulares, não sendo, por isso, possível utilizar o ventilador (resposta ao quesito 37° da base instrutória).
- Foi realizada uma fibroncospia sob anestesia uma vez que suspeitava que a vítima pudesse ter alguma obstrução na traqueia e quanto à localização do tubo endotraqueal (resposta ao quesito 38° da base instrutória).
- Uma vez que a fibroncospia tinha uma imagem pouco nítida, não houve certeza do que estava a obstruir a traqueia da Paciente, e por este motivo foi chamado um médico pneumologista, Dr. J, para prestar apoio (resposta ao quesito 39° da base instrutória).
- Foi também solicitada a presença de uma médica pediatra, Dra. K, na sala de operações (resposta ao quesito 40° da base instrutória).
- Tentou fazer-se a ventilação mecânica e Dra. K sugeriu a realização de um Raio-X para confirmar a localização do tubo endotraqueal, pelo que solicitou que outra médica pediatra, Dra. L, estivesse presente (resposta ao quesito 41° da base instrutória).
- Cerca das 15h00 horas, Dra. L, pela análise do Raio-X sugeriu que o tubo não se encontrava na traqueia mas sim no esófago da vítima (resposta ao quesito 42° da base instrutória).
- Nesse momento, Dra. L deu uma explicação para o bom nível de oxigenação no sangue da vítima (resposta ao quesito 43° da base instrutória).
- Dra. L sugeriu que, quando o tubo se encontra nesse local, como o tubo não tem balão uma parte do gás com alta concentração oxigénio poderá entrar na via aérea e nos pulmões, o que poderá fornecer a indicação aparente de que a paciente possa ter um bom nível de oxigenação no sangue (resposta ao quesito 44° da base instrutória).
- Apesar das dúvidas face aos valores SPO2 da vítima que estavam normais, após uma breve conferência sobre o assunto, os médicos intervenientes concordaram realizar um Raio-X toráxico lateral para se confirmar se o tubo estava realmente introduzido no local correcto (resposta ao quesito 45° da base instrutória).
- Só através do Raio-X se confirmou-se que o tubo se encontrava no esófago e não na traqueia (resposta ao quesito 46° da base instrutória).
- Dr. H imediatamente retirou o tubo endotraqueal da vítima, e rapidamente a frequência cardíaca da paciente baixou havendo necessidade de realizar compressão toráxiça (resposta ao quesito 47° da base instrutória).
- Dr. H tentou fazer nova entubação, mas sem sucesso, e por fim acabou por efectuar a ventilação LMA e manteve-se um nível estável de SPO2 na vítima (resposta ao quesito 48° da base instrutória).
- Posteriormente foi substituída a ventilação LMA pro nova entubação, tendo-se constatado que as cordas vocais da vítima se encontravam numa posição diferente (resposta aos quesitos 49.º a 51° da base instrutória).
- Às 18h00 horas a entubação endotraqueal foi feita e com boa ventilação, tendo sido um êxito a ligação ao ventilador automático (resposta ao quesito 52° da base instrutória).
- Às 19h00 horas, a vítima foi enviada para a Unidade de Internamento do Serviço de Pediatria (resposta ao quesito 53° da base instrutória).
- Depois de ter sido transferida, a vítima continuou a ser ventilada mecanicamente, mas manteve-se em estado de coma durante algum tempo com sinais vitais instáveis, acabando mais tarde por vir a falecer (resposta ao quesito 54° da base instrutória).
III – O Direito
1. Questões a apreciar
Há que apreciar as questões suscitadas pelo recorrente.
2. Resposta não escrita do Tribunal Colectivo
Imputa o recorrente nulidade por excesso de pronúncia ao acórdão recorrido, por, oficiosamente, ter considerado não escrita a resposta não provado ao quesito 7.º da base instrutória, por ser matéria conclusiva, em virtude de não ter havido recurso da matéria de facto.
O quesito 7.º era o seguinte:
A morte da vítima podia ter sido evitada com diagnóstico, tratamento adequado dos técnicos de saúde do CHCSJ?
A resposta do Tribunal Colectivo foi: não provado o quesito.
Ora, em bom rigor, esta questão é inútil dado que, não se provando a matéria do quesito, o resultado é o mesmo que não existir quesito ou considerar não escrita a resposta ao mesmo quesito.
Ainda que assim não fosse, considerar não escrita uma decisão de facto do Tribunal Colectivo, com fundamento no disposto no n.º 4 do artigo 549.º do Código de Processo Civil, não constitui uma questão de facto, mas mera questão de direito, que pode ser tomada pelo Tribunal de recurso oficiosamente, incluindo o TUI e até pelo juiz que profere a sentença de 1.ª Instância1.
Assim, não existe nesta parte qualquer excesso de pronúncia
3. A alteração oficiosa da resposta ao quesito 9.º da Base instrutória pelo acórdão recorrido
Entende o recorrente que o acórdão recorrido não podia ter alterado a resposta ao quesito 9.º, imputando o recorrente nulidade por excesso de pronúncia.
O quesito 9.º dizia:
Pela malformação física descrita em B) havia suspeita de que a vítima sofria do síndrome “Treacher Collins Syndrome”?
Na audiência de julgamento, as partes acordaram em considerar provado o facto e o Tribunal Colectivo julgou nesse sentido.
O acórdão recorrido alterou tal facto, substituindo a suspeita por certeza, com base nos documentos clínicos juntos aos autos.
Não podia tê-lo feito, com base em meio de prova não pleno, dado não ter havido recurso da matéria de facto.
Como dissemos no acórdão proferido hoje, no Processo n.º 111/2019:
“No recurso para o TSI, a ré, única recorrente não impugnou estas decisões da matéria de facto.
Logo, o acórdão recorrido não podia ter alterado tais decisões sobre a matéria de facto. É uma aplicação óbvia do princípio dispositivo, não tendo o Tribunal poderes oficiosos nesta matéria.
Quando está em causa matéria de facto, que não foi objecto de impugnação pelo recorrente, o TSI só pode anular essa matéria no quadro do n.º 4 do artigo 629.º do Código de Processo Civil: quando repute a decisão deficiente, obscura ou contraditória sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta e apenas no âmbito do recurso, mesmo oficiosamente.
O acórdão recorrido alterou tais respostas, invocando o artigo 629.º do Código de Processo Civil, quando os poderes previstos neste artigo pressupõem a impugnação, que não existiu, salvo na apreciação oficiosa de provas não constantes das alegações das partes, quando houver impugnação da matéria de facto e tiver ocorrido gravação dos depoimentos, nos termos da segunda parte do n.º 2 e dos poderes previstos no n.º 4, já vistos.
Se o único recorrente impugna uma parte apenas da matéria de facto, nos termos legais, não pode o TSI, a propósito de tal recurso, alterar outras partes da decisão de facto, sem que houvesse qualquer contradição com a restante decisão de facto, por não se tratar de matéria de conhecimento oficioso, violando o princípio dispositivo, nos termos do n.º 3 do artigo 563.º do Código de Processo Civil.
Tendo-o feito incorreu em excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 571.º, n.º 1, alínea d), parte final e 633.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que provoca nulidade do acórdão”.
Concluindo, o TSI não tem poderes oficiosos para alterar a matéria de facto, substituindo a sua convicção na apreciação de provas constantes dos autos, que não constituem prova plena, pela convicção do Tribunal Colectivo de 1.ª Instância, por não ter havido recurso da matéria de facto e, assim não ter procedido à audição da gravação da audiência.
Há nulidade por excesso de pronúncia do acórdão recorrido nesta parte, mantendo-se a resposta ao quesito 9.º da base instrutória, dada pelo Tribunal Colectivo.
4. A alteração oficiosa da alínea P) da matéria assente pelo acórdão recorrido
Entende o recorrente que o acórdão recorrido não podia ter alterado a alínea P) da matéria de facto assente, imputando o recorrente nulidade por excesso de pronúncia.
A alínea P) da matéria de facto assente tinha o seguinte teor:
«Resultou da certidão de óbito junta que a causa directa da morte da vítima é “Other complications of surgical and medical care, not elsewhere classified”, traduzido em português “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens”».
O acórdão recorrido alterou-a para:
«Resultou da certidão de óbito junta que a causa directa da morte da vítima é “Other complications of surgical and medical care, not elsewhere classified”, traduzido em português “outras complicações cirúrgicas e assistência médica, não classificadas noutros itens”, com o conteúdo pormenorizadamente constante do relatório de autópsia de fls. 290 a 292, cujo teor se dá por integralmente reproduzido aqui para todos os efeitos».
Para tal, o acórdão recorrido invocou o disposto no n.º 3 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, dizendo que a alínea era insuficiente.
Mas não podia fazê-lo.
Dá-se aqui por reproduzido o nosso acórdão de 29 de Novembro de 2019, proferido no Processo n.º 111/2019.
Não havia qualquer insuficiência da matéria provada dado que a matéria da alínea P), elaborada pelo Ex.mo Juiz do processo, teve por fonte o artigo 53.º da petição inicial, onde não constam os acrescentamentos do acórdão recorrido.
Foi claramente violado o princípio dispositivo.
Há nulidade por excesso de pronúncia do acórdão recorrido nesta parte, mantendo-se a alínea P) da matéria assente.
5. Mérito da causa. Responsabilidade civil extra-contratual
A sentença elaborada pelo Ex.mo Juiz do processo concluiu que não foi possível apurar a causa da morte da vítima, nem se provou nenhum facto donde resultasse ter havido violação das legis artis nos actos médicos realizados na operação à vítima e no pós-operatório. Daí que tenha absolvido do pedido de indemnização a entidade responsável pelo hospital em questão.
Já o acórdão recorrido - com um voto de vencido quanto à decisão, por falta de demonstração do nexo causal entre a morte da vítima e os erros nos actos médicos cometidos durante a cirurgia – entendeu:
1 - Cabe ao autor o ónus da prova dos factos integrantes dos pressupostos da responsabilidade civil do médico ou do hospital.
2 - A obrigação do médico é uma obrigação de meios e não de resultado, tendo ele uma obrigação de diligência ou de cuidado.
3 – Houve omissão dos deveres de cuidado dos médicos e de diligência, particularmente erros na entubação da vítima, que eram exigíveis nas circunstâncias, pelo que houve ilicitude de tais actos médicos.
4 – Houve culpa por parte da equipa médica.
5 – Há nexo causal entre os factos e a morte da vítima.
6 - Os autores têm danos não patrimoniais resultantes da morte da sua filha.
6. Responsabilidade civil extra-contratual
Apreciemos a questão em apreço.
Não temos nada a objectar às conclusões a que chegou o acórdão recorrido e que numerámos com 1 e 2:
1 - Cabe ao autor o ónus da prova dos factos integrantes dos pressupostos da responsabilidade civil do médico ou do hospital.
2 - A obrigação do médico é uma obrigação de meios e não de resultado, tendo ele uma obrigação de diligência ou de cuidado.
A questão mais complexa é a de saber se se provaram factos donde resulte a ilicitude e a culpa nos actos médicos praticados (em sentido amplo, envolvendo actos dos médicos e de todos os outros profissionais de saúde que intervieram na operação à vítima e no pós-operatório).
Deve começar-se por dizer que os factos alegados pelos autores na petição inicial a tal respeito foram claramente insuficientes, por ela não sendo possível saber que falhas apontaram os autores à intervenção cirúrgica e ao pós-operatório.
Os autores limitaram-se a alegar que a filha foi submetida a uma intervenção cirúrgica, que ficou inconsciente durante vários dias e que acabou por falecer, após coma durante 59 dias. E acrescentaram que a cirurgia plástica era simples e que surgiram complicações respiratórias e paragens cardíacas, que originou o coma e a morte, sendo esta devida a conduta negligente dos técnicos de saúde do CHCSJ.
E nada mais.
Foi o réu que veio prestar, na contestação, alguma informação sobre as circunstâncias em que ocorreu a intervenção cirúrgica e o pós-operatório, factos esses que se vieram a provar.
Mas, como é evidente, o autor de uma acção não deve esperar que seja o réu a contribuir para o êxito da acção. O réu, provavelmente, apenas alegou aquilo que era do seu interesse.
A doente foi operada para reparação da fenda palatina na boca.
A anestesista teve dificuldades em entubar a paciente, pelo que foi chamado o Chefe do Serviço de Anestesia, que procedeu com sucesso à entubação.
A cirurgia foi concluída com sucesso.
Foi removido o tubo endotraqueal da doente.
Depois da extubação, continuou a ser administrado oxigénio à vítima, mas esta não conseguia tossir de uma forma natural.
Tentou-se a posição lateral na vítima e constatou-se uma queda do valor de SP02.
Imediatamente, Dra. F, a mencionada anestesista, tentou elevar a mandíbula superior da vítima de forma a facilitar a ventilação, tendo sido aplicada uma máscara de ventilação, mas a vítima não apresentou melhoras
Foi solicitada ajuda a Dr. H, o mencionado Chefe, mas a paciente teve uma paragem cardíaca.
Foi administrado “Adrenaline” à vítima, tendo esta recuperado o batimento cardíaco, e Dr. H procedeu a nova entubação endotraqueal.
Depois de recuperada a frequência cardíaca da vítima, Dr. H procedeu à auscultação estetoscópia dos pulmões e do estômago da paciente, tendo sido verificado pela curva de ETC02 que a entubação por si realizada fora um sucesso.
Alguns minutos mais tarde, o batimento cardíaco da vítima baixou outra vez tendo entrado em nova paragem cardíaca.
Dra. F orientou o processo de ressuscitação, tendo sido efectuada à vítima compressão toráxica.
Dr. H decidiu extubar a vítima e optou por realizar de seguida nova entubação.
Depois desta entubação, o SPO2 a frequência cardíaca da vítima aumentou, mas a sua situação hemodinâmica era instável, tendo tido nova paragem cardíaca.
Foi realizada nova ressuscitação à vítima.
Mais tarde, com recurso a raio x, concluíram os médicos que o tubo respiratório se encontrava no esófago e não na traqueia.
Depois, fez-se nova entubação com êxito. A vítima ficou em estado de coma desde a intervenção cirúrgica até à morte ocorrida 59 dias depois.
Os factos relevantes são estes apenas.
Ou seja, demonstrou-se que a morte da vítima ocorreu por terem surgido obstruções nas vias respiratórias, que levou a serem feitas novas entubações para fornecer oxigénio àquela e que ocorreram várias paragens cardíacas.
Há indícios de que houve actos médicos realizados deficientemente, já que se provou que, com recurso a raio x, concluíram os médicos que o tubo respiratório se encontrava no esófago e não na traqueia.
Mas, como este facto foi alegado pelo réu, não há outros factos adicionais tendentes a demonstrar, por um lado, que este acto foi negligente, com violação das legis artis e que, por outro, foi ele a causa da asfixia cerebral, de onde resultou a morte da vítima.
É que também se provou que a vítima começou a ter dificuldades em respirar após a operação, por não conseguir tossir naturalmente.
Ou seja, há indícios de que houve actos médicos deficientes.
Por exemplo, a primitiva anestesista não conseguiu entubar a doente, tendo de chamar o Chefe, que acabou por proceder à entubação para ter lugar a intervenção cirúrgica, pelo que esta deficiência não foi causa dos eventos posteriores.
Quanto aos erros posteriores à intervenção cirúrgica, há indícios de que terão corrido, embora não haja prova cabal destes factos.
E, mesmo a ter-se provado violações das técnicas próprias dos actos médicos em questão, não houve prova de que tais violações foram a causa adequada do coma, de onde adveio a morte da vítima.
Ou seja, não se provaram factos donde resulte ter havido actos ilícitos e culposos por parte do pessoal do hospital e que tais actos que foram a causa da morte da vítima.
7. Faute de service
O Conselho de Estado francês, no início do século XX, confrontou-se com situações em que se provava o dano do particular devido a acto ou facto da Administração, mas não era possível identificar um ou mais funcionários responsáveis pelo facto lesivo. Criou, então, por via, jurisprudencial, o conceito de faute de service, que se pode traduzir por culpa do serviço ou culpa funcional, que permitia responsabilizar civilmente a Administração, nos mencionados casos.
Como explica DIOGO FREITAS DO AMARAL2, “ … acontece muitas vezes na prática que não é fácil, ou é mesmo impossível, apurar de quem foi a culpa de uma actuação de um serviço público num certo caso concreto3.
Emprega-se então a expressão culpa do serviço, ou falta do serviço, para se significar - na fórmula feliz de Rivero - um facto «anónimo e colectivo de uma administração em geral mal gerida, de tal modo que é difícil descobrir os seus verdadeiros autores»4.
Com efeito, cada vez mais nos nossos dias pode suceder que o facto ilícito e culposo causador dos danos, sobretudo se revestir a forma de uma omissão, não possa ser imputado a um autor determinado, ou a vários, devendo antes sê-lo ao serviço público globalmente considerado”.
Mas, para que se possa imputar à Administração a culpa funcional pelo dano causado ao particular, é necessário provar que os danos devem ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço, como se diz no n.º 3 do artigo 7.º do Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, português, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que acrescenta no n.º 4 do mesmo artigo, que “Existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos”.
Mas, no caso dos autos, nem sequer se provou que a morte da vítima ocorreu por causa do mau funcionamento do Hospital, já que, como é do conhecimento geral, mesmo nas mais simples intervenções cirúrgicas, em que tudo foi feito de acordo com os melhores procedimentos e regras técnicas da arte, podem existir imponderáveis que conduzem a danos irreparáveis aos doentes e mesmo que causem a morte.
Assim, não é possível responsabilizar civilmente o réu.
Procede o recurso.
IV – Decisão
Face ao expendido, concedem parcial provimento ao recurso e:
A) Declaram a nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, na parte em que procedeu à alteração oficiosa da resposta ao quesito 9.º da base instrutória;
B) Declaram a nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, na parte em que procedeu à alteração oficiosa da alínea P) da matéria assente;
C) Revogam o acórdão recorrido quanto ao mérito da causa, mantendo a decisão de 1.ª Instância que absolveu o réu do pedido.
D) No mais, negam provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes na proporção de 9/10.
Macau, 29 de Novembro de 2019.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa
1 VIRIATO MANUEL PINHEIRO DE LIMA, Manual de Direito Processual Civil, Acção Declarativa Comum, Macau, CFJJ, 3.ª edição, 2018, p. 460.
2 DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, com a colaboração de Pedro Machete e Lino Torgal, Coimbra, Almedina, Volume II, 2.ª edição, 2011, p. 737.
3 Seguimos, de perto as considerações já expendidas no nosso estudo de 1973, «A Responsabilidade Civil da Administração no Direito Português», cit., pp. 530-531.
4 Droit Administratif, cit., p. 261.
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