Processo n.º 833/2019
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 16/Janeiro/2020
ASSUNTOS:
- Legitimidade (singular) do Autor no processo em que é invocada a usucapião
SUMÁRIO:
I – À luz do entendimento dominante, é o poder de facto exercido por alguém sobre um determinado objecto que permite invocar a usucapião para adquirir o respectivo direito real. Estão em causa 2 prédios, um, registado em nome do pai (falecido) do Autor junto da competente Conservatória, já foi objecto de um processo de inventário (em que tal foi adjudicado ao cabeça-de-casal), enquanto o outro, adjacente, registado em nome de um terceiro, que é o objecto deste processo, em que o Autor invoca a usucapião a fim de adquirir a propriedade do imóvel.
II – Neste processo, independentemente da sucessão da posse do Autor à do seu falecido pai, como a posse própria do Autor permite já, caso estejam reunidos todos os requisitos legalmente exigido (questão do mérito), adquirir o direito real reclamado sobre o prédio em causa, sem necessidade de considerar a posse do seu pai, a intervenção de per si do Autor é suficiente.
III – Perante este quadro fáctico pintado pelo Autor, os seus irmãos, enquanto herdeiros de outro prédio já adjudicado, não têm de intervir nesta acção de usucapião, pois, a intervenção singular do Autor nesta acção é suficiente para assegurar a legitimidade prevista no artigo 58º do CPC, o que é razão bastante para revogar a decisão do Tribunal recorrido, uma vez que este absolveu os Réus da instância por ilegitimidade activa do Autor (artigo 230º/1-d) do CPC).
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo nº 833/2019
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 16 de Janeiro de 2020
Recorrente : - A
Objecto do Recurso : - Despacho que decidiu absolver os réus da instância (駁回針對被告的起訴之批示)
Réus : - B
- C
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I – RELATÓRIO
A, Recorrente, devidamente identificada nos autos, discordando do despacho proferido pelo Tribunal de primeira instância, datado de 13/12/2018 (fls. 188 e 189), dele veio, em 06/05/2019, interpor recurso para este TSI, com os fundamentos constantes de fls. 218 a 235, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida a fls 210 que «absolveu os Réus da instância por ter sido verificada a falta da legitimidade activa nos termos do art.º 23º nº 1 al. d) do CPC.»
II. O Autor e aqui Recorrente intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra B também conhecido por B e C, peticionando a final que a acção fosse julgada procedente, por provada, e, em consequência «ser declarado, para todos os legais efeitos, nomeadamente para a inscrição da titularidade junto da competente Conservatória do Registo Predial, como único e legítimo proprietário do domínio útil do prédio urbano sito em Macau, RAE, com o nº XX da Rua XX descrito na CRP sob o nº 13XX4 a fls. XX do livro XX, supra melhor identificado, com as demais consequências legais, por o ter adquirido por usucapião.»
III. Ora, conforme alegado e comprovado pela documentação junta aos autos, não obstante o prédio em discussão nos autos estar formalmente separado de um outro propriedade do aqui Recorrente, porquanto se mostram descritos na Conservatória do Registo Predial em separado, de facto, trata-se de um único prédio, no qual se encontra edificada apenas uma construção.
IV. O facto de no local existir apenas um edifício - que ocupa ambas as descrições - e que apenas tem uma entrada única a partir da via publica criou no pai do Recorrente a convicção de que ao adquirir o prédio descrito sob o nº 13XX3 o faziam também em relação ao prédio 13XX4, ou seja, em relação ao prédio em discussão nos presentes autos.
V. Tal facto criou a convicção nos seus herdeiros que ambos os prédios faziam parte do espólio hereditário, o que justifica que o Recorrente tenha sido o único a suceder na posse do falecido pois que foi o único que adjudicou os seus bens no processo de inventário que correu termos sob o nº CV3-06-0078-ClV.
VI. É certo que no âmbito desse processo apenas foi relacionada a propriedade do prédio descrito sob o nº 13XX3, mas não é menos certo que esse era o único prédio registado na Conservatória do Registo Predial em nome do de cujus.
VII. Porém, o de cujus tinha a posse não apenas do prédio descrito sob o nº 13XX3 mas também do prédio descrito sob o nº 13XX4 - no qual, se repita está construído um único edifício que o mesmo usava no seu todo, motivo pelo qual, ao terem os herdeiros de D deliberado por unanimidade que ao Recorrente seria adjudicado o bem relacionado no âmbito do processo de inventário - o prédio descrito sob o nº 13XX3 - deliberaram também que apenas o Recorrente sucedia na posse do falecido quanto ao outro prédio no qual se encontra edificado uma construção única.
VIII. Ou seja, se a morte de D poderia não ser facto bastante para que o Recorrente se sentisse o seu único sucessor quanto aos direitos ou interesses que este tivesse sobre o prédio em discussão nos autos - ou seja, sobre o prédio descrito sob o nº 13XX4 - o facto de ter sido deliberado entre todos os herdeiros, por unanimidade, que o prédio descrito sob o nº 13XX3 lhe era adjudicado e o facto de existir uma única construção nesses prédios, já se mostra bastante para o efeito.
IX. O prédio em discussão nos autos não é assim possuído pelo Recorrente e pelos seus irmãos na qualidade de herdeiros de D.
X. Com efeito, ao ter sido deliberado o prédio com o nº XX da Rua XX seria adjudicado ao Recorrente deliberaram também, ainda que tacitamente, que o mesmo destino teria o prédio com o nº XX, o qual, faz parte integrante do nº XX - pois que no local apenas se encontra uma única construção.
XI. Também a Direcção dos Serviços de Finanças ao calcular o imposto de selo devido pela adjudicação fê-lo tendo em consideração os dois prédios nºs. XX e XX da Rua XX, que correspondem às descrições nºs 13XX3 e 13XX4 com uma área única de 54 metros quadrados, correspondente ao artigo matricial nº 22098, tendo sido pago, na sua totalidade, pelo ora Recorrente.
XII. Houve uma verdadeira partilha de facto que incluiu o prédio em discussão nos autos, tendo o Recorrente sido único a suceder na posse de seu falecido pai.
XIII. A discussão e prova da aludida factualidade é essencial para que o aqui Recorrente pudesse comprovar que é o único sucessor na posse do seu falecido pai estando ao seu alcance peticionar, como fez, a aquisição do prédio sub judice por usucapião sem que para tanto tenha de se colocar em causa a sua legitimidade.
XIV. O Recorrente alegou na sua causa factos concretos que se propunha provar de onde decorrida a sua posse exclusiva - diferente da de co-herdeiro - e com animus de proprietário.
XV. Alegou factos bastantes sobre o domínio de facto sobre a coisa - corpus - e sobre a sua intenção de exercer sobre o prédio descrito sob o nº 13XX4 os mesmos poderes e direitos que exerce sobre o prédio descrito sob o nº 13XX3, ou seja, o direito de propriedade.
XVI. Salvo devido respeito, não estava o Tribunal ab initio em condições de julgar o recorrente parte ilegitima, pelo que, ao decidir de modo diverso o Tribunal a quo fez, salvo devido respeito, uma errada interpretação e aplicação do preceituado no artigo 1175º, 1179º, 1187º e 1929º do Código Civil,
XVII. Devendo, assim, a decisão recorrida ser anulada e substituída por outra que dando provimento ao presente recurso julgue o Recorrente parte legitima seguindo-se os ulteriores termos até final.
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Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
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II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – OBJECTO DO RECURSO:
É o seguinte despacho que constitui o objecto deste recurso, proferido pelo Tribunal de primeira instância:
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Notifique o Autor para em 10 dias juntar uma certidão da sentença proferida nos autos n.º CV1-14-0063-CAO.
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Da excepção da ilegitimidade activa
O Ministério Público, em representação do Réu B, aliás B e interessados incertos, vem excepcionar, na sua contestação, a ilegitimidade activa por parte do Autor, para tanto, alega a necessidade da intervenção de todos os herdeiros de D para o efeito da aquisição, por usucapião, do prédio com o n.º XX, o que não sucedeu no caso vertente, assim, na sua perspectiva, deve absolver o R. da instância.
Cumpre apreciar e decidir.
Para sustentar o pedido formulado na petição inicial, o Autor invoca a sucessão na posse nos termos do art.º 1179º do Código Civil, o qual prevê o seguinte: "por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa.".
No entender do Autor, juntando à posse do Autor e posse do seu pai sobre prédio em causa, o Autor tem uma posse há mais de 58 anos, é com este fundamento é que o Autor invoca a usucapião, portanto, o Autor queria nos presentes autos aproveitar o tempo de posse já decorrido antes de falecimento do pai dele.
Se assim for, não deixa de ter a dúvida referente à legitimidade por parte do Autor ao invocar a referida sucessão da posse, uma vez que o de cujus, além do Autor, deixou ainda outros filhos sobrevivas, i.e, E, F, G, H, I, J, K, L e M conforme se constata pela certidão extraída no proc. n.º CV3-06-0078-CIV a fls. 150 a 161 dos autos.
Segundo o art.º 1929º, n.º 1 do CC, em regra geral, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. Salvo o devido respeito, esta norma deverá ser aplicável ao nosso caso, isto porque, tal como acima veio referido, o que o ora Autor invoca não só a posse dele, mas também a posse do seu pai, ou seja, a sucessão na posse, neste caso, não é de olvidar que a posse do pai do Autor que incidia sobre o prédio em causa, bem como os efeitos jurídicos emergente da posse, devia fazer parte integrante da herança do de cujus, nesse sentido, também convém destacar a retroactividade da usucapião prevista no art.º 1213º do CC, o qual consagra que invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do inicio da posse. No caso vertente, comprovando a posse do pai do Autor, mantida por determinado lapso de tempo, através da invocação da usucapião, faculta-lhe a aquisição do direito, assim, de acordo com a versão de facto trazida pelo Autor aos autos, o pai do Autor terá adquirido o prédio em causa por usucapião antes do seu falecimento, e em virtude da morte sua, o direito do prédio devia integrar na herança, pelo que, com base na relação material controvertida configurada pelo Autor, este não podia exercer sozinho o direito resultante da posse anterior do pai do Autor, a acção devia ser proposta por todos os herdeiros do de cujus, verificando-se assim, a falta da legitimidade activa.
De acordo com o princípio do inquisitório previsto no art.º 6º, n.º 2 do CPC, o qual impõe o juiz providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, e tem em consideração que a legitimidade activa em falta deve ser a plural, seja suprível através do chamamento das pessoas em falta nos termos do art.ºs 267º e seguintes - cfr. o art.º 213º, n.º 1 do CPC.
Nestes termos e pelo exposto, decide-se convidar o Autor, no prazo de 10 dias, requerer o que tiver por conveniente a fim de suprir a legitimidade activa em falta.
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Notifique e D.N ..
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
Ora, tal como resulta do despacho acima transcrito, foi indeferida a PI liminarmente por o Exmo. Juiz do TJB entender que os demais herdeiros do pai do Autor deviam ser autores também nesta acção de usucapião, como o Autor não respondeu positivamente ao convite nestes termos ordenados pelo julgador, foi proferida a decisão negativa nos termos acima transcritos.
Terá razão o Tribunal recorrido?
Vejamos.
1) – Salvo o melhor respeito, os elementos constantes dos autos não foram correctamente interpretados pelo Tribunal a quo, pois, o objecto do Processo nº CV3-06-0078-CIV foi o prédio com o nº XX da Rua XX descrito na CRP sob o nº 13XX3 a fls. XX, inscrito a favor de D sob a inscrição nº 30XX3, do livro XX, a fls. XX, enquanto o objecto desta acção em que o Autor invoca a usucapião é o prédio com o nº XX da Rua XX descrito na CRP sob o nº 13XX4 a fls. XX do livro XX. São duas realidades diferentes!
2) – É do entendimento dominante que é o poder de facto exercido por alguém sobre um determinado objecto que permite acesso à invocação da usucapião, nesta acção, entre outros o Autor invocou os seguintes factos:
58º
D, pai do Autor, veio a falecer em 23 de Fevereiro de 2001, tendo o referido prédio sido adjudicado ao Autor no processo de Inventário Facultativo que, sob o nº CV3-06-0078-CIV, correu termos pelo 3º Juízo Cível do douto Tribunal Judicial de Base – cfr. Inscrição nº 176582G do Doc. n.º1.
59º
O ora Autor, sucedeu assim na posse de seu pai, o qual continuou e continua durante todos estes anos a assumir-se como dono e legítimo possuidor do imóvel com o nº 192-A da Rua Cinco de Outubro, descrito na CRP sob o nº 13XX4.
(...)
69º
A posse nas circunstâncias acima referidas confere ao Autor o direito de invocar, como invoca, a aquisição do prédio com o nº XX da Rua XX, descrito na CRP sob o nº 13XX4, por usucapião.
Na verdade,
70º
O pai do Autor teve a posse do imóvel supra referido durante 42 anos e o Autor, após a morte de seu pai, detém a posse do mesmo imóvel há mais de 16 anos.
Independentemente da sucessão da posse do Autor à do seu falecido pai, certo é que a posse própria do Autor permite já, caso estejam reunidos todos os requisitos legalmente exigido (questão do mérito), adquirir o direito real reclamado sobre o prédio em causa, sem necessidade de considerar a posse do seu pai.
3) - O conceito de legitimidade está previsto no artigo 58º do CPC, que tem o seguinte teor:
Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Nesta matéria ensinava o Prof. Teixeira de Sousa (in BMJ, 292º-53 e seguintes):
“A legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor”
Nestes termos, o conceito da legitimidade deve referir-se à relação jurídica configurada pelo Autor, objecto do pleito, e assim se determina e averiguando quais são os fundamentos da acção e qual a posição das partes relativamente a esses fundamentos. Por isso, é suficiente a intervenção sozinha do Autor nesta acção como parte legítima face à relação jurídica por ele configurada, pois ele invoca o facto de ele sozinho ter vindo a exercer o poder sobre o imóvel em causa e como tal estar em condições de aceder à usucapião.
4) – Por outro lado, como não se trata de uma situação de litisconsórcio necessário, não têm de ser chamados para esta acção os outros herdeiros que tinham sido partes no processo nº CV3-06-0078-CIV.
5) - Pelo que, é de revogar o despacho recorrido, por violar o artigo 58º do CPC.
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Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em conceder provimento ao recurso, revogando-se decisão recorrida e mandan-se prosseguir o processo nos termos legais, se outro obstáculo legal inexistir.
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Custas pelos Réus/Recorridos.
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Registe e Notifique.
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RAEM, 16 de Janeiro de 2020.
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Fong Man Chong
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho
2019-833- ilegitimidade-usucapião 12