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Processo n.º 1176/2019
(Autos de recurso de decisões jurisdicionais do TA)
     
Relator: Fong Man Chong
Data : 27 de Fevereiro de 2020

Assuntos:
     
- Critério de “sem necessidade de mais provas” para o tribunal poder conhecer do mérito no saneador (artigo 429º/1-b) do CPC)
- Nulidade do saneador-sentença quando este não fixou expressamente os factos assentes com interesse para a decisão da causa (artigos 562º/2 e 3, 571º/1-b) e d), 429º/1-b), todos do CPC, ex vi do artigo 99º/1 do CPAC)
     
SUMÁRIO:
     
I - Conhecer do mérito da acção no saneador, com base na sua manifesta improcedência dos pedidos formulados pelos Autores, só deveria ocorrer quando a improcedência ou a inviabilidade da pretensão do autor se apresentasse de forma tão evidente, que tornasse inútil qualquer instrução e discussão posteriores.
     
II - A expressão “sem necessidade de mais provas”, contidas no art. 429º/1-b) do CPC de Macau, aponta claramente para o entendimento de que só deve conhecer-se do pedido se o processo contiver, seguros, todos os elementos necessários que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo.
     
III – Gera-se, ao abrigo do disposto nos artigos 562º/2 e 3, 571º/1-b) e d), 429º/1-b), todos do CPC, ex vi do artigo 99º/1 do CPAC, nulidade da decisão quando esta foi tomada no senador em que não se fixam os factos considerados assentes com interesse para a decisão da causa, circunstâncias estas que, não só afectam o estatuto processual das partes, na medida em que estas não têm condições para impugnar os factos considerados pelo tribunal recorrido, caso destes discordam, como também obstem ao Tribunal ad quem de formar juízo valorativo sobre a decisão de facto tomada pelo Tribunal a quo.
     
     
O Relator,
     
_______________
Fong Man Chong










Processo n.º 1176/2019
(Autos de Recurso de decisões jurisdicionais do TA)

Data : 27/Fevereiro/2020

Recorrentes : - A Limited (A有限公司)
- B Limited
- C Limited
- D Limited (D有限公司)
- E Limited (E有限公司)
- F Limited
- G Limited (G有限公司)
- H Limited (H有限公司)
- I Limited
- J Limited (J有限公司)
- K Limited (K有限公司)
- L Limited

Recorrida : - Região Administrativa Especial de Macau (澳門特別行政區)


*
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
    
    I - RELATÓRIO
A Limited (A有限公司) e os demais Recorrentes, não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo, datada de 12/07/2019, que julgou (manifestamente) improcedentes os pedidos dos Autores, ao abrigo do disposto no artigo 429º/1-b) do CPC, ex vi do disposto no artigo 99º/1 do CPAC (sem passar para a fase de audiência de julgamento, com o argumento de que já se reuniram todas as condições necessária para conhecer directamente do mérito da acção), vieram, em 30/09/2019, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 1499 a 1517, tendo formulado as seguintes conclusões :
I. Por força do disposto nos artigos 561.° a 580.° do CPC ex vi artigo 99.° do CPAC as sentenças proferidas nas acções administrativas têm, sob pena de nulidade, de ser fundamentadas de facto e de direito.
II. A respeito de tal dever de fundamentação tem sido entendimento consistente e incontestada pela doutrina e jurisprudência de há largos anos que (...) Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito. (...)
III. No saneador-sentença proferido pelo Tribunal a quo ficou consignado que: O Tribunal considera que a decisão conscienciosa para o caso concreto depende só da solução da questão meramente jurídica, que não se considera impedida pelo conhecimento prévio das excepção de prescrição, motivo pelo qual despicienda a precisão do apuramento fáctico, passa a conhecer imediatamente dos pedidos das Autoras, como se seguem.
IV. Da simples leitura da sentença resulta que em lado nenhum se mencionam os factos que se consideram provados e não provados. Na verdade, da leitura da sentença recorrida o que se verifica é que o Tribunal a quo, em vez de julgar a matéria de facto que lhe foi trazida pelo labor das partes, empreendeu um mero exercício teórico e abstracto de enunciação de posições doutrinais e jurisprudenciais, desenvolvidas por referência a cenários hipotéticos por si construídos, suposições e incertezas.
V. Assim, no caso vertente, verifica-se que a sentença é totalmente omissa na fundamentação da matéria de facto, tornando-se inclusivamente impossível para as Recorrentes darem cumprimento ao ónus de indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo e os concretos meios de prova que impunham uma decisão diversa sobre os mesmos factos, tal como o impõe o artigo 599.° do CPC, para efeitos de recurso da matéria de facto.
VI. Consequentemente, com o respeito devido, não pode deixar este Tribunal de reconhecer que a sentença recorrida se encontra irremediavelmente ferida de nulidade por manifesta, expressa e evidente total falta de fundamentação da matéria de facto, nos termos do art. 571.°, n.º 1, b) do CPC.
VII. Da análise dos fundamentos da sentença pode-se verifica-se que o pensamento do Tribunal a quo se encontra eivado de diversos vícios de raciocínio, que desaguam em erros de julgamento.
VIII. A este respeito o Tribunal a quo toma como pressuposto - errado - na sua decisão de que do contrato de concessão e dos actos inerentes à sua execução não resulta nenhum direito subjectivo ou interesse legalmente protegido das Recorrentes perante a RAEM.
IX. Ora, nos termos da Lei de Terras é à RAEM que compete a gestão e disposição dos terrenos do Estado na RAEM, tendo sido no uso do seu poder público ou no exercício da função administrativa que a RAEM por contrato de concessão por arrendamento atribuiu à M o lote de terreno em discussão nos presentes autos.
X. Através de tal concessão, a M passou a ser titular dos direitos de construir, transformar e manter no referido terreno uma obra para os fins e com os limites previstos no contrato de concessão, incluindo o direito de transmitir e prometer transmitir o direito de propriedade sobre as construções erigidas, ou a erigir, sobre o terreno (designadamente no regime de propriedade horizontal) conforme previsto no n.º 1 e 2 do Artigo 42.º da Lei de Terras.
XI. Assim, é incontestável que o direito a vender as fracções do empreendimento a ser construído sobre o terreno concessionado à M era um direito subjectivo da M, a par do direito de aproveitamento do terreno, resultante do contrato de concessão.
XII. Assim, se a M detinha perante a RAEM um direito ao aproveitamento do terreno que lhe fora concedido, as ora Recorrentes detinham perante a M um direito à celebração do contrato definitivo.
XIII. Todavia, a posição jurídica das ora Recorrentes não se esgotava apenas perante a M, podendo tal direito ser legitimamente oposto a outros sujeitos que pudessem perturbar o seu exercício e, em particular, perante a RAEM-
XIV. Nos termos do artigo 4.° do Código do Procedimento Administrativo, as posições jurídicas subjectivas dos particulares perante a Administração dividem-se entre direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos.
XV. Apesar das Recorrentes não terem perante a RAEM um direito subjectivo à celebração do contrato, tinham um interesse legalmente protegido a que a RAEM não actuasse de modo a prejudicar a celebração desse contrato.
XVI. Existem a favor das Recorrentes um conjunto de normas que, embora destinadas a regular a actuação da RAEM, visavam a proteger a sua posição jurídica das Recorrentes que, no caso concreto, foram violadas.
XVII. Mais concretamente os princípios da legalidade e da prossecução do interesse público, previstos nos artigos 3.°, n.º 1, e 4.° do Código do Procedimento Administrativo, e o princípio da boa fé previsto no artigo 8.° do Código do Procedimento Administrativo.
XVIII. No caso concreto, as Recorrentes encontravam-se numa situação de facto perante a Administração em que se encontravam preenchidos todos os pressupostos da lesão da sua confiança, verificando-se a ilicitude da conduta da Administração para efeitos de responsabilidade civil, nos termos sustentados pela lei, doutrina e jurisprudencia.
XIX. Acresce que, o entendimento actual da responsabilidade civil da Administração vai no sentido da sua extensão a todas as formas e fases da actividade administrativa que provoquem uma lesão na esfera jurídica do particular que este não deva suportar.
XX. O que, de resto, está em absoluta consonância com o disposto no artigo 7.° do Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, ao indicar que "a ilicitude consiste na violação do direito de outrem ou de uma disposição legal destinada a proteger os seus interesses" e ao determinar que "Serão também considerados ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração".
XXI. É assim evidente que, ainda que não se tendo relacionado, no estrito plano contractual, directa e imediatamente com as ora Recorrentes a actuação da RAEM não corresponde à atuação privada de um terceiro totalmente alheia aos contratos promessa celebrados.
XXII. A ilegalidade da actuação da RAEM projetou-se não somente sobre a M, mas também sobre as ora Recorrentes, afetando a sua confiança legítima e os seus interesses, causando-lhes avultados prejuízos.
XXIII. Por tudo isto, em função da sua atuação fora do Direito, causadora de dano a terceiros por si conhecidos (e que não podia sequer razoavelmente ignorar), deve a RAEM ser condenada a restabelecer a situação hipotética dos ora recorrentes, indemnizando-os pelos prejuízos sofridos, detalhados na petição inicial.
XXIV. Ao assim não entender, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 3.°, 4.°, 7.° e 8.° do Código do Procedimento Administrativo e dos artigos 2.° e 7.° do Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril.
XXV. Ao supra referido não se opõe, como pretende fazer crer o Tribunal a quo,o facto de os contratos-promessa não terem eficácia real.
XXVI. Conforme resulta do artigo 7.° do Código de Registo Predial, esse registo apenas confere uma presunção juris tantum de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, podendo tal presunção ser ilidida mediante prova em contrário, nos termos dos artigos 340.° e 343.°, n.º 2, do Código Civil.
XXVII. De acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça Português n.º 3/99, sobre o conceito de terceiros para efeitos registo "terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.° do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa".
XXVIII. Ora, no caso em discussão, não está em causa o direito à aquisição de um bem contra uma pretensão aquisitiva posterior da RAEM, o que quer dizer que, a questão da eficácia real (oponibilidade ou inoponibilidade) dos contratos-promessa não se coloca nos presentes autos.
XXIX. O que está efectivamente em causa nos presentes autos, é apenas o facto de a RAEM, pelos seus actos e omissões ilegais, ter impedido as Recorrentes e a M de cumprirem os contratos prometidos, pelo que a RAEM, no caso dos autos, não é um terceiro, nos termos propugnados pelo artigo 5.° do Código de Registo Predial, como, com o devido respeito, erradamente, o Tribunal a quo entendeu.
XXX. Por outro lado, a RAEM por iniciativa própria exigiu, como acima se referiu, ter conhecimento de tais contratos e tais contratos foram inclusivamente registados, pelo que, seguindo a doutrina do Acórdão Uniformizador acima citado a publicidade registral era absolutamente inútil para a RAEM que já tinha conhecimento dos referidos contratos-promessa, que aliás publicitou no seu sitio da internet.
XXXI. Deste modo, tendo os actos e omissões da RAEM, porque ilegais e violadores dos direitos e interesses legalmente protegidos das ora Recorrentes, impedido que os contratos definitivos fossem celebrados, deve então esta obviamente ser condenada a indemnizar o dano que provocou às Recorrentes, que não sejam imputáveis à M.
XXXII. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao afirmar na sentença, que a RAEM era um terceiro alheio aos contratos-promessa celebrados, por estes não serem dotados de eficácia real e por nunca neles ter intervindo.
XXXIII. Um outro vicio de raciocínio de que enferma a sentença do Tribunal a quo é equiparação da RAEM a um sujeito de direito privado.
XXXIV. Sem prejuízo, ainda que assim não se entendesse, e se equiparasse a RAEM a um sujeito privado, a verdade é que face à factualidade relatada na Petição Inicial, mas desatendida pelo Tribunal a quo, não haveria dúvidas em concluir pela responsabilização da RAEM dentro desse mesmo quadro excepcional.
XXXV. Mas a verdade é que de facto a RAEM não é uma entidade privada, mas antes uma entidade pública, e como tal titular de uma responsabilidade acrescida pois como veremos tem obrigação de actuar de acordo com a Lei e o Direito, estabelecendo através da sua actuação modelos de conduta para os particulares e, isso é, a nosso ver, quanto deveria bastar para evidenciar o erro de julgamento em que Incorre o Tribunal a quo na sua decisão ao equiparar a RAEM a um sujeito privado.
XXXVI. A RAEM, na posição que assumiu no caso dos autos, de concedente e de autoridade (como o Tribunal reconhece), não actua no âmbito do direito privado.
XXXVII. A Administração encontra-se num plano de autoridade, razão pela qual, não goza da liberdade de fazer o que bem entender dentro dos limites da lei ou do contrato - como sucede no direito privado.
XXXVIII. A Administração rege-se pelo princípio da legalidade, que tal como resulta do disposto no artigo 3.°, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, se caracteriza por uma dupla vertente: (i) a preferência de lei, entendida no sentido de que os actos jurídicos ou materiais praticados pela Administração têm de se conformar com as determinações legais; (ii) a reserva ou precedência de lei, entendida no sentido de que a Administração não pode actuar sem a pré-existência de uma norma prévia habilitante suficientemente densificada.
XXXIX. Torna-se, pois, evidente que não é a autonomia privada que rege a atuação administrativa e da RAEM.
XL. As posições jurídicas dos administrados que merecem tutela extravasam em muito o campo dos direitos subjetivos e alarga-se ao domínio dos interesses legalmente protegidos, com reflexos evidentes no plano da responsabilidade civil extracontratual da Administração-
XLI. Não se pode pois acompanhar o entendimento do Tribunal a quo, porque destituído de qualquer fundamento, segundo o qual a circunstância de a RAEM ser um sujeito de direito público não lhe traz qualquer responsabilidade acrescida em matéria de ressarcimento de danos que a sua actuação provoque.
XLII. O (des)acerto do entendimento do Tribunal a quo é desde logo infirmado pelo facto de o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado não se confundir com aquele que resulta do Código Civil, estando inclusivamente regulado em diploma próprio, sendo por isso totalmente distinto.
XLIII. Os fundamentos da responsabilidade civil da administração não se confundem com os fundamentos da responsabilidade de direito civil.
XLIV. Também o artigo 4.° do Código do Procedimento Administrativo não dá espaço para quaisquer equívocos, mostrando que a RAEM, estando sujeita ao respeito pelas posições jurídicas subjectivas dos particulares, não se posiciona perante eles como um qualquer sujeito de direito privado.
XLV. A partir do momento em que a RAEM criou as condições para a celebração dos contratos promessa celebrados pelas Recorrente e deles tomou por sua própria iniciativa e imposição conhecimento, ela tem que obedecer ao princípio da protecção das posições jurídicas subjectivas das ora Recorrentes, em conformidade com o disposto no artigo 4.° do Código do Procedimento Administrativo.
XLVI. Sintomático do que se vem expondo, e como sinal inequívoco do reconhecimento dessa responsabilidade acrescida da Administração, são as disposições especiais (artigo 12.°) previstas na Lei n.º 8/2019 (Regime jurídico de habitação para alojamento temporário e de habitação para troca no âmbito da renovação urbana).
XLVII. Ao entender em sentido divergente, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nesse artigo 4.° do Código do Procedimento Administrativo.
XLVIII. Exactamente pelas mesmas razões acabadas de expor, falece liminarmente o entendimento do Tribunal a quo segundo o qual a responsabilidade civil por culpa do serviço se encontra afastada pela existência de uma relação creditícia emergente dos contratos promessa, perante a qual a RAEM seria um mero terceiro.
XLIX. Ora, como acabou de se demosntrar, a RAEM não pode ser equiparada a um sujeito privado para este efeito, nomeadamente pelos diferentes fundamentos que determinam a responsabilidade da Administração.
L. Pelo que, falece assim o fundamento esgrimido pelo tribunal para afastar a aplicação ao caso concreto da tese da culpa de serviço ou da responsabilidade pelo funcionamento anormal do serviço, nos termos expostos na Petição Inicial.
LI. Pode ler-se na sentença recorrida que “a actuação alegadamente ilícita da Ré era simplesmente limitada ao exercício dos direitos conferidos pelo seu estatuto de concedente (...) ou dos poderes autoritários inerentes ao respectivo procedimento administrativo na sua relação coma concessionária"
LII. Ora, como demonstrado na petição inicial, a RAEM não actuou de modo algum no exercício de direitos conferidos pelo seu estatuto de concedente ou no âmbito dos poderes autoritários inerentes ao respectivo procedimento administrativo.
LIII. Conforme resulta dos factos alegados na petição inicial - a que o Tribunal a quo desatendeu -, a RAEM aprovou o projecto de arquitectura mas sujeitou-o à apresentação de um estudo de impacto ambiental.
LIV. Sucede que essa exigência e esse estudo (i) não estavam legalmente ou regulamentarmente previstos, (ii) não eram legalmente ou regulamentarmente exigíveis e (iii) não tinham um conteúdo legalmente ou regulamentarmente definido.
LV. Ou seja, a RAEM actuou sem base legal ou regulamentar e para além da base legal e regulamentar existente, o que significa que, a RAEM incorreu em violação do princípio da legalidade acima enunciado, nas vertentes de precedência e de preferência de lei.
LVI. Ora, como também foi devida e desenvolvidamente alegado na Petição Inicial, não existia qualquer acto normativo em vigor na RAEM à data que regulamentasse os chamados estudos de impacto ambiental, bem como as entidades responsáveis pela análise das suas conclusões e pela autorização e licenciamento de obras ou trabalhos previstos.
LVII. A Lei de Terras, o Código do Procedimento Administrativo ou qualquer outra norma legal são omissas na atribuição de direitos à RAEM de estabelecer exigências ad hoc, não previstas na lei, como foi o caso da exigência de apresentação de um estudo de impacto ambiental ou das exigências sucessivas que foram sendo formuladas quanto ao seu conteúdo.
LVIII. É, pois, evidente que (ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo), a RAEM não actuou no exercício de direitos conferidos pelo estatuto de concedente tendo actuado fora dos poderes autoritários inerentes ao respectivo procedimento administrativo.
LIX. A actuação da RAEM a este propósito teve, assim, lugar num quadro extra-jurídico, alegal, fora dos quadros do princípio da legalidade, seja na vertente de reserva de lei, seja na vertente de preferência de lei.
LX. Ou seja, a RAEM impediu, ilegalmente, a M de exercer o direito subjectivo de aproveitamento do terreno concessão que expressamente lhe tinha sido conferido, logo no aditamento ao contrato de concessão de 2006 (conforme alegado na petição inicial).
LXI. O Tribunal a quo incorreu, pois, em erro de julgamento sobre a (in)validade da actuação da RAEM.
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A Região Administrativa Especial de Macau (澳門特別行政區), Recorrida, representada pelo MP, notificada do recurso interposto pelos Recorrentes, veio, em 05/11/2019, a apresentar a sua resposta constante de fls. 1521 a 1529, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. 根據主流學說理解及司法見解,配合被上訴判決的內容,原審法院基於認定上訴人在起訴狀描述的所有事實即使獲得證實,亦明顯無法支持上訴人的請求成立,僅屬於法律問題,從而決定無需進行調查證據階段及審理認定上訴人描述的事實,立即審理上訴人提出的實體問題,並判處上訴人的訴訟請求不成立及開釋被上訴人,有關判決不存在《民事訴訟法典》第571條第1款b項規定的判決無效情事。
2. 原審法院正確認定被上訴人是上訴人與保利達之間訂立的預約買賣合同的第三人,對被上訴人的歸責只能適用權利之濫用的制度;然而,上訴人在起訴狀描述的被上訴人作出的行為是被上訴人作為土地批給合同的當局身份向保利達作出的行為,只對保利達產生直接效果,不對外產生效力,亦即對上訴人與保利達之間的關係沒有直接影響,且被上訴人沒有作出損害上訴人權益的行為,更沒有針對上訴人的合同權利作出特別具譴責性的行為,亦沒有介入上訴人與保利達之間的合同關係,部門運作過錯也顯然不能符合權利之濫用的制度的前提,故此,被上訴人沒有義務承擔上訴人主張的賠償責任。
3. 上訴人並沒有其主張的受法律保護之利益、行政當局在涉案的土地批給合同生效期間及作出宣告批給失效的行為上沒有違反任何法律規定及原則,尤其是合法性原則、保護居民權益原則及善意原則,行政當局不存在部門運作過錯,要求保利達遞交環境評估報告亦具有充分的法律依據,即被上訴判決不存在上訴人在上訴陳述中主張的所有審判錯誤。

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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
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    II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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    III – FACTOS
    
Não se encontram indicados os factos que deviam ser considerados como provados com interesse para a aplicação da normas jurídicas e para resolver os problemas suscitados pelas partes do processo.

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    IV - FUNDAMENTOS
Como o presente recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo, importa ver o que este decidiu. Este afirmou:
Bruno 10/07/201
I. Relatório

Autoras A LIMITED (A有限公司), B LIMITED, C LIMITED, D LIMITED (D有限公司), E LIMITED (E有限公司), F LIMITED, G LIMITED (G有限公司), H LIMITED (H有限公司), I LIMITED, J LIMITED (J有限公司), K LIMITED (K有限公司) e L LIMITED, melhor id. nos autos,
vêm intentar a presente
Acção para Efectivação da Responsabilidade Civil Extracontratual
Contra
Ré Região Administrativa Especial de Macau
com os fundamentos constantes da p.i. de fls. 2 a 55v dos autos,
Concluem pedindo que:
- seja a Ré condenada a pagar às Autoras as quantias indemnizatórias, como correspondentes à perda dos lucros derivados das potenciais revendas das fracções autónomas prometidas comprar, ou ao dobro do sinal que foram pago, a que acrescem as despesas incorridas a título de pagamento dos impostos de selo e das despesas registais, acrescidas de juros legais, vencidos e vincendos até o seu efectivo pagamento, quantias essas se discriminam pela seguinte forma:
A LIMITED (A有限公司),
-MOP$3,040,072.00, ou subsidiariamente, MOP$8,818,596.00, ou subsidiariamente, MOP$2,075,054.00;
B LIMITED,
-MOP$2,877,067.00, ou subsidiariamente, MOP$6,637,444.00, ou subsidiariamente, MOP$1,159,178.00;
C LIMITED,
-MOP$2,841,873.00, ou subsidiariamente, MOP$8,775,273.00, ou subsidiariamente, MOP$2,184,440.00;
D LIMITED (D有限公司),
-MOP$3,010,099.00, ou subsidiariamente, MOP$8,788,623.00, ou subsidiariamente, MOP$2,080,616.00;
E LIMITED (E有限公司),
-MOP$2,837,103.00, ou subsidiariamente, MOP$6,597,480.00, ou subsidiariamente, MOP$1,166,594.00;
F LIMITED,
-MOP$2,811,900.00, ou subsidiariamente, MOP$8,745,300.00, ou subsidiariamente, MOP$2,190,002.00;
G LIMITED (G有限公司),
-MOP$2,980,126.00, ou subsidiariamente, MOP$8,758,650.00, ou subsidiariamente, MOP$2,086,178.00;
H LIMITED (H有限公司),
-MOP$2,797,139.00, ou subsidiariamente, MOP$6,557,516.00, ou subsidiariamente, MOP$1,174,010.00;
I LIMITED,
-MOP$2,781,927.00, ou subsidiariamente, MOP$8,715,327.00, ou subsidiariamente, MOP$2,195,564.00;
J LIMITED (J有限公司),
-MOP$2,950,153.00, ou subsidiariamente, MOP$8,728,677.00, ou subsidiariamente, MOP$2,091,740.00;
K LIMITED (K有限公司),
-MOP$2,757,175.00, ou subsidiariamente, MOP$6,517,552.00, ou subsidiariamente, MOP$1,181,426.00; e
L LIMITED,
-MOP$2,751,954.00, ou subsidiariamente, MOP$8,685,354.00, ou subsidiariamente, MOP$2,201,126.00;
*
A Ré contesta a acção com os fundamentos de fls. 1386 a 1418 dos autos, concluiu pedindo que sejam julgadas procedentes as excepções de prescrição e de manifesta improcedência do pedido com fundamento na irresponsabilidade de terceiro por lesão do direito de crédito, ou que seja improcedente a acção e absolvida a Ré dos pedidos.
*
As Autoras apresentam a sua réplica com os fundamentos de fls. 1469 a 1475v dos autos.
***
II. Saneamento

Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade “ad causam”.
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, excepções dilatórias, ou questões prévias que obstem a apreciação “de meritis”.
*
O Tribunal considera que a decisão conscienciosa para o caso concreto depende só da solução da questão meramente jurídica, que não se considera impedida pelo conhecimento prévio da excepção de prescrição, motivo pelo qual despicienda a precisão do apuramento fáctico, passa a conhecer imediatamente dos pedidos das Autoras, como se seguem.
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III. Fundamentos:
Pedem as Autoras que sejam ressarcidas dos prejuízos resultantes da impossibilidade do cumprimento dos contratos-promessa para a aquisição das fracções autónomas do edifício denominado “N” em construção, alegadamente imputável à actuação da Ré através dos seus serviços, com fundamento na sua responsabilidade por acto ilícito pela culpa do serviço.

Pese embora assim ser a relação jurídica material configurada pelas Autoras com sua ênfase na actuação ilícita, culposa e lesiva da Ré, considero importante antes saber melhor que tipo do direito subjectivo que se considerou lesado, e determinar depois, se a sua violação, ainda que fosse inteiramente comprovada, é ou não susceptível de provocar os efeitos indemnizatórios naquele alcance almejado, no sentido de fazer responsabilizar a Ré pelas lesões provocadas.

1. Logo à partida, as Autoras alegam ser promitentes-compradoras nos contratos-promessa celebrados com a Sociedade de Importação e Exportação M Limitada (doravante designada por “M”), em que aquelas declararam prometer adquirir as fracções autónomas do edifício em construção, situado no terreno de que esta era concessionária.

Mais alegam que foram liquidados os impostos do selo e procedidos aos registos da inscrição da aquisição na Conservatória do Registo Predial.

Além do mais, anos depois da celebração dos contratos-promessa, a supra-referida concessão do terreno veio a ser declarada caduca pelo despacho de Chefe do Executivo da RAEM de 26 de Janeiro de 2016 e que a construção projectada nunca chegou a ser executada.

Face a esse enquadramento fáctico suposto, parece-nos ser patente que as Autoras nunca adquiriram o direito de propriedade das ditas fracções autónomas em construção, por consequência, não se podem arrogar titularidade de qualquer tipo de direito real em relação às mesmas fracções, uma vez que os referidos contratos-promessa carecem da eficácia real que as partes poderiam atribuir mediante declaração expressa e inscrição no registo, de acordo com o preceituado no art.º 407.º do CCM.
Não sendo com eficácia real, revestem-se os contratos em causa de uma natureza meramente obrigacional, que apenas confiram aos seus outorgantes o direito de crédito ou obrigacional.

Tal como parece também ser afirmado pelas próprias Autoras, o que está em causa são os direitos de crédito resultantes dos contratos-promessa celebrados por estas, que se consideram frustrados pela actuação da Ré, nos termos alegados nos artigos 309.º a 328.º da petição inicial.

Além do mais, as Autoras parecem ter reconhecido que a Ré é o terceiro estranho às relações creditícias entre aquelas e M, quando afirmaram ser manifesta a sua “ingerência” nas respectivas relações.

2. A questão passa por saber se a Ré pode ser responsabilizada como terceiro pela alegada “ingerência” nos direitos de crédito reclamados pelas Autoras.

2.1. Como se sabe, tradicionalmente se defendia1 a tese da relatividade do direito de crédito, não seria de reconhecer ao crédito um efeito externo que permitisse a sua protecção em relação a terceiros e a responsabilização destes pela lesão do crédito.

Pois, do que se trata é do direito de crédito ou obrigacional que vale apenas inter partes e que só pode ser ofendido pelo devedor, o qual se contrapõe ao direito absoluto de propriedade, ou erga omnes, que é susceptível de lesão por qualquer pessoa.

Nesta linha de consideração, a aceitação dos efeitos externos da obrigação estaria a atribuir um carácter absoluto à relação creditícia, transformando as obrigações em direitos absolutos equiparáveis aos direitos reais, contrariando o disposto do art.º 1230.º do CCM, que considera ter natureza obrigacional e não real todas as restrições ao direito de propriedade.

O mesmo se deve concluir perante o disposto do art.º 400.º, n.º 2 do CCM, “em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos especialmente previstos na lei”.

Em consonância com o disposto da supradita norma, os efeitos externos do crédito apenas surgem indirecta e excepcionalmente, por exemplo, quando se atribui a eficácia real ao contrato-promessa e ao pacto de preferência (art.º s 407.º e 415.º do CCM) e quando se prevê que se converta a obrigação natural de alimentos do lesado, ex lege, em obrigação civil de alimentos do lesante em favor do alimentado pelo lesado que deixa de os poder prestar, nos termos do art.º 488.º, n.º 3 do CCM, ou ainda mais, nos casos da verificação de commodum representationis nos termos do art.º 783.º do CCM.2

Resumindo, a responsabilização de terceiro por lesão do crédito não é regra, mas sim excepção quando a lei especialmente o prevê.

2.2 Por outro lado, os efeitos externos da obrigação defender-se-iam apenas ao nível de jure constituendo, segundo a qual se deveria admitir que os direitos de crédito deveriam ser respeitados por terceiros sob pena de responsabilidade, desde que estejamos perante uma situação em que o terceiro conhece a relação especial entre o credor e o devedor e se trate de actuação especialmente censurável, e em particular que esse efeito de responsabilização devem ser assegurados em caso de ataque directo ao crédito e em caso de ataque a um elemento do substrato do crédito, e que se deveria aceitar sempre que se estivesse perante situações de abuso de direito3.

Mesmo para os mais influentes oponentes à tese clássica da relatividade do direito de crédito, como por exemplo, o Professor PESSOA JORGE, que entende que “nada impede que a prestação, como um bem a que o credor tem direito, se torne impossível por acto de terceiro, que, dessa forma, lesa um direito subjective alheio, o direito de crédito”, diz no entanto que “É necessário, no entanto, que a sua actuação seja dolosa, ou o terceiro saiba que a obrigação existe e que vai causar um prejuízo ao credor, por impedir que o devedor cumpra, não parecendo, contudo, suficiente uma actuação meramente negligente”.4

E por sua vez, no entendimento do Professor MENEZES CORDEIRO, a responsabilidade de terceiro por lesão do crédito, colocar-se-ia em sede do que chama de oponibilidade média. Nesta se colocariam os casos de acção de terceiro que provocasse a morte do devedor, que se traduzisse na destruição de documentos ou de outros elementos instrumentais destinados a atestar ou garantir os créditos e o problema conhecido como o da responsabilidade do terceiro-cúmplice (no incumprimento).5

Como é fácil de ver, mesmo para as posições mais radicais, a tese dos efeitos externos da obrigação não se admitiria sem reserva, ou seja, não é qualquer actuação do terceiro releva para a sua responsabilização perante o credor lesado – é sempre necessário que a sua actuação seja especialmente censurável e idónea a trazer uma consequência chocante e insuportável pela exigência de boa-fé e de bom costume, como sucede nos casos de abuso de direito, ou do terceiro-cúmplice no incumprimento.
2.3. Mais ainda, consideramos necessário ter em conta que no elenco das jurisprudências conhecidas, é sempre escassa aquela que aceitou sem reserva a tese da eficácia externa das obrigações.

Assim como na RAEM, a posição que tem sido seguida é a de eficácia relativa da obrigação mitigada com o reconhecimento limitado da sua eficácia externa no caso de abuso de direito pelo terceiro, pela jurisprudência do TUI, no acórdão n.º 2/2002, proferido em 19 de Julho de 2002, onde tratava precisamente a questão da responsabilidade do terceiro pelo incumprimento do promitente-vendedor:
“…Torna-se necessário apurar se o terceiro que contribuiu para frustrar a satisfação do direito do credor, neste caso, o promitente-comprador, deve ser responsabilizado civilmente pelo incumprimento do promitente vendedor, a título de cumplicidade com este. Tem sido discutido o problema da responsabilidade do terceiro na doutrina e há fundamentalmente duas correntes.
Tradicionalmente, entende-se que não admite, em princípio, o efeito externo das obrigações. No caso de incumprimento das obrigações, mesmo com a concorrência de culpa por parte do terceiro, só o devedor incorre em responsabilidade para com o credor. Mas se a conduta do terceiro se mostra particularmente chocante e censurável, este pode responder perante o credor por ter agido com abuso do direito. Portanto, a responsabilidade do terceiro só pode ser constituída com base no abuso do direito, quando se verificarem os respectivos pressupostos.
Diversamente, há autores que defendem a doutrina do efeito externo dos direitos de crédito, considerando que estes também produzem efeitos erga omnes em determinada medida e o regime do desrespeito do direito de crédito por terceiros reconduz-se ao art.º 483.º do CC de 1966 que dispõe sobre a responsabilidade extracontratual. Entende-se que esta norma deve ser aplicável a todos os direitos subjectivos, como o são os direitos de crédito…”

E além do mais:
“…Para Ferrer Correia, sem excluir a relevância de eficácia externa dos direitos de crédito, admite-se o abuso do direito sempre que o terceiro tivesse conhecimento da existência da obrigação.
Não reconhecendo efeito externo da obrigação, Antunes Varela entende que só através doutros institutos, como o abuso do direito, será possível reagir contra a conduta reprovável do terceiro. Então, para que haja abuso do direito por parte do terceiro que viola o direito do credor, “não basta que ele tenha conhecimento desse direito, é preciso que, ao exercer a sua liberdade de contratar, ele exceda manifestamente, por força do disposto no art.º 334.º, os limites impostos pela boa fé.”
Mais razoável será a posição ecléctica sustentada por Vaz Serra. Segundo este autor, para responsabilizar o terceiro por abuso do direito, não basta a cooperação consciente na violação do contrato. Até pode não haver abuso se o terceiro, movido com interesse próprio, tenha apenas a consciência da existência da obrigação e de causar prejuízo a outra parte. “É perfeitamente admissível que esse terceiro tenha um interesse legítimo em comprar, talvez mais legítimo até que o do promitente-comprador.”
Considera que, para haver abuso do direito, não se afigura bastar, porém, que o terceiro conheça, ao contratar, a existência do direito do credor, sendo preciso que tenha agido manifestamente contra a boa fé ou os bons costumes, isto é, que o seu procedimento seja acompanhado de circunstâncias especiais que manifestamente ofendam a consciência social, que denunciem a sua particular censurabilidade, como se o terceiro compra só para prejudicar o credor, e não porque a coisa lhe convém, ou quando o terceiro sabe que o outro contraente não indemnizará o credor lesado com o contrato.
Com esta posição, por um lado, atende-se aos fins visados pelo instituto, de ultrapassagem dos tradicionais quadros e molduras formalistas do conceitualismo, impregnando a Ordem Jurídica dos valores jurídicos de carácter social. Mas por outro, reconhece-se que a abertura demasiada do instituto, tal como o reconhecimento ilimitado da eficácia externa das obrigações, é susceptível de entravar significativamente o tráfico e a segurança jurídicos.” (sublinhado nosso).

2.4 Mutatis mutantis, julgamos que ao caso vertente deve ser esta a posição que merece nossa adesão, repugnando por um lado a aceitação geral e incondicional da tese da eficácia externa do direito de crédito pelo seu radicalismo, em virtude dos argumentos conhecidos a favor da teoria clássica da relatividade dos direitos de crédito, como inoponibilidade do mesmo a terceiros pela falta de publicidade da constituição do direito, impossibilidade lógico-conceitual da violação do crédito por terceiros, risco de grave enfraquecimento do comércio jurídico no caso de aceitar a responsabilização do terceiro por lesão do crédito.

Por outro lado, reconhecemos limitadamente a responsabilização dos terceiros que não se tenham interferido na relação jurídica creditícia, somente quando demonstrada a existência comprovada do abuso de direito por parte dos terceiros ou verificado o terceiro-cúmplice que com a sua actuação dolosa venha a frustrar o direito dos credores.

2.5. Voltemos ao nosso caso concreto.

Recapitulando o acima exposto, o que está em causa é o direito de crédito cuja lesão foi imputada à actuação da Ré e este direito tem como única fonte os contratos-promessa de compra e venda. Ao contrário do que parecem entender as Autoras, da celebração do contrato de concessão bem como os actos inerentes à sua execução (ex. aprovação do projecto da arquitectura), não poderá resultar nenhum direito subjectivo ou interesse legalmente protegidos para os promitentes-compradores, reivindicáveis perante a Administração Pública.

Ocupando a Ré a posição jurídica de terceiro alheio face à existência de uma relação creditícia emergente dos contratos-promessa, de raiz civilística, o facto de ser esta sujeito público não tornaria diferente esta posição e portanto, a Ré não passaria, só por este motivo, a ser um maior responsável do que qualquer sujeito particular pelas lesões que se provocaria ao direito de crédito.

Agora, em conformidade com a tese clássica da relatividade de crédito, não estando o caso abrangido por nenhuma excepção legal, bastaria o aludido para afastar a responsabilidade da Ré pelos danos reclamados. Não obstante, veremos se se verifica uma situação de abuso de direito ou uma actuação intencional e lesiva da Ré que poderia ainda justificar a sua responsabilização nos termos limitados.

Das alegações das Autoras resulta que se integram nas causas de pedir da presente acção os factos reportados a uma séria de condutas da Ré, alegadamente ilícitas e impeditivas da conclusão da construção e do aproveitamento do respectivo terreno por parte da M, resumidamente, a colocação de um conjunto de novas exigências legalmente não previstas para o estudo de impacto ambiental, a demora injustificada na respectiva apreciação ou aprovação, e além disso, a simples declaração de caducidade do terreno sem o cumprimento do dever de reconcessão do mesmo.

E segundo o que se alega, trata-se de condutas que conduziram à declaração de caducidade da concessão por não aproveitamento e que inviabilizaram por conseguinte o cumprimento dos contratos-promessa por parte da M face às promitentes-compradoras.

Porém, salvo a melhor opinião em contrário, afigura-se-me ser legítimo afirmar que as imputadas condutas, mesmo que fossem verdadeiras, não seriam aptas a indiciar a existência de uma actuação culposa da Ré para com as Autoras, porque nunca aquela se intrometeu directamente na esfera jurídica destas.

Pois, uma coisa é saber se a Ré tinha culpa no decurso da execução do contrato de concessão para com a M, coisa diversa é se a mesma agia culposamente perante os promitentes-compradores, com que não se deve confundir.

Muito menos qualquer situação de abuso de direito que daí se poderia vislumbrar.

Como é estabelecido na norma do art.º 326.º do CCM: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” (sublinhado nosso).

Reiterando a jurisprudência que já citámos assente na posição ecléctica quanto ao instituto de abuso de direito, a censurabilidade do abuso de direito de terceiro depende do seu conhecimento da existência do direito do credor, e o mais importante, da sua actuação que vai manifestamente para além dos limites suportáveis da boa-fé ou dos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Isto quer dizer que o conhecimento pelo terceiro da existência do direito do credor por si só é insuficiente para sustentar a responsabilização do terceiro.

No caso vertente, foi alegado o conhecimento da Ré da existência dos contratos-promessa já celebrados pelas Autoras e a sua consciência da provável lesão do crédito destas pela respectiva actuação que é qualificada como “diletante, negligente e mesmo culposa dos serviços da RAEM.” (conforme se alega no art.º 161.º da p.i.).

Porém, julgamos que esta qualificação é muito diferente de a Ré ter actuado manifestamente contra a regra de boa-fé, com intenção de as prejudicar.

Na nossa óptica, não pode a Ré ter violado qualquer dever de boa-fé para com os promitentes-compradores, mesmo entendendo que aquela aquando da imposição das sucessivas exigências à M tivesse alguns comportamentos faltosos, esta falta terá apenas consequência directa na sua relação com a M, mas sem a repercussão para fora.

Porque a boa-fé só se aplica no âmbito limitado às situações de relacionamento específico entre os sujeitos. Não se pode exigir a um terceiro para as pessoas com quem não mantém qualquer relação, condutas positivas segundo os ditames da boa-fé, o que se distingue da exigência do dever de respeitar o direito alheio não fundado numa relação obrigacional.

E no âmbito do direito administrativo, a exigência da boa-fé não é algo diferente, que é apenas imposta no relacionamento entre a Administração Pública e os administrados, criado no exercício das suas actividades administrativas nos termos do art.º 8.º, n.º 1 do CPA. Tal relacionamento no caso vertente, ao que nos parece, não chegou a ocorrer.

Também não existe a violação de bons costumes por parte da Ré.

A actuação alegadamente ilícita da Ré era simplesmente limitada ao exercício dos direitos conferidos pelo seu estatuto de concedente no âmbito do contrato de concessão, ou dos poderes autoritários inerentes ao respectivo procedimento administrativo na sua relação com a mesma concessionária.

Por outras palavras, dos factos alegados não se conheceria outra intenção da Ré para além daquela que tem sempre acompanhado e dominado a sua actuação administrativa, no exercício das suas funções legalmente atribuídas.

Além disso, convém não esquecer que o acto da declaração da caducidade da concessão de terreno em causa, pelo qual se tornaram efectivas as lesões alegadas pelas Autoras, é legalmente vinculado, cuja legalidade já não se discutiria, como foi decidido pelo Acórdão do TUI processo n.º 7/2018, proferido em 23 de Maio de 2018, “Decorrido o prazo de 25 anos da concessão provisória (se outro prazo não estiver fixado no contrato) o Chefe do Executivo deve declarar a caducidade do contrato se considerar que, no mencionado prazo, não foram cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas”.

Como é natural, se a Ré se limitava a dar cumprimento a um comando imposto pela lei vigente na declaração da caducidade da concessão dos terrenos referidos, dificilmente se poderia concluir que exista o direito para ser abusado, ou que exista qualquer intenção por parte dela de prejudicar os interesses das promitentes-compradoras, contrária à exigência das regras de bom costume ou de ordem moral.

Ademais, tendo sido confirmada a legalidade da declaração da caducidade da concessão do terreno, já não se levantaria a questão de reconceder o terreno com sua opção alternativa para permitir a conclusão do aproveitamento do mesmo terreno.

E não se descortina nenhuma vinculação legal da entidade administrativa no sentido de reconceder o terreno na sequência daquela caducidade declarada, assim como não se verifica a imputada omissão do dever de reconceder, certo é que as Autoras não conseguem demonstrar fontes válidas normativas que o imponham como dever legal da Administração, e que funcionem como padrão a ser respeitado na actuação administrativa.

Inexiste tal omissão no caso vertente, nem sequer é possível daí extrair consequências desejadas pelas Autoras.

Também não parece que a conduta alegada da Ré exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico do direito. Como acima referido, daí, não se conhece nenhum desvio da funcionalidade no exercício dos direitos por parte da Ré, quer como concedente do terreno em causa, quer como autoridade administrativa.

Assim sendo, no quadro legal acima analisado, não se deve concluir que a Ré seja responsabilizada pela ingerência no crédito das Autoras, no âmbito de abuso de direito, enquanto que a tese da culpa de serviço elegida naturalmente não nos convence, pelas razões que se passa a expor:
Como é sabido, constitui a culpa de serviço ou a responsabilidade pelo funcionamento anormal do serviço, uma nova modalidade de responsabilidade de importação jurisprudencial, assente na responsabilização da Administração enquanto tal, pela sua própria conduta lesiva, sem necessidade da demonstração de que um determinado agente actuou com culpa, mas apenas de que o serviço no seu conjunto funcionou de modo anormal.6

Contudo parece-nos ser uma tese que vai longe demais para chamar a Ré à responsabilização. Pois, a aplicação deste regime só terá lugar em relação aos danos que devam ser atribuídos ao funcionamento do serviço público e servirá para caracterizar a falta anónima ou colectiva ocorrida na actuação administrativa. Mas como acima referido, pela existência da relação creditícia emergente dos contratos-promessa no caso concreto, a actuação da Ré enquanto terceiro, seja faltosa ou não, não é susceptível de lesar, em abstracto, os direitos das Autoras.

Aliás, sempre se diga que a culpa funcional se reporta às situações em que o facto ilícito “não se revela susceptível de ser apontado como emergente da conduta ético-juridicamente censurável de um agente determinado, mas resulta de um deficiente funcionamento dos serviços – caso em que se imputa subjectivamente o facto danoso não ao agente ou funcionário, mas tão-só à pessoa colectiva pública responsável pelo funcionamento” (cfr. Acórdão do TUI no processo n.º 23/2005, proferido em 18 de Janeiro de 2006).

Daí que as situações típicas da culpa funcional mesmo demonstradas, naturalmente, não se compatibilizam com a exigência de uma actuação especialmente censurável e chocante da Ré fundada no abuso de direito de terceiro como pressuposto da sua responsabilização pelas lesões do direito de crédito.

Portanto, é evidente que a referida tese não sustenta o respectivo pedido indemnizatório.

Concluindo, inexiste nenhum título idóneo para fazer responsabilizar a Ré no caso concreto, é manifesto que os pedidos das Autoras devem ser julgados improcedentes.

IV. Decisão:

Assim, pelo exposto, decide-se:
Julgar improcedente a acção e em consequência, absolver a Ré Região Administrativa Especial de Macau dos pedidos formulados pelas Autoras.
*
Custas pelas Autoras.
*
Registe e notifique.
*

Ora, no caso, pedem os Autores que sejam ressarcidos dos prejuízos resultantes da impossibilidade do cumprimento dos contratos-promessa para a aquisição das fracções autónomas do edifício denominado “N” em construção, alegadamente imputável à actuação da Ré através dos seus serviços e no decurso da execução do contrato de concessão por arrendamento, com fundamentos na sua responsabilidade por acto ilícito pela culpa do serviço e na responsabilidade por facto lícito.
Eis a causa de pedir dos Autores.
Na fase de condensação processual, o distinto tribunal recorrido teceu as considerações constantes do despacho/sentença, das quais se destacam as seguintes:
“(…)
     
Além do mais, anos depois da celebração dos contratos-promessa, a supra-referida concessão do terreno veio a ser declarada caduca pelo despacho de Chefe do Executivo da RAEM de 26 de Janeiro de 2016 e que a construção projectada nunca chegou a ser executada.

Face a esse enquadramento fáctico suposto, parece-nos ser patente que os Autores nunca adquiriram o direito de propriedade das ditas fracções autónomas em construção, por consequência, não se podem arrogar titularidade de qualquer tipo de direito real em relação às mesmas fracções, uma vez que os referidos contratos-promessa carecem da eficácia real que as partes poderiam atribuir mediante declaração expressa e inscrição no registo, de acordo com o preceituado no art.º 407.º do CCM.

Não sendo com eficácia real, revestem-se os contratos em causa de uma natureza meramente obrigacional, que apenas confiram aos seus outorgantes o direito de crédito ou obrigacional.

Nesta conformidade, a despeito da configuração pelos Autores da relação jurídica material assente na responsabilidade extracontratual da Ré, afigura-se-nos ser inverosímil discutir as questões de indemnização à margem dos referidos contratos-promessa já celebrados, uma vez que os danos alegadamente sofridos pelos Autores têm como fonte directa os contratos.

2. A questão a seguir passa por saber se, não obstante a existência de um contrato-promessa, o terceiro alheio poderá ou não ser atingido pela eficácia do contrato, podendo este ser ou não titular da obrigação de indemnizações por lesões do seu direito de crédito, com uma outra fonte autónoma na responsabilidade extracontratual.
Ou melhor dizendo, a questão consiste em saber se a eficácia do contrato se restringe às partes do contrato ou deve antes se estender para além do círculo interno das partes, aos terceiros estranhos ao contrato, que não contrataram nem sucederam na posição de qualquer das partes.

2.1 Para os defensores7 da tese tradicional da relatividade do direito de crédito, não seria de reconhecer ao crédito um efeito externo que permitisse a sua protecção em relação a terceiros e a responsabilização destes pela lesão do crédito.

Pois, do que se trata é do direito de crédito ou obrigacional que vale apenas inter partes e que só pode ser ofendido pelo devedor, o qual se contrapõe ao direito absoluto de propriedade, ou erga omnes, que é susceptível de lesão por qualquer pessoa.

Nesta linha de consideração, a aceitação dos efeitos externos da obrigação estaria a atribuir um carácter absoluto à relação creditícia, transformando as obrigações em direitos absolutos equiparáveis aos direitos reais, contrariando o disposto do art.º 1230.º do CCM, que considera ter natureza obrigacional e não real todas as restrições ao direito de propriedade.

O mesmo se deve concluir perante o disposto do art.º 400.º, n.º 2 do CCM, “em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos especialmente previstos na lei”.

Em consonância com o disposto da supradita norma, os efeitos externos do crédito apenas surgem indirecta e excepcionalmente, por exemplo, quando se atribui a eficácia real ao contrato-promessa e ao pacto de preferência (art.º s 407.º e 415.º do CCM) e quando se prevê que se converta a obrigação natural de alimentos do lesado, ex lege, em obrigação civil de alimentos do lesante em favor do alimentado pelo lesado que deixa de os poder prestar, nos termos do art.º 488.º, n.º 3 do CCM, ou ainda mais, nos casos da verificação de commodum representationis nos termos do art.º 783.º do CCM.8


(…)
Assim sendo, no quadro legal acima analisado, não se deve concluir que a Ré seja responsabilizada no âmbito de abuso de direito, enquanto que as outras teses elegidas pelos Autores naturalmente não nos convencem, pelas razões que se passa a expor:
Quanto à culpa de serviço ou à responsabilidade pelo funcionamento anormal do serviço, trata-se de uma nova modalidade de responsabilidade de importação jurisprudencial, assente na responsabilização da Administração enquanto tal, pela sua própria conduta lesiva, sem necessidade da demonstração de que um determinado agente actuou com culpa, mas apenas de que o serviço no seu conjunto funcionou de modo anormal.9

Contudo parece-nos ser uma tese que vai longe demais para chamar a Ré à responsabilização. Como se sabe, a aplicação deste regime só terá lugar em relação aos danos que devam ser atribuídos ao funcionamento do serviço público e servirá para caracterizar a falta anónima ou colectiva ocorrida na actuação administrativa. Mas como acima referido, pela existência da relação creditícia emergente dos contratos-promessa no caso concreto, a actuação da Ré enquanto terceiro, seja faltosa ou não, não é susceptível de lesar, em abstracto, os direitos dos Autores.
Aliás, sempre se diga que a culpa funcional se reporta às situações em que o facto ilícito “não se revela susceptível de ser apontado como emergente da conduta ético-juridicamente censurável de um agente determinado, mas resulta de um deficiente funcionamento dos serviços – caso em que se imputa subjectivamente o facto danoso não ao agente ou funcionário, mas tão-só à pessoa colectiva pública responsável pelo funcionamento” (cfr. Acórdão do TUI no processo n.º 23/2005, proferido em 18 de Janeiro de 2006).

Daí que as situações típicas da culpa funcional mesmo demonstradas, naturalmente, não se compatibilizam com a exigência de uma actuação especialmente censurável e chocante da Ré fundada no abuso de direito de terceiro como pressuposto da sua responsabilização pelas lesões do direito de crédito.

Portanto, é evidente que a referida tese não sustenta o respectivo pedido indemnizatório.

A mesma sucede em relação à responsabilidade por facto lícito. Com a presença da relação de crédito de que os Autores são titulares, consideramos que está naturalmente quebrado o nexo de causalidade entre a alegada actuação e os danos alegadamente sofridos.

Concluindo, inexiste nenhum título idóneo para fazer responsabilizar a Ré no caso concreto, é manifesto que os pedidos dos Autores devem ser julgados improcedentes. (destaque nosso)
(…)”.

Quid Juris?

Da leitura da douta sentença (despacho saneador) resulta de que o distinto Tribunal a quo entendeu que os pedidos dos Autores são manifestamente infundados, por isso na fase de saneador procedeu logo ao conhecimento do mérito, sem que passasse para a fase de audiência de julgamento.
Ora, salvo o melhor respeito, não acompanhamos esta posição por razões que passemos a expor.

I – Considerações doutrinais acerca do conhecimento do mérito no saneador:
Ora, o artigo 429º/1-b) do CPC de Macau, é semelhante ao artigo 510º do CPC de 1961, sobre o qual corriam tintas ao nível da doutrina e da jurisprudência, sendo certo que cada uma das correntes tem a sua razão de ser.
O artigo 419º estipula:
(Despacho saneador)
1. Realizada a tentativa de conciliação ou, se ela não tiver tido lugar, logo que findem os articulados ou tenha decorrido o prazo a que se referem os n.os 2 e 3 do artigo 427.º, o juiz profere no prazo de 20 dias, e sendo caso disso, despacho destinado a:
a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que tenham sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do pedido ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
2. No caso previsto na alínea a) do número anterior, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas.
3. Não cabe recurso da decisão do juiz que, por falta de elementos, relegue para final a decisão de matérias que lhe cumpra conhecer nos termos do n.º 1.
4. Nas acções destinadas à defesa da posse, se o réu apenas tiver invocado a titularidade do direito de propriedade, sem impugnar a posse do autor, e não puder apreciar-se logo aquela questão, o juiz ordena no despacho saneador a manutenção ou restituição da posse, sem prejuízo do que venha a decidir-se a final quanto à titularidade do direito.
A alínea b) do nº 1 do artigo 419º acima citado estipula 2 pressupostos para que o tribunal possa conhecer do mérito acção no saneador:
a) – O estado do processo assim permite;
b) – Sem necessidade de mais provas.
Perante este normativo, costuma fazer-se uma distinção entre as situações em que o juiz se confronta simplesmente com uma questão de direito, daquelas em que, no despacho saneador, subsistem questões de direito e de facto.
No primeiro caso, seguindo o disposto no artº 429º (cfr. artigo 510º do CPC de 1966), a decisão de mérito pressupõe a constatação de elementos que “com a necessária segurança”, expressão utlizada na redacção do artigo 510º, hoje deve interpretada no sentido de “sem necessidade de mais elementos probatórios”, permita o julgamento antecipado: no segundo caso, ou seja, tratando-se de uma questão de facto ou de uma questão de facto e de direito, a lei basta-se com a existência de elementos necessários a “uma decisão conscienciosa”.
Antunes Varela defendia, para o primeiro caso, ser necessária a prova de todos os factos, faltando apenas a sua integração jurídica enquanto que na segunda situação a decisão de mérito apenas poderia ser proferida quando do processo já constassem os “elementos de prova essenciais a uma decisão suficientemente fundamentada” (in Manual, pág. 384).
Pese embora o elemento literal diferenciado, certo é que alguma doutrina equiparava ambas as situações, vendo “naquelas fórmulas legais…meras recomendações ou regras de advertência à conduta do juiz contra decisões precipitadas”.
Castro Mendes, por seu lado, defendia – e bem – que a questão de mérito “nunca pode ser unicamente de direito” e condensava os pressupostos para tal decisão da seguinte forma: pode conhecer-se do mérito da causa “sempre que os factos necessários para a resolução do litígio estejam já provados no processo, não carecendo por isso de ulterior instrução e actividade probatória”, entendimento geralmente seguido pela jurisprudência.
Na verdade, em qualquer acção declarativa, ainda que se encontrem provados todos os factos alegados, não deixa de subsistir uma questão de facto, uma vez que a decisão de mérito não passa sem a interpretação e integração jurídica dos factos, como pressuposto logico da decisão, seja no sentido da procedência ou da improcedência da acção.

Sobre as situações em que se pode conhecer do mérito da acção no saneador, escreve-se:
“(…)
Assim acontecerá quando:
a) – Toda a matéria de facto se encontre provada, por confissão expressa ou tácita ou por documento.
Nestas circunstâncias é inviável a elaboração da base instrutória e, por isso mesmo, dispensável a audiência de discussão e julgamento, nada obstando a que o juiz proceda à correcta subsunção jurídica.
b) – Quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos.
Se, de acordo com as plausíveis soluções da questão de direito, a decisão final de modo algum pode ser afectada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na elaboração da base instrutória e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito.
Tanto faz que esta decisão seja favorável ao autor ou ao réu.
(…)
Na verdade, deixando a decisão para momento ulterior, para além dos dispêndios de tempo, de energia e de dinheiro que isso acarreta, o certo é que nenhum contributo o juiz poderá retirar da prova produzida que justifique o protelamento da decisão.
c) – Quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental.
Em tal situação, não faz sentido elaborar a correspondente base instrutória e submeter os factos controvertidos a julgamento, pela singela razão de que, de acordo com o disposto no artº 646º, nº 4, jamais o tribunal poderá responder a esta matéria.
A base instrutória serve fundamentalmente para integrar factos cuja prova deva assentar noutros meios sujeitos à livre apreciação do tribunal e não para concentrar aqueles cuja prova seja sujeita, pela lei substantiva, a um critério mais rígido, que afaste qualquer liberdade na formação da convicção (v.g. contrato-promessa, escritura pública, certidão de nascimento ou de casamento, letra ou livrança, etc).
Destarte, deparando-se o juiz com uma situação em que apenas persiste a controvérsia sobre determinados factos para os quais a lei estipula, como meio único e insubstituível, a prova documental, o dinamismo exigido, a celeridade processual e a prevalência das razoes materiais devem levá-lo a notificar as partes interessadas para procederem à junção dos documentos necessários, após o que estará em condições de pronunciar o direito aplicável e decidir.
d) - Mais dúvidas se suscitam quando, como ocorre na grande maioria dos casos, na fase posterior aos articulados, o juiz conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos e que, de acordo com as diversas soluções plausíveis, sejam relevantes para a decisão.
É aqui que a utilização do prudente critério do juiz pode servir para selecionar os casos em que, apesar das divergências, se justifica o julgamento antecipado ou em que é preferível avançar com o processo para a base instrutória e para a audiência de discussão e julgamento para apuramento dos factos que interessem à correcta e completa integração jurídica.
Como critério geral de actuação deve o juiz optar entre a decisão antecipada do mérito da causa ou relegá-la para depois da audiência de discussão e julgamento, depois de fazer um juízo de prognose acerca da relevância ou não dos factos ainda controvertidos para a justa decisão da causa.
Julgamos que não se torna necessário que todos os factos com relevância para a decisão da causa já se encontrem provado. Basta que o tribunal, partindo dos elementos de facto constantes do processo, possa emitir uma decisão segura, que, em princípio não seja afectada pela evolução posterior.
Se, apesar de se manter a controvérsia quanto à matéria de facto, o juiz se achar habilitado a proferir uma decisão conscienciosa, quer no sentido da procedência, quer da improcedência, cremos despicienda a elaboração da base instrutória, que nada adiantaria, tendo em consideração a prevista integração jurídica do caso.
Quer-nos parecer, no entanto, que o critério legal a utilizar para avaliar das possibilidade de antecipar a decisão deve ser objectivo e não subjectivo. (Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, II volume, Livraria Almedina, 1997, pág. 127-128).
No caso, o distinto Tribunal entendeu que o estado do processo e os elementos juntos aos autos já permitiam tomar uma decisão conscienciosa, ou seja, a situação cai na hipótese b) acima citada.
Serão tão lineares as coisas?
Vejamos ponto por ponto.
*
II – Causas de pedir invocadas pelos Autores:

Coerentemente interpretados os factos alegados pelos Autores, é de verificar que o que eles pretendem discutir no juízo não são os efeitos directos e imediatos decorrentes dos alegados contratos-promessa, mas as causas remotas, imputadas ao Governo da RAEM, Ré nos presentes autos, que impossibilitam a execução do acordado entre as partes dos contratos-promessa. Obviamente nestes termos, podia e devia chamar intervir neste processo outra parte do contrato-promessa, concessionária, mas isto é a opção das partes, quer por quem vem propor a respectiva acção, quer por quem vem defender-se na mesma.
Portanto, é a responsabilidade extracontratual que se pretende discutir, a tese da eficácia relativa do contrato não vale, de todo em todo, para a situação dos autos (aliás, a aplicabilidade desta tese em si gera controvérsia doutrinal e jurisprudencial, o que demonstra que não é tão manifesto como se defendeu na primeira instância), visto que a causa invocada é complexa, na medida em que houve intervenção simultânea da concessionária e do Governo da RAEM nos factos, verificados durante o prazo da validade da concessão do terreno em causa, que originaram os alegados prejuízos alegados pelos Autores!
A propósito deste tipo de acção, escreve António Santos Abrantes Geraldes:
f) Acções de responsabilidade civil extracontratual:
Trata-se de uma causa de pedir complexa, como complexa é normalmente a situação de facto de onde emerge o direito à indemnização, pressupondo, segundo as circunstâncias, a alegacão de matéria de facto relacionada com o evento, a ilicitude, a conduta culposa ou uma situação coberta pela responsabilidade objectiva, os prejuízos e o nexo de causalidade adequada entre o evento e os danos. (cfr. in Temas da Reforma do Processo Civil, I volume, Livraria Almedina, 1997, pág. 186).

Nestes termos, importa averiguar quais os actos (ilícitos ou lícitos) da gestão pública que produzem a situação responsabilizante e em que medida a intervenção da entidade pública e da concessionária. Sem dúvida, perante a entidade pública, quem fica prejudicado, na primeira linha (no que toca aos direitos e deveres), é a concessionária, que, através do respectivo contrato-promessa, legalmente celebrado e “chancelado” de algum modo pela Administração Pública (que Administração Fiscal, quer Administração na área de Obras Pública, que emitia licença de obras), “transmitiria” direitos (e também “riscos”, que traduzem, em última instância, prejuízos sofridos, na óptica dos Autores) para os Autores mediante os alegados contratos-promessa.
Pelo que, é pertinente apurar quais os actos da gestão pública, quer lícitos quer ilícitos, do Governo da RAEM, que deram origem à situação responsabilizante. De realçar que, sobre esta matéria, os tribunais da RAEM nunca se pronunciaram até hoje, por os processos de recurso contencioso em que se discutem as questões ligadas à declaração da caducidade do terreno concedido não serem sede própria para a discutir. Nem estes processos comportam elementos suficientes para esta finalidade.
Agora, quem tem razão e em que medida se verifica o nexo de causalidade, e, até onde vai a medida da culpa, é já uma questão do mérito que depende das provas que cada uma das partes trará para os autos.
Pelo expendido, e salvo o merecido respeito, não se deve entender que estavam reunidos os pressupostos necessários ao conhecimento do mérito da acção na fase de saneador, face ao estado em que se encontram os autos.
Mas, há outras razões suficientes para discordar da posição assumida pelo distinto tribunal recorrido.
*
III – Critério de “pedidos manifestamente improcedentes”:

Uma vez que da sentença sob censura decorre a ideia de que tal decisão foi tomada com base nos fundamentos manifestamente infundados, importa apurar o critério que se deve seguir para este efeito.
Antes, uma nota lateral, que não deixa de ser pertinente:
Caso se entendesse que fosse MANIFESTA a improcedência dos pedidos dos Autores, devia ser proferido o despacho liminar de indeferimento e não fazer aquilo que não devia ter realizado, mandando citar a Ré, tendo esta vindo contestar a acção, depois é que veio a conhecer do mérito alegando a desnecessidade de produção de provas. O que demonstra que a situação da improcedência dos pedidos não é tão manifesta como se defendeu na decisão recorrida.
Falando do “manifesto”, importa esclarecer o seu conceito: quando é que se deve considerar um pedido manifestamente improcedente?
Advérbio esse que deriva do adjectivo manifesto, que significa algo que é evidente, que é notório, que é patente ou claro (cfr. Grande Dicionário de Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, Vol. II., pág. 11).
E, nessa medida, vinha, a tal propósito, constituindo entendimento dominante que, para conhecer do mérito da acção no saneador com base na sua manifesta improcedência, com tal fundamento, só deveria ocorrer quando a improcedência ou a inviabilidade da pretensão do autor se apresentasse de forma tão evidente, que tornasse inútil qualquer instrução e discussão posteriores, isto é, que fizesse perder qualquer razão de ser à continuação do processo, levando a um desperdício manifesto se (não fosse logo atalhada) da actividade judicial, ou, por outras palavras ainda, quando for evidente ou que a pretensão do autor carece de fundamento.
Porém, tal só poderia ser aferido casuisticamente, isto é, só perante cada caso concreto é que se poderia apurar, em função do pedido e dos seus fundamentos de facto e de direito, se a pretensão ou o pedido se apresentavam manifestamente improcedentes. (Vide, por todos, o prof. Alb. dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, págs. 377 e 378”; o Prof. A Varela e outros, in “Manual do Código de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 259”; o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil, Anotado, vol. 1º, Coimbra Editora, pág. 399/400” e Ac. da RE de 24/10/1985, in “CJ, Ano X, T4 – 302”).
Num esforço de maior precisão e delimitação de tal conceito, decorre das palavras de Abrantes Geraldes (in “Temas da Reforma do Processo Civil, 2ª ed., Almedina, pág. 162”) que a manifesta improcedência reconduzir-se-á “aos casos em que a tese propugnada pelo autor não tenha possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência”.
Já, por sua vez, Salvador da Costa (in “A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 5ª ed., 2005, pág. 95”), afirma que “a pretensão formulada pelo autor é manifestamente improcedente ou manifestamente inviável porque a lei a não comporta ou porque os factos apurados, face ao direito aplicável, a não justificam”(…).
E concluiu-se - erradamente, em nosso entender - que, no caso concreto, atentos os pedidos formulados e os seus fundamentos de facto e direito e atento tudo quanto já se disse, verifica-se que os mesmos não são manifestamente improcedentes.
Ora, mal andou o tribunal recorrido em concluir, que os pedidos formulados pelos Autores na acção – acima discriminados – são manifestamente improcedentes, face ao tipo de acção em causa.
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IV – Nulidade da sentença resultante da violação do preceituado nos artigos 429º/1-b) e 562º do CPC

Já vimos que a causa de pedir (complexa) invocada pelos Autores se prende com os factos de gestão pública por actos ilícitos e lícitos (causa de pedir subsidiária), conforme o quadro fáctico pintado pelos Autores, e nesta medida, compete-lhes alegar e provar os factos constitutivos dos direitos alegados. Ora, na decisão recorrida não se encontra indicada factualidade considerada assente para tomar a respectiva decisão, ou seja, para decidir as questões suscitadas pelas partes no juízo.
Ora, como ao julgador compete subsumir os factos considerados provados às normas jurídicas aplicáveis para resolver o litígio que as partes lhe apresentem, é um vício insuprível e insubstituível pelo tribunal ad quem, a falta da fixação dos factos considerados provados, ainda que o julgador entendia que as pretensões formuladas pelos Autores se reputavam de improcedência manifestamente, tal omissão viola o preceituado no artigo 429º/1-b) do CPC, e também prejudica o direito processual das partes, porque a estas é impossível atacar a matéria de facto, caso desta discordem.
Neste aspecto, cabe sublinhar o que o legislador estipula no artigo 562º do CPC:
    
1. A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
2. Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
3. Na fundamentação da sentença, o juiz toma em consideração os factos admitidos por acordo ou não impugnados, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.
4. Se tiver sido oral a discussão do aspecto jurídico da causa, a sentença pode ser logo lavrada por escrito ou ditada para a acta.
Sem dúvida este preceito legal aplica-se ao despacho saneador quando este conhece do mérito da acção.

A este propósito e no domínio do CPC de 1961, já se defendia:
    
I – As expressões «necessária confiança» e «decisão conscienciosa», contidas no art. 510º, n.º1, alínea c), do Cód. Proc. Civil, apontam claramente para o entendimento de que só deve conhecer-se do pedido se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo. II- Assim, se uma dessas soluções impuser prosseguimento do processo em ordem ao apuramento dos factos alegados, não pode proferir-se decisão sobre o mérito de causa (Ac. RL, de 24.7.1981: BMJ, 314.º-361).

I – O art. 510º, n.º 1-c) do C.P. Civil contém implícita, como aconselhável, a regra de que o juiz se abstenha de decidir enquanto no processo não estejam obtidos os pontos de facto articulados, necessários para as verias e plausíveis soluções da questão de direito. II – Isto, ainda que em abstracto aceite para si uma solução jurídica em vez de outra, mas desde que para esta segunda se torne necessário proceder à selecção de factos, desnecessários para a primeira. III – O disposto no art. 2166 n.º 1-c) do C.Civil não consente que o testador deserde o seu sucessível com fundamento na recusa de alimentos ao autor da sucessão, desde que jamais foi fixada judicialmente ou convencionada, qualquer prestação alimentar a pagar pelo sucessível ao autor da sucessão (Ac. RC de 29.10.1991: Col. Jur., 1991, 4.º -124).
Mutatis mutandis, o raciocínio expendido nestes arestos citados continua a valer para o sistema de processo civil vigente em Macau.

Foi efectivamente omitida esta parte de factualidade pertinente para a decisão da causa.
O que não deixa de originar o vício indicado no artigo 571º/1-b) e d) do CPC, gerando nulidade da sentença.
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V – Critério de várias soluções plausíveis que imponha a uma outra decisão:

Como se refere anteriormente, a causa de pedir invocada é complexa, baseada em factos de natureza diferente, sendo ponto fulcral que os Autores não podem ver-se cumpridos os contratos-promessa pela promitente-vendora (concessionária do terreno em causa) por “ordem” da RAEM/Ré, tendo esta “cortado” à promitente-vendedora a possibilidade de cumprir o acordado. Nesta óptica, havendo várias soluções plausíveis para a questão de direito, não deve o juiz conhecer logo do pedido na fase do saneador e julgando improcedente os pedidos dos Autores, ainda que tenha por certa a orientação que exclui a possibilidade de vir a ser proferida uma decisão de mérito que não dava razão aos Autores na leitura feita pelo distinto Tribunal recorrido.
Destarte, verifica-se que nos encontramos perante uma série de possibilidades sucedâneas, as quais, ainda que com uma intensidade factual decrescente atinente às várias hipóteses alegadas, são todas e cada uma delas, bastantes para prosseguir os trâmites processuais para cada uma das partes apresentar os seus fundamentos fácticos e jurídicos mediante provas bastantes para defender a sua posição. Eis as chamadas “várias soluções plausíveis de Direito.”
Assim sendo, mais uma vez se reafirma, em face do alegado, não era evidente ou transparente a improcedência das pretensões dos Autores; esta não resultava da simples leitura dos articulados, pelo que deveria o juiz a quo abster-se de conhecer do mérito na fase de condensação do processo, justificando-se, por outro lado, a eventual realização, por iniciativa do Tribunal, caso assim entenda, de outras diligências tendentes a esclarecer/apurar os factos pertinentes é também uma hipótese que não se deve excluir logo nesta fase preliminar.
Aliás, é o próprio autor da sentença recorrida que revela haver, pelo menos, duas teses em redor da possibilidade de terceiros poderem ser responsabilizados na situação em que o contrato entre as partes não pode ser concluído. Sendo assim, isso mostra que a solução não é totalmente líquida. E não o sendo, importaria elencar factos pertinentes para com base neles decidir o litígio, de acordo com as várias soluções plausíveis de Direito.
Na verdade, não sendo manifesta a improcedência dos pedidos em causa, só em face das provas a produzir-se por cada uma das partes é que o julgador estará em condições de decidir o litígio à luz dos critérios de direito aplicável.
Assim, se uma dessas soluções impuser prosseguimento do processo em ordem ao apuramento dos factos alegados, não pode proferir-se decisão sobre o mérito de causa no saneador.
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VI - Uma nota final complementar:
Dos termos consignados na sentença sob censura resulta claramente que o próprio autor da sentença recorrida revela haver, pelo menos, duas teses em redor da possibilidade de terceiros poderem ser responsabilizados na situação em que o contrato entre as partes não pode ser concluído. Sendo assim, isso mostra que a solução não é totalmente líquida. E não o sendo, importaria elencar factos pertinentes para com base neles decidir o litígio, de acordo com as várias soluções plausíveis de Direito.
Acresce dizer ainda o seguinte: O Meritíssimo Juiz do TA afirmou que, mesmo provados os factos invocados pelos Autores, outra não poderia ser a solução que tomou. Salvo o devido respeito, não está certa esta afirmação, porque não passa de uma pessoal opinião que pode não ser subscrita por outros, nomeadamente pelo tribunal hierarquicamente superior em sede de recurso. Basta admitir que o tribunal ad quem pense diferentemente para logo se concluir pela necessidade dos factos fixados, para só então se entrar na análise das possíveis soluções (plausíveis) de Direito.
Entende-se da mesma maneira quando se afirma:
“As excepções para as quais haja várias soluções plausíveis de direito só devem ser julgadas no despacho saneador se já estiverem assentes os factos necessários para delas conhecer na perspectiva de todas as soluções plausíveis” (cfr. Ac. da RP, de 11/01/2018, Proc. Nº 4075/2016).
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Em face do expendido, é de declarar-se nula a sentença recorrida, por violar o disposto no artigo 562º/2 e 3, 571º/1-b) e d), 429º/1-b), todos do CPC, ex vi do artigo 99º/1 do CPAC, ordenando-se a remessa dos autos ao TA para fixar os factos considerados provados com interesse para a resolução das questões suscitadas e consequentemente proferir a respectiva decisão em conformidade e/ou para, caso inexista obstáculo legal, elaborar o respectivo saneador e seguir a tramitação subsequente nos termos da lei processual aplicável.
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Síntese conclusiva:
I - Conhecer do mérito da acção no saneador, com base na sua manifesta improcedência dos pedidos formulados pelos Autores, só deveria ocorrer quando a improcedência ou a inviabilidade da pretensão do autor se apresentasse de forma tão evidente, que tornasse inútil qualquer instrução e discussão posteriores.
II - A expressão “sem necessidade de mais provas”, contidas no art. 429º/1-b) do CPC de Macau, aponta claramente para o entendimento de que só deve conhecer-se do pedido se o processo contiver, seguros, todos os elementos necessários que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo.
III – Gera-se, ao abrigo do disposto nos artigos 562º/2 e 3, 571º/1-b) e d), 429º/1-b), todos do CPC, ex vi do artigo 99º/1 do CPAC, nulidade da decisão quando esta foi tomada no senador em que não se fixam os factos considerados assentes com interesse para a decisão da causa, circunstâncias estas que, não só afectam o estatuto processual das partes, na medida em que estas não têm condições para impugnar os factos considerados pelo tribunal recorrido, caso destes discordam, como também obstem ao Tribunal ad quem de formar juízo valorativo sobre a decisão de facto tomada pelo Tribunal a quo.

*
Tudo visto, resta decidir.

* * *
    V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do TSI acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional, declarando nula a sentença recorrida por vícios acima apontados, e mandar baixar os autos ao TA para fixar os factos considerados provados com interesse para a resolução das questões suscitadas e consequentemente proferir a respectiva decisão em conformidade e/ou para, caso inexista obstáculo legal, elaborar o respectivo saneador e seguir a tramitação subsequente nos termos da lei processual aplicável.
*
Sem custas.
*
Notifique e Registe.
*
RAEM, 27 de Fevereiro de 2020.
_________________________
Fong Man Chong
_________________________
José Cândido de Pinho
_________________________
Ho Wai Neng
(Com declaração de voto)











卷宗編號:1176/2019

落敗聲明

  在尊重不同意見下,本人認為原審法院的決定是正確的,應予以維持並裁判上訴不成立,理由如下:
1) 原審法院雖指出存在不同的法律見解,但其最後選定了葡萄牙學者Vaz Serra 的見解,即“原則上不承認債的外在效力。在不履行債務的情況下,即使其中存在第三人的過錯的競合,也只有債權人負有責任。但是,如果第三人的行為特別惡劣,應受譴責,那麼其可以因濫用權利的行為而對債權人負有責任。因此,只有在具備相關前提要件的情況下,才能以濫用權力追究第三人的責任”。
2) 根據有關法律觀點,原審法院認為即使假設原告所陳述的事實獲得證實,相關的訴訟請求也是不能成立而駁回所有請求。
3) 在此前提下,應該先審查原審法院所持的法律觀點及相關認定是否正確。倘原審法院的法律觀點及認定是正確的,基於訴訟經濟和快捷原則,原審法院可直接在清理批示中對實體問題作出審理,而不需對事實作出調查(《民事訴訟法典》第429條第1款b)項之規定)。這樣,有關判決也不需要根據《民事訴訟法典》第562條第2款之規定,逐一敍述獲證實的事實,茲因該等事實的認定與否對裁判而言已不屬重要。
4) 本人認同原審法院所採納的法律觀點,此外亦同意原審法院認定即使原告所陳述的事實獲證實,也不存在被告濫用權利和行為特別惡劣而應負上作為第三人的賠償責任的結論所持的依據,在此視為完全轉錄。
5) 事實上,被告僅是和土地承批人,即保利達,建立了法律關係;一切因應承批土地所作出的行為,均是針對土地承批人而作出。因此,該等行為倘損害了土地承批人的權益,例如無法如期利用土地而導致其需向他人作出賠償,也只能是土地承批人向被告追討賠償,而非他方第三者可直接向被告追討因土地承批人違反與其簽定的預約買賣合同的賠償責任。如上所述,只有在被告濫用權利,行為特別惡劣的情況下其才需負上相關賠償責任,然而本案並不存在該等情況。
*
法官


________________________
何偉寧
2020年02月27日


1 MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral das Obrigações, 1963, pp.48 a 51, VAZ SERRA, Responsabilidade de terceiros no não-cumprimento de obrigações, BMJ, n.º 85, Abril de 1959, pp.352, apud. E. Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, Almedina, pp.416 a 418, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 10.ª edição reelaborada, Almedina, pp.91 a 96), ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, vol.I,10.ª edição, Almedina, pp.172 e 174 a 175.
2 MANUEL TRIGO, Lições de Direito das Obrigações, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 2014, pp.88.
3 RUI DE ALARCÃO, Direito das Obrigações, pp.77 a 89, ORLANDO DE CARVALHO, Direito das Coisas, 1977, pp 145 e ss, e Direito das Coisas, 2012, pp110 e ss, e ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, vol.I,10.ª edição, Almedina, pp.172 e 174 a 175, apud. Manuel Trigo, Lições de Direito das Obrigações, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 2014, pp.88.
4 Lições de Direito das Obrigações, pp.599 a 603, apud. E. Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, Almedina, pp.420 a 422,
5 Direito das obrigações, vol.I, Faculdade de Direito de Lisboa, p.252 a 270.
6 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extra-contratual do Estado e demais Entidades Públicas, pp.218 a 219.
7 MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral das Obrigações, 1963, pp.48 a 51, VAZ SERRA, Responsabilidade de terceiros no não-cumprimento de obrigações, BMJ, n.º 85, Abril de 1959, pp.352, apud. E. Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, Almedina, pp.414 a 418, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 10.ª edição reelaborada, Almedina, pp.91 a 100, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em geral, vol.I,10.ª edição, Almedina, pp.172 e 174 a 175.
8 MANUEL TRIGO, Lições de Direito das Obrigações, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 2014, pp.88.
9 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extra-contratual do Estado e demais Entidades Públicas, pp.218 a 219.
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