Processo n.º 15/2020 Data do acórdão: 2020-3-5
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– desconto do período da prisão preventiva
– art.o 74.o, n.o 1, do Código Penal
S U M Á R I O
1. No caso dos autos, como analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto, não se verifica o vício de erro notório na apreciação da prova.
2. O período da prisão preventiva será sempre descontado por inteiro na execução da pena de prisão nos termos do art.o 74.o, n.o 1, do Código Penal, pelo que a circunstância de estar preso preventivamente não constitui atenuante na medida da própria pena de prisão.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 15/2020
(Recurso em processo penal)
Recorrentes:
1.o arguido A
2.o arguido B
3.o arguido C
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I. RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 1875 a 1888 do Processo Comum Colectivo n.° CR2-19-0274-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base:
– ficou o 1.o arguido A condenado:
– como autor material de um crime consumado de burla em valor elevado (contra a ofendida D), p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 3 e 1, e 196.o, alínea a), do Código Penal (CP), com pena especialmente atenuada devido à reparação total do prejuízo causado, em um ano de prisão;
– como co-autor material de um crime consumado de passagem de moeda falsa, p. e p. pelo art.o 255.o, n.o 1, alínea a), do CP, com circunstância agravante prevista pelo art.o 22.o da Lei n.o 6/2004, em um ano e três meses de prisão;
– como co-autor material de um crime consumado de burla em valor consideravelmente elevado (contra a ofendida E), p. e p. pelos art.os 211.o, n.o 4, alínea a), e 196.o, alínea b), do CP, com circunstância agravante prevista pelo art.o 22.o da Lei n.o 6/2004, em dois anos e nove meses de prisão;
– como co-autor material de um crime consumado de burla em valor elevado (contra a ofendida F), p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 3 e 1, e 196.o, alínea a), do CP, em um ano e seis meses de prisão;
– e como co-autor material de um crime consumado de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação, p. e p. pelo art.o 256.o, alínea a), do CP, com circunstância agravante do art.o 22.o da Lei n.o 6/2004, em um ano de prisão;
– e finalmente, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos de prisão;
– ficou o 2.o arguido B condenado:
– como co-autor material de um crime consumado de passagem de moeda falsa, p. e p. pelo art.o 255.o, n.o 1, alínea a), do CP, com circunstância agravante do art.o 22.o da Lei n.o 6/2004, em um ano e seis meses de prisão;
– como co-autor material de um crime consumado de burla em valor elevado (contra a ofendida Li Jingfang), p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 3 e 1, e 196.o, alínea a), do CP, em um ano e seis meses de prisão;
– e como co-autor material de um crime consumado de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação, p. e p. pelo art.o 256.o, alínea a), do CP, com circunstância agravante do art.o 22.o da Lei n.o 6/2004, em um ano e seis meses de prisão;
– e, em cúmulo jurídico, na pena única de três anos e nove meses de prisão;
– e, ainda em cúmulo jurídico com a punição imposta no Processo Sumário n.o CR1-19-0022-PSM, na pena única de quatro anos de prisão;
– e ficou o 3.o arguido C condenado:
– como co-autor material de um crime consumado de passagem de moeda falsa, p. e p. pelo art.o 255.o, n.o 1, alínea a), do CP, em um ano de prisão;
– como co-autor material de um crime consumado de burla em valor consideravelmente elevado (contra a ofendida Xie Lingjuan), p. e p. pelos art.os 211.o, n.o 4, alínea a), e 196.o, alínea b), do CP, em dois anos e seis meses de prisão;
– e, em cúmulo jurídico, na pena única de três anos e três meses de prisão;
– outrossim, os 1.o e 2.o arguidos ficaram condenados a pagar solidariamente à ofendida Li Jingfang a quantia total de RMB43.900,00 (quarenta e três mil e novecentos renminbis) (com juros legais a contar da data desse próprio acórdão até integral e efectivo pagamento), arbitrada oficiosamente para indemnização dos danos patrimoniais dessa ofendida.
Inconformados, vieram os três arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
Alegou o 1.o arguido A, em essência, o seguinte na motivação apresentada a fls. 1947 a 1954 dos presentes autos correspondentes:
– a favor dele verificam-se diversos factores que, caso valorados convenientemente, determinariam a aplicação da pena diversa da decidida no acórdão recorrido;
– com efeito, importa desde logo ter em conta, enquanto factor especialmente atenuante, a circunstância de ele ter ressarcido os danos causados em relação ao crime de burla;
– impõe-se também revelar a circunstância de ele ser delinquente primário, ter confessado integralmente e sem reservas os factos, postura demonstrativa do seu arrependimento;
– a situação pessoal e financeira dele deveria ter sido atendida com maior acuidade pelo Tribunal recorrido;
– a circunstância de ele ter estado preso preventivamente durante praticamente dez meses não podia, de forma alguma, ser desconsiderada na determinação da medida da pena;
– assim, a sua pena única de cinco anos de prisão deve ser reduzida.
Sustentou o 2.o arguido B, no essencial, o seguinte na sua motivação a fls. 1930 a 1937 dos autos:
– há erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido a respeito do crime de passagem de moeda falsa e do crime de aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação por que vinha o próprio recorrente condenado em primeira instância, devendo ser ele ser absolvido desses dois crimes, porquanto a livre convicção desse Tribunal foi formada com violação das regras da experiência da vida humana, para além de se ter baseado no teor do documento junto a fls. 376 a 377 dos autos (de autoria da Brigada de Investigação de Crimes Económicos do Serviço de Segurança Pública da Cidade de Zhongshan da China), cuja veracidade não chegou a ser investigada na audiência de julgamento nos termos do art.o 336.o do Código de Processo Penal (CPP);
– a pena de prisão do seu crime de burla em valor elevado deve ser reduzida para não mais do que um ano e três meses de prisão, em virtude sobretudo da sua confissão total dos factos na audiência de julgamento, com consequente possível suspensão da execução da pena;
– e se se mantivesse a condenação do crime de aquisição de moeda falsa, este crime deveria passar a ser punido com pena de prisão não superior a um ano, o que faria com que ele tivesse que passar a ser punido com pena única de prisão não superior a três anos, com possível suspensão da execução da pena.
Preconizou o 3.o arguido C, em síntese, o seguinte na motivação constante de fls. 1923 a 1926v dos autos:
– a decisão condenatória dele no crime de passagem de moeda falsa padece do vício de erro notório na apreciação da prova, sendo certo que ele nunca agiu com dolo de praticar os factos desse crime, pelo que a conduta dele não poderia ser punida à luz do art.o 12.o do CP;
– e fosse como fosse, deveria ser convolado esse crime para o crime do art.o 255.o, n.o 2, alínea a), do CP;
– e ainda subsidiariamente falando, é excessiva a medida da pena feita pelo Tribunal recorrido, ao arrepio do disposto nos art.os 40.o e 65.o do CP.
Aos três recursos em causa, respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 1988 a 1996v, no sentido de improcedência dos mesmos.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 2013 a 2015v, pugnando também pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 1875 a 1888 dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Por uma questão de precedência lógica das coisas, cumpre decidir primeiro do vício de erro notório na apreciação da prova, suscitado pelos 2.o e 3.o arguidos nas suas motivações.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, e até com minúcia, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos (cfr. o conteúdo da fundamentação probatória do acórdão recorrido, na parte concretamente a partir do 1.o parágrafo da página 17 do seu texto a fl. 1883, até ao 4.o parágrafo da sua página 19 a fl. 1884).
O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, sendo de frisar que esse Tribunal não violou o art.o 336.o do CPP quanto à valoração do teor do documento de fls. 376 a 377 dos autos: de facto, o conteúdo desse documento não deixou de ter sido apreciado pelo Tribunal recorrido a título de uma das provas documentais carreadas aos autos, com sujeição ao princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.o 114.o do CPP.
Assim, ante toda a factualidade já dada por provada em primeira instância, é de manter toda a decisão condenatória já tomada no aresto recorrido (sendo de observar que essa factualidade já provada espelha que o 3.o arguido também agiu indubitavelmente com dolo, aquando da prática dos factos integradores do crime de passagem de moeda falsa, o que prejudica o seu desejo de ver convolado este crime para o do art.o 255.o, n.o 2, alínea a), do CPP).
Da questão da medida da pena:
Vistas todas as circunstâncias do caso já apuradas pelo Tribunal recorrido com pertinência à medida da pena aos padrões vertidos mormente nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, 65.o, n.os 1 e 2, e 71.o, n.os 1 e 2, do CP, e tendo em conta as elevadas exigências da prevenção geral dos crimes em causa, é de louvar, in totum, a decisão recorrida também na matéria da medida concreta da pena, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP (sendo de notar, entretanto, o seguinte, a propósito da motivação do recurso do 1.o arguido: a já reparação total dos danos causados a uma das ofendidas dos três crimes de burla praticados por ele já foi considerada na decisão de atenuação especial da pena do respectivo crime de burla, e o período da prisão preventiva será sempre descontado por inteiro na execução da pena de prisão nos termos do art.o 74.o, n.o 1, do CP, pelo que a circunstância de estar preso preventivamente não constitui atenuante na medida da própria pena de prisão).
Mantida a punição já achada no acórdão recorrido, é inviável o pedido do 2.o arguido de suspensão da execução da pena de prisão, por inverificação, a montante, do requisito formal exigido na parte inicial do n.o 1 do art.o 48.o do CP.
Em suma, improcedem todas as pretensões dos três recorrentes no concernente à medida da pena.
Naufragam, pois, os três recursos em questão, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada.
IV. DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento aos recursos.
Custas dos recursos pelos respectivos três arguidos, com duas UC de taxa de justiça para o 1.o arguido (que pagará também a quantia de duas mil patacas a título de honorários a favor da sua Ex.ma Defensora Oficiosa), com seis UC de taxa de justiça para o 2.o arguido (que pagará também a quantia de duas mil e trezentas patacas a título de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso) e com seis UC de taxa de justiça para o 3.o arguido (que pagará também a quantia de duas mil patacas a título de honorários oficiosos, cabendo mil e setecentas à sua Ex.ma Defensora Oficiosa que lhe motivou o recurso, e as restantes trezentas ao seu actual Ex.mo Defensor Oficioso).
Comunique a presente decisão às três ofendidas referidas no dispositivo do acórdão recorrido.
Macau, 5 de Março de 2020.
_______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
_______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
_______________________
Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
Processo n.º 15/2020 Pág. 1/14