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Processo n.º 1055/2019 Data do acórdão: 2020-3-5
Assuntos:
– recurso manifestamente improcedente
– reclamação para conferência
– objecto da decisão da reclamação
– art.o 5.o, n.o 1, da Lei n.o 11/2009
– crime de obtenção ilegítima de dados informáticos
S U M Á R I O

1. O recurso deverá ser rejeitado por decisão sumária do relator quando for manifestamente improcedente, nos termos dos art.os 407.o, n.o 6, alínea b), e 410.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, podendo o recorrente reclamar da decisão de rejeição para conferência.
2. A reclamação da decisão sumária do recurso não pode implicar a alteração do objecto do recurso.
3. A norma do n.o 1 do art.o 5.o da Lei n.o 11/2009 (com a epígrafe de “Obtenção, utilização ou disponibilização ilegítima de dados informáticos”) não exige a prática cumulativa das três condutas aí referidas para a verificação do crime nela tipificado. Portanto, basta o acto de obtenção, sem autorização e com qualquer intenção ilegítima, de dados informáticos que não sejam destinados ao agente, contidos num sistema informático ou num suporte de armazenamento de dados informáticos, ao qual o agente tenha tido acesso ainda que legítimo, para se ter por existente o crime em causa.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 1055/2019
(Autos de recurso penal)
(Da reclamação para conferência da decisão sumária do recurso)
Recorrente (arguido): A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 344 a 353 do Processo Comum Singular n.° CR4-19-0138-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou condenado o arguido A como autor material, na forma consumada, de um crime de obtenção, utilização ou disponibilização ilegítima de dados informáticos, p. e p. pelo art.o 5.o, n.o 1, da Lei n.o 11/2009, de 6 de Julho, na pena de setenta e cinco dias de multa, à quantia diária de duzentas e vinte patacas, ou seja, no total de dezasseis mil e quinhentas patacas de multa, convertível em cinquenta dias de prisão, no caso de não pagamento nem de substituição por trabalho.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), tendo imputado à decisão recorrida a verificação de erro notório na apreciação da prova como vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), porquanto, no entender dele, e no essencial, conforme o alegado na sua motivação apresentada a fls. 386 a 405 dos presentes autos correspondentes:
– o crime do art.o 5.o, n.o 1, da Lei n.o 11/2009 abrange três condutas materiais distintas: a obtenção, a utilização e a disponibilização de dados de sistema informático sem autorização e com intenção ilegítima;
– não sendo, assim, o mero acesso uma conduta punível;
– nos autos, não houve produção de prova suficiente relativamente à verificação de alguma das três condutas puníveis;
– o Tribunal recorrido formou a sua convicção essencialmente a partir das declarações que o arguido alegadamente prestou perante a assistente, segundo apenas o depoimento das duas testemunhas que actualmente trabalham para a assistente;
– simplesmente, o Tribunal recorrido mostrou evidente inclinação para afastar a credibilidade ou aplicabilidade do depoimento da testemunha apresentada pelo arguido e para acolher a credibilidade relativamente às testemunhas da assistente;
– ademais, e nomeadamente, o facto de no telemóvel do arguido se ter encontrado registos de pessoas que também constavam do sistema “CRM” da assistente não é prova suficiente de que tais registos foram obtidos mediante acesso ao sistema “CRM” da assistente;
– deve, pois, ser revogada a sentença recorrida, ou reenviado o processo para novo julgamento, por essa decisão recorrida ter violado o princípio de in dubio pro reo e do princípio da livre apreciação da prova.
Respondeu o Ministério Público a fls. 409 a 411v no sentido de improcedência da argumentação recursória do arguido. Em igual sentido, respondeu também a assistente a fls. 413 a 419.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 428 a 429v, pugnando também pela manutenção do julgado.
Por decisão sumária proferida a fls. 432 a 435, decidiu o ora relator em rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente.
Veio o arguido reclamar dessa decisão para conferência, através do petitório de fls. 440 a 461.
Sobre a matéria dessa reclamação, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fl. 465 pela improcedência da mesma.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A sentença recorrida pelo arguido encontrou-se proferida a fls. 344 a 353 dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
2. A decisão sumária do relator de rejeição do recurso do arguido tem o seguinte conteúdo, inclusiva e materialmente, como fundamentação da própria decisão:
Veio o arguido questionar a livre convicção do Tribunal sentenciador, no tocante à indagação dos factos do crime de obtenção, utilização ou disponibilização ilegítima de dados informáticos p. e p. pelo art.o 5.o, n.o 1, da Lei n.o 11/2009, por que vinha condenado em primeira instância.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto. Aliás, esse Tribunal expôs congruentemente, e até com bastante minúcia, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos (cfr. o teor da mesma fundamentação probatória, tecida nas páginas 9 a 15 do texto da sentença, a fls. 348 a 351 dos autos), razões essas que rebatem já materialmente a argumentação tecida na motivação do recurso.
Como o resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, improcede o vício de erro notório na apreciação da prova.
E ante a mesma factualidade provada toda, é nítida a autoria material do arguido, na forma consumada, do crime do n.o 1 do art.o 5.o da Lei n.o 11/2009 (com a epígrafe de “Obtenção, utilização ou disponibilização ilegítima de dados informáticos”), segundo cuja redacção: “Quem, sem autorização e com qualquer intenção ilegítima, obtiver, utilizar ou colocar à disposição de outrem dados informáticos que não lhe sejam destinados, contidos num sistema informático ou num suporte de armazenamento de dados informáticos, ao qual tenha tido acesso ainda que legítimo, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Frisa-se que essa norma não exige a prática cumulativa das três condutas aí referidas (quais sejam, obtenção, utilização e colocação à disposição de outrem) para a verificação do crime nela tipificado. Portanto, basta o acto de obtenção, sem autorização e com qualquer intenção ilegítima, de dados informáticos que não sejam destinados ao agente, contidos num sistema informático ou num suporte de armazenamento de dados informáticos, ao qual o agente tenha tido acesso ainda que legítimo, para se ter por existente o crime em causa, sendo certo que no caso dos autos, a factualidade descrita como provada integra perfeitamente isto, e daí a legalidade e justeza da decisão condenatória.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Veio o arguido recorrente reclamar para conferência da decisão tomada pelo relator pela qual foi rejeitado o recurso dele por manifestamente improcedente.
Cabe, pois, a este Tribunal de recurso conhecer do objecto do recurso então interposto pelo arguido, porquanto a reclamação da decisão sumária do recurso não pode implicar a alteração do objecto do recurso.
Pois bem, vistos todos os elementos dos autos, é de improceder a reclamação sub judice, porquanto há que manter, nos seus precisos termos, a decisão sumária do recurso, por essa decisão do relator estar conforme com a matéria de facto já dada por provada em primeira instância (sem erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido) e o direito aplicável aplicado concretamente na fundamentação jurídica da mesma decisão sumária.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a reclamação do arguido recorrente, mantendo a decisão sumária de rejeição do recurso dele.
Para além das custas e taxa de justiça referidos no dispositivo da decisão sumária, pagará ainda o recorrente as custas da sua reclamação, com duas UC de taxa de justiça correspondente.
Macau, 5 de Março de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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