ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 13 de Dezembro de 2007, condenou a A, a pagar ao demandante cível, em processo penal, B a quantia de MOP$1.151.596,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em acidente de viação, bem como em juros à taxa legal, desde o trânsito em julgado da sentença.
Em recurso interposto pela A, o Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 3 de Abril de 2008, negou provimento ao recurso.
Novamente inconformada, recorre para este Tribunal de Última Instância (TUI) a mesma A, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões úteis:
Decidiu o Tribunal recorrido atribuir uma indemnização no valor de MOP$800.000,00 (oitocentas mil patacas) a favor do demandante pelos danos morais sofridos, sem ter fundamentado, de forma sustentada, essa mesma decisão.
Ora, o Tribunal recorrido socorre-se de determinada matéria de facto constante dos relatórios médicos de fls. 250 a 252 e de fls. 379 a 380 (o qual nem sequer é mencionado no acórdão proferido em l.ª instância) que não foi sequer alegada pelo demandante e, se o foi, não foi dada como provada.
Ao ter fundamentado a decisão nesses factos, incorreu o Tribunal recorrido num claro erro processual e num erro de julgamento ao colocar em relevo, para efeitos de fixação dos danos morais, matéria de facto que nem sequer consta do pedido de indemnização cível, ou que, embora tenha sido invocada pelo ofendido, não foi dada como assente.
Acresce que o prognóstico elaborado pelo Tribunal recorrido de que o demandante iria ficar com todas as sequelas por um longo período de tempo, senão mesmo para o resto da vida, não assenta em qualquer pressuposto de facto, tomando em conta que a única sequela com carácter duradouro que ficou plenamente provada foi, e tão só, a perda de olfacto.
Conclui-se assim facilmente que aquele valor, em face dos factos dados como provados, mostra-se totalmente excessivo e exagerado, ficando muito acima do normalmente atribuído pelos tribunais de Macau, não tendo o Tribunal recorrido lançado mão a critérios de equidade para efeitos de cálculo do respectivo quantum indemnizatório.
Entende assim a ora recorrente que deve ser fixada uma indemnização, a título de danos não patrimoniais sofridos pelo demandante resultantes das sequelas que sofreu, no valor de MOP$200.000,00 (duzentas mil patacas), indemnização que se mostraria adequada, ajustada e equilibrada.
No caso sub judice, não houve qualquer prejuízo na esfera patrimonial do lesado, ou seja, qualquer dano patrimonial, no que concerne às despesas das operações cirúrgicas visto que esses encargos ainda se encontram por liquidar, como reconhece a própria sentença recorrida.
Concluindo-se assim que a decisão recorrida nesta parte infringiu, de forma clara, os artigos 477º e 487º do Código Civil, devendo a mesma ser igualmente revogada no sentido da recorrente ser absolvida no tocante ao pagamento da quantia de MOP$28.727,00 (vinte e oito mil e setecentas e vinte e sete patacas), a título de despesas pelas referidas operações cirúrgicas.
Não se afigura existir qualquer nexo de causalidade naturalística entre o facto (acidente de viação) e o dano alegado (desistência do curso por impossibilidade absoluta do ofendido de o concluir, por motivos de saúde, com a correlativa perda das respectivas propinas).
Infringiu assim a decisão recorrida nessa parte os artigos 477º e 557º do Código Civil, devendo a mesma ser igualmente revogada no sentido da recorrente ser absolvida no tocante ao pagamento da quantia de MOP$197.947,00 (cento e noventa e sete mil e novecentas e quarenta e sete patacas), a título de propinas.
II – Os factos
Os factos que as instâncias deram como provados são os seguintes:
Em 31 de Maio de 2003, pelas 17:00 horas, o arguido C conduzia na Rua de Madrid um autocarro pertencente à D, com a matrícula MC-XX-XX, para se dirigir à Rua da Cidade de Braga, através da Alameda Dr. Carlos d’Assumpção.
Na altura, o lesado B conduzia um motociclo com a matrícula MD-XX-XX, na faixa de rodagem esquerda da Alameda Dr. Carlos d’Assumpção, seguindo da Avenida do Dr. Sun Yat-Seng em direcção à Avenida da Amizade (vidé fls. 30).
Ao chegar ao cruzamento entre a Alameda Dr. Carlos d’Assumpção e a Rua da Cidade de Braga, o arguido, sem ter primeiramente assegurado se havia veículos no seu lado esquerdo, com vista a ceder passagem, fez avançar o seu veículo, em que resultou o embate entre o seu veículo e o motociclo do lesado (fls. 30, 34v. e 45v.).
Após o embate, o lesado bem como o seu motociclo foram lançados ao chão, causando-lhe ferimentos em diversas partes do corpo (vidé fls. 30, 34v. e 45v.).
Devido ao acidente, o lesado sofreu os ferimentos referidos no relatório médico a fls. 54 v. dos autos, tendo sido necessário 100 dias para se restabelecer. Tais ferimentos conformam-se com os graves danos a que se referem as alíneas c) e d) do Art. 138.°, dado que provocaram doença por mais de 30 dias e fizeram perigar a vida do lesado. A descrição dos referidos ferimentos é considerada como integralmente reproduzida na presente Acusação.
Na altura do acidente, o tempo estava bom, o chão não estava escorregadio e a intensidade do trânsito era normal.
O arguido não observou a regra cedência de passagem, deixando circular primeiramente os outros veículos.
Não conduziu com cuidado e alerta, com vista a evitar a ocorrência de acidentes.
O arguido estava bem ciente que tal acto não é permitido por lei e que ficaria sujeito a sanções.
O arguido é motorista de autocarro, auferindo uma remuneração mensal de MOP$11.000,00.
É casado, necessita de sustentar os pais, a mulher e dois filhos.
O arguido admitiu os factos acima mencionados, sendo delinquente primário.
Os factos referidos nos artigos 7.°, 12.°, 14.° a 16.°, 23.° a 26.°, 28.°, 37.°, 39.°, 40.°, 41.°, 44.° a 47.° e 54.° do pedido de indemnização cível constante de fls. 98 a 112 dos autos.
Estes artigos do pedido de indemnização cível dizem o seguinte:
7º
O demandante, como causa directa do acidente, teve de suportar, até a data, duas operações cirúrgicas à cabeça.
12º
Assim, e porque a mãe, com quem vive, trabalha no Hotel, o irmão deixou o seu emprego em Hong Kong, onde reside, e veio viver para Macau com o ofendido durante 3 meses (protesta, desde já, juntar os respectivos documentos)
14º
Por lhe ter sido dito que era praticamente impossível pela E, o demandante rescindiu o contrato com a entidade empregadora a “F” em 29.02.04, pelo período de aproximadamente 12 meses (protesta, desde já, juntar os respectivos documentos).
15º
Sendo que em 8 de Fevereiro de 2005 voltou a trabalhar na mesma empresa onde se encontra até hoje (protesta, desde já, juntar os respectivos documentos).
16º
Entretanto o demandante e observado regularmente e tratado nas consultas de psiquiatria, psiquiatria psicologia e neurocirurgia (protesta, desde já, juntar os respectivos documentos).
23º
Ficou afectado psicologicamente e sofreu um grande desgosto com o acidente resultando que não consegue desempenhar a sua vida normalmente pois encontra-se num permanente estado depressivo.
24º
O demandante deixou de sair com os amigos pois não consegue acompanhar o normal desenrolar de uma conversação pois confunde-se e começa a ter fortes dores de cabeça. Perdeu todo o interesse em dar-se socialmente.
25º
O demandante era uma pessoa alegre e activa e desde o acidente que se tornou numa pessoa triste, desinteressada, absorta em pensamentos negativos e com tendências suicidas.
26º
Na verdade, o demandante tentou já, por uma vez, o suicídio.
28º
O grave acidente que o demandante sofreu fez com que tivesse de interromper os estudos que estava a fazer na Universidade de Macau na Faculdade de Ciência e Tecnologia, onde se inscreveu no ano lectivo 1997.
37º
Com despesas com consultas médicas quer em Macau quer em Hong Kong e medicamentos, o ofendido gastou, desde o dia do acidente, até à data, a quantia em dinheiro, no montante global de MOP$7,377.00 (protesta, desde já, juntar os respectivos documentos).
39 º
Após o acidente o ofendido não podia conduzir e, como tal, passou a fazer as suas deslocações - ao hospital, a farmácia e as necessárias à sua vida - de taxi o que desde o dia 5 de Junho de 2003 até 17 de Outubro de 2004, importou a quantia global de MOP$1,145.40 (protesta, desde já, juntar os respectivos documentos).
40º
Acresce que devido ao seu estado de saúde com total incapacidade para trabalhar durante o horário normal, conforme o relatório do médico de Hong Kong, o demandante esteve 12 meses sem trabalhar, o que lhe causou uma perca de vencimento, que se cifrou no valor global de MOP$116,400.00 (salário médio de MOP$9,700.00 por mês) (protesta, desde já, juntar os respectivos documentos).
41 º
Por fim, ainda existe a despesa da 1ª. e 2ª. operação que o demandante ainda não pagou, no valor respectivamente de MOP$23,289.00 e MOP$5,438.00, no total de MOP$28,727.00, e cuja responsabilidade de pagamento cabe a demandada (protesta, desde já, juntar os respectivos documentos).
44º
Por outro lado o demandante para frequentar o curso na Universidade de Macau teve que pagar a título de propinas o valor total de MOP$197,947.00, aquando da sua inscrição (protesta, desde já, juntar os respectivos documentos).
45 º
Para ajudar a suportar tal encargo os Serviços de Educação emprestaram a quantia de MOP$128,400.00 que o demandante vai ter que repor até o ano de 2009 (protesta, desde já, juntar os respectivos documentos).
46º
Acontece que devido ao acidente ficou impossibilitado de frequentar as aulas e fazer os exames pelo que foi obrigado a desistir do curso onde já se encontrava no 4º ano.
47º
Também não é previsível que possa reintegrar o curso e terminá-lo pois o seu estado de saúde não o permite.
54º
Na situação em causa nos presentes autos, afigura-se-nos de destacar nomeadamente, as intervenções cirúrgicas a que foi submetido o ofendido, a recuperação penosa e dolorosa, a estado de saúde frágil em que se encontra e as limitações de que o mesmo sofre, nomeadamente a estado depressivo permanente e a perda de olfacto igualmente permanente, privando-o em absoluto de voltar a fazer a vida que vinha fazendo.”; (cfr., fls. 98 a 112).
Relatórios médicos do lesado constantes dos autos (fls. 39, 53, 54, 126, 241 a 244, 250 a 252 e 285 a 288).
Do relatório de fls. 285 a 288 consta o seguinte:
“Governo da Região Administrativa Especial de Macau
Serviço de Saúde
Processo n.° CR1-05-0260-PCC
Para: Presidente do Centro Hospitalar de S. Conde Januário.
Relatório Médico da Psiquiatria.
B, de sexo mascu1ino/28, BIRM n. ° X/XXXXXX/X
Trata-se do relatório pericial elaborado pela Psiquiatria relativamente ao B, outra vez a pedido do Tribunal Judicial de Base da RAEM.
Fonte dos dados:
1. O senhor B.
2. A mãe e a namorada do Senhor B
3. O relatório de avaliação psicológica da terapeuta G.
Dados pessoais:
B, de sexo masculino, nascido em 22 de Dezembro de 1977, titular do cartão para tratamento médico n. ° XXXXXX.X, solteiro. Actualmente, mora com a mãe, tendo o pai falecido no ano 1997 por doença. Tem uma namorada de longo tempo.
B tirou o curso de eléctrico e electrónico na Universidade de Macau, chegou a suspender o estudo do 4. ° ano, em 2004.
No que toca ao trabalho, B desempenhava a função do chefe de segurança numa firma de helicóptero. Em Março de 2004, ele demitiu-se do emprego e arranjou outro trabalho, em Dezembro de 2004, como assistente do projectista. Mas em Março de 2005, voltou a trabalhar na firma de helicóptero, foi despedido em Novembro do mesmo ano. Presentemente trabalha numa empresa do sistema de protecção contra fogo.
Segundo os seus familiares, B era uma pessoa que tinha uma emoção estável, e a diligência de trabalhar, que se dava bem com outros.
Dados sobre trauma celebral:
B, em 31 de Maio de 2003, foi levado para a sala de emergência em resultado do acidente de trânsito. Apesar de estar consciente naquela altura, através de scan celebral, verificou-se: hemorragia subaracnóide; contusão cerebral na região do lóbulo parietal direito e do lóbulo temporal; hematoma subdural; fractura na região do osso occipital esquerdo. No dia seguinte, detectou-se o aumento do hematoma intracerebral, subsequentemente realizou-se operação emergente para tirar fora a hematoma intracerebral. Depois, em 28 de Novembro de 2003, foi novamente operado para reparação. Agora continua a estar sujeito ao exame médico periódico na Neurocirurgia deste Hospital.
Dados sobre doença mental:
B negou ter sofrido doença mental antes, nem ter sido viciado em droga e álcool.
B, em Fevereiro de 2004, foi encaminhado pelo médico da Neurocirurgia para ser tratado pela terapeuta psicológica G por ser-lhe difícil controlar a emoção e a conduta. Em Março de 2004, B foi encaminhado pela terapeuta psicológica G para a psiquiatra deste Hospital, tendo eu, H como seu médico.
B afirmou que em resultado do acidente que lhe provocou as lesões corporais, ele mudou inteiramente da sua maneira de ser, tornando-se impulsivo e irritável, envolvendo-se na frequente discussão com outros, chegando a ficar sempre inquieto e deprimido; passou a estar muito esquecido e distraído e ter uma reflexão devagar; tornou-se difícil confiar noutros, sendo também afastado por outros; dotado de alguma sensibilidade e pensamento diferente dos outros: ex. ele acha que possua supra-capacidade, e saiba predizer o futuro, para além de conseguir sensibilizar o pensamento dos outros; e que fechados os olhos, consiga ver outras pessoas inclusivamente os familiares já mortos, assim como as coisas que outros não possam ver; tal com descrito pela mãe, o B deixou de ser como era a menos da aparência física. Conforme o encefalograma realizado em 15 de Abril de 2004, as circunstâncias limitam-se ao âmbito normal. A partir do Julho de 2004, B passou a ser tratado com droga contra doença mental, tendo por isso se revelado as melhorias da doença, mas continuando ser emocionalmente perturbada, até tinha-lhe suscitado a ideia de suicídio. Desde Março de 2005, chegou a ser utilizados os anti-depressivos no tratamento da inquietação e preocupação que lhe era surgida.
Após o acidente de viação, o B deparou-se com dificuldades no estudo, trabalho e na relação inter-pessoal: em 2004, sem poder continuar o curso de direito em 2004, suspendeu o estudo; não se conseguiu manter o emprego de trabalho, não se dando bem com colegas e chegando a ser despedido afinal; tem dificuldade na relação com os familiares, não confiando neles. Aconteceu uma vez que bateu o seu irmão mais novo e partiu os móveis por não ser capaz de controlar a sua emoção por causa da pequena coisa.
B está sujeito ao exame periódico na psiquiatria, tendo se registado as melhorias. O último exame médico foi de 18 de Julho de 2006. De acordo com B, este continua a ser irritável e por vezes envolver-se na discussão com outros nos lugares públicos; além disso, sente que lhe surgiu novamente a capacidade de predizer o futuro; continua a ser esquecido e distraído.
Relatório de avaliacão:
Data de avaliação: 19 de Janeiro de 2006
Avaliador: Terapeuta Psicológica, Senhora G
Meios usados na avaliação:
1. Rey Complex Figure Test and Recognition Trial
2. Raven's Standard Progressive Matrices
3. Recall and Recognition of Remote Memory
4. Recent Life Events Test
5. Attention Test
6. Trial Making Test
7. Stroop Neuropsychological Screening Test
8. Recitation of Chinese Sentences Test.
Conclusão extraída da avaliação:
De modo geral, B está dotado da normal capacidade de expressão, a de pensar em abstracto, a de planear, bem com a de concentração. Mas tem fraca memória quanto aos novos conhecimentos. Uma vez que não consegue gravar o seu conteúdo, faz com que não se possa extrair dele as informações adequadas, o que afecta a sua aprendizagem dos novos conhecimentos. Além disso, apesar de B ter boas condições de inteligência, conforme as suas habilitações académicas, ele deveria ter alcançado o nível mais elevado na vertente da inteligência. A teste psicológica manifestou ainda as deficiências da sua função cerebral, e o seu fraco discernimento.
Além disso, B não se pode concentrar durante muito longo tempo, apenas consegue manter-se concentrado por meia hora para os trabalhos que precisam a maior concentração e reflexão. Após a conclusão da tarefa, surgir-lhe-á a forte inquietação por isso deixa de se poder concentrar.
Diagnóstico actual da Psiquiatria:
1. lesão cerebral acompanhada de ligeiro distúrbio de capacidade de cognitiva
2. alteração do carácter pessoal resultante da lesão cerebral.
Conclusões:
As lesões na região do lóbulo parietal direito e do lóbulo temporal poderia alterar o carácter pessoal, conduzindo-se à fraca concentração, baixa da memória, e obstáculo à discernimento, para além de poder originar os sintomas da doença mental, tal como a instabilidade emocional, actos impulsivos, anomalia do sexo etc; ou pode provocar os sintomas no sistema nervoso, como por exemplo: dificuldade da expressão, dificuldade da função desportiva, o que se pode classificar nos distúrbios primário e secundário. O distúrbio secundário é provocado pela lesão exterior, infecção, tumor, vaso cerebrovascular.
Pelos presentes dados:
1. B sofreu alterações na capacidade memorial sobre os novos conhecimentos em vista do referido acidente.
2. Foi afectada ainda a sua capacidade de concentração.
3. Sofreu alterações do carácter pessoal, tornando-se irritável, inquieto e preocupado, tendo pensado em suicídio.
4. Foi afectado o seu estudo.
5. É capaz de gerir o seu trabalho e a vida, mas não foi recuperado o nível anterior.
6. Presentemente, precisa de tratamento com drogas e é necessário continuar a sujeitar-se aos exames da psiquiatria”.
O veículo com o número de matrícula MC-XX-XX, causador do acidente, encontra-se coberto por seguro de responsabilidade civil pela A, ao abrigo da apólice n° XX-XXXXXX (fls. 217 dos autos).”; (cfr., fl. 354 a 354-v).
III - O Direito.
1. As questões, eventualmente, a resolver.
A primeira questão é a de saber se, relativamente à fixação de indemnização por danos não patrimoniais, o Acórdão recorrido se baseou em factos não considerados provados pelo Tribunal de 1.ª Instância.
Depois, ainda relativamente à fixação de indemnização por danos não patrimoniais, há que decidir se o Acórdão recorrido se socorreu de factos não alegados pelo lesado na respectiva petição cível.
Seguidamente, se for caso disso, importa concluir se o montante de MOP$800.000,00 fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais, é exagerado e se o valor proposto pela recorrente de MOP$200.000,00 está mais ajustado.
O segundo grupo de questões, consiste em saber se a seguradora deve ser condenada a pagar as despesas das operações cirúrgicas (MOP$28.727,00), de que é devedor o lesado, ao hospital, mas que ainda não pagou efectivamente.
Por fim, num terceiro grupo de questões, restaria apurar se não existe qualquer nexo de causalidade naturalística entre o facto (acidente de viação) e o dano alegado (desistência do curso por impossibilidade absoluta de o ofendido o concluir, por motivos de saúde, com a correlativa perda das respectivas propinas). A recorrente foi condenada a pagar o montante destas propinas: MOP$197.947,00.
Começando já por esta última questão, diremos que não a iremos apreciar visto que este Tribunal, em processo penal, em terceiro grau de jurisdição, não tem poder de cognição em matéria de facto (art. 47.º, n.º 2 da Lei de Bases da Organização Judiciária) – salvo excepções que não estão em causa – e é certo que o estabelecimento do nexo de causalidade entre o facto e o dano, na responsabilidade civil extracontratual, constitui matéria de facto1.
2. Modificação do julgamento de facto do Tribunal de 1.ª Instância
A primeira questão é a de saber se, relativamente à fixação de indemnização por danos não patrimoniais, o Acórdão recorrido se baseou em factos não considerados provados pelo Tribunal de 1.ª Instância.
Segundo a recorrente tais factos são os seguintes:
- A capacidade intelectual do lesado é inferior à que deveria ter;
- No trabalho não consegue concentrar-se por mais de meia hora;
- Pode trabalhar, mas não pode atingir um nível médio.
A recorrente não tem razão.
Na verdade, o Acórdão recorrido não se baseou em factos não considerados provados pelo Tribunal de 1.ª Instância.
Os factos referidos constam do relatório médico de fls. 285 a 288, embora diferentemente traduzido, que o Acórdão do Tribunal Judicial de Base menciona expressamente, como integrando os factos provados (embora, o Acórdão recorrido, por lapso, refira o relatório médico de fls. 250 a 252, quando se trata do de fls. 285 a 288).
Ao contrário do que alega a recorrente, a fls. 379 a 390 não existe nenhum relatório médico no qual o Acórdão recorrido se tivesse fundamentado. Este refere tais folhas do processo, que constituem a resposta do recorrido à motivação de recurso para o TSI, na parte em que traduz para português o texto escrito em chinês do mencionado relatório médico de fls. 285 a 288.
Improcede a questão suscitada.
3. Princípio dispositivo. Questão nova
Cumpriria, agora, dilucidar se, relativamente aos danos não patrimoniais, o Acórdão recorrido se socorreu de factos não alegados pelo lesado na respectiva petição.
Em primeiro lugar, e ao contrário do que alega a recorrente, o Acórdão deste Tribunal de Última Instância, de 16 de Abril de 2004, no Processo n.º 7/2004, não entendeu que no pedido de indemnização cível em processo penal se aplica a vertente do princípio dispositivo que consiste em o Tribunal só se poder basear em factos alegados pelo demandante cível. O Tribunal não tomou posição sobre a questão, por ter considerado não ser necessário fazê-lo para decidir o recurso.
Por outro lado, a questão que a recorrente coloca agora ao Tribunal, não a suscitou no recurso para o TSI, podendo e devendo tê-lo feito.
Assim sendo, a questão que a recorrente coloca agora ao Tribunal (violação do princípio dispositivo, na vertente de se ter considerado na decisão factos não alegados pelo demandante cível) é nova, não suscitada no recurso para o TSI, pelo que dela não conheceremos, visto que os recursos não se destinam a conhecer de questões novas, que podiam ter sido suscitadas na instância inferior, salvo as de conhecimento oficioso do tribunal, que não é o caso da que agora se trata.
4. Danos não patrimoniais
Os danos não patrimoniais são os prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária, mas que podem ser compensados com uma obrigação pecuniária imposta ao lesante.2
Os danos não patrimoniais ressarcíveis são apenas os “...que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito” (art. 489.º, n.º 1 do Código Civil).
O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art. 487.º do Código Civil, quando a responsabilidade se fundar na mera culpa (489.º, n.º 3, 1.ª parte, do Código Civil).
Vejamos, então, que factos se deram como provados, para sustentar a indemnização por danos não patrimoniais.
O demandante, como causa directa do acidente, teve de suportar, até a data, duas operações cirúrgicas à cabeça.
Ficou afectado psicologicamente e sofreu um grande desgosto com o acidente resultando que não consegue desempenhar a sua vida normalmente pois encontra-se num permanente estado depressivo.
O demandante deixou de sair com os amigos pois não consegue acompanhar o normal desenrolar de uma conversação pois confunde-se e começa a ter fortes dores de cabeça. Perdeu todo o interesse em dar-se socialmente.
O demandante era uma pessoa alegre e activa e desde o acidente que se tornou numa pessoa triste, desinteressada, absorta em pensamentos negativos e com tendências suicidas.
Na verdade, o demandante tentou já, por uma vez, o suicídio.
O grave acidente que o demandante sofreu fez com que tivesse de interromper os estudos que estava a fazer na Universidade de Macau na Faculdade de Ciência e Tecnologia, onde se inscreveu no ano lectivo 1997.
Na situação em causa nos presentes autos, afigura-se-nos de destacar nomeadamente, as intervenções cirúrgicas a que foi submetido o ofendido, a recuperação penosa e dolorosa, a estado de saúde frágil em que se encontra e as limitações de que o mesmo sofre, nomeadamente a estado depressivo permanente e a perda de olfacto igualmente permanente, privando-o em absoluto de voltar a fazer a vida que vinha fazendo.”; (cfr., fls. 98 a 112).
- após o acidente a personalidade de B sofreu grande alteração ...;
- a sua memória, concentração e consideração mudaram para pior ...;
- a sua memória para novos conhecimentos é fraca porque não consegue armazenar detalhes no cérebro e utilizar informação nova;
- a sua capacidade intelectual é inferior à que deveria ter;
- o seu cérebro sofreu danos e a sua capacidade de identificação é fraca;
- no trabalho não consegue concentrar-se por mais de meia hora;
- o acidente de viação influenciou negativamente a memória de B para novos conhecimentos;
- influenciou a sua capacidade de concentração;
- influenciou a sua personalidade e emoções, entra em depressão facilmente e teve intenções suicidas;
- o que influenciou os seus estudos;
- B pode trabalhar; mas não pode atingir um nível médio;
- ainda agora, carece de apoio médico e necessita de se deslocar ao hospital.”
Face a estes factos não se afigura desajustada a indemnização fixada, de MOP$800,000.00, que é de manter.
5. Condenação no pagamento de despesas de que o lesado é devedor
Importa saber se a seguradora deve ser condenada a pagar as despesas das intervenções cirúrgicas (MOP$28.727,00), de que é devedor o lesado, ao hospital, mas que ainda não pagou efectivamente.
Não há dúvidas que o lesado deve tais montantes, que resultam exclusivamente do acidente de viação, que a recorrente está obrigada a ressarcir.
Trata-se de danos emergentes futuros, a que o tribunal pode atender, desde que sejam previsíveis (n.º 2 do art. 558.º do Código Civil).
Ora, é seguro que tais danos futuros são previsíveis, não se vislumbrando razão para que o hospital os perdoe, quando é certo que o lesado terá meios para os pagar, com a indemnização que receberá nos presentes autos.
Está, pois, a recorrente, obrigada a suportá-los.
IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, nos termos dos art. 73.º e 17.º, n.º 2 do Regime das Custas.
Macau, 18 de Junho de 2008
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 J. LEBRE DE FREITAS e A. RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, Volume 3.º, p. 123, A. RIBEIRO MENDES, Recursos em Processo Civil, Lisboa, Lex, 1994, 2.ª ed., p. 256 e F. AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2000, p. 184.
2 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Coimbra, Almedina, 2003, Vol. I, 10.ª ed., p. 600 e segs.
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1
Processo n.º 19/2008