Proc. nº 389/2019
Recurso Contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 20 de Fevereiro de 2020
Descritores:
- Separação de facto
- Reunião familiar
- Princípio da proporcionalidade
SUMÁRIO:
I - A separação de facto, contrária ao fundamento que esteja na base da concessão da autorização de residência (art. 9º, nº2, al. 3), da Lei nº 4/2003, de 17/03), é motivo para a caducidade desta, face ao art. 24º, al. 1), do Regulamento nº 5/2003, independentemente de quem abandona o lar conjugal.
II - Quando em presença de actos discricionários, só em casos de erro manifesto, notório, grosseiro e palmar deve o Tribunal censurar a actividade da Administração, no quadro da violação dos princípio gerais da actividade administrativa, como o da proporcionalidade, sob pena de estar a fazer administração activa, o que, como é sabido, não cabe na esfera do poder jurisdicional, e dessa maneira violar o fundamental princípio da separação de poderes
Proc. nº 389/2019
Acordam no Tribunal de Segunda Instancia da RAEM
I – Relatório
A, casado, titular do Passaporte francês n.º 15C******, residente em Macau, na Rua ......, n.º ..., Ed. ......, ....º andar ..., com número de telefone 65** ****, -----
Recorre contenciosamente para este TSI, ----
Do despacho do Senhor Secretário para a Segurança, ---
Datado de 7 de Janeiro de 2019, que declarou a caducidade da autorização de residência temporária do ora Recorrente em Macau.
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Na petição inicial formulou as seguintes conclusões:
“1. É Entidade Recorrida o Senhor Secretário para a Segurança e objecto do presente recurso contencioso o seu Despacho de 7 de Janeiro de 2019, que declarou a caducidade da autorização de residência temporária do ora Recorrente.
2. O acto recorrido apenas se baseou numa declaração unilateral da esposa do Recorrente, sem curar de apurar a verdadeira situação de facto dos cônjuges para poder regularmente emitir uma decisão ablativa de um statuos quo favorável e positivo.
3. Com efeito, não é verdade que o Recorrente tenha vindo a manter uma relação extraconjugal.
4. Nem que tenha havido qualquer acordo tendente ao tratamento das formalidades de divórcio com a sua actual esposa.
5. A mera confirmação do Recorrente de que os cônjuges vivem em moradas diferentes não é de modo algum suficiente para per se se poder concluir pela verificação de uma situação de separação de facto e, consequentemente, de frustração da finalidade de reunião conjugal em que se fundou a inicial decisão de concessão da autorização de residência.
6. Mantêm-se, por isso, intocáveis os pressupostos de facto - “a reunião familiar” - que estiveram na base da autorização de residência do Recorrente na RAEM.
7. Não tendo decaído qualquer dos pressupostos ou requisitos em que se fundou aquela autorização.
8. O Despacho é, assim, ilegal, por erro nos pressupostos de facto.
9. É também ilegal por manifesta violação do princípio da proporcionalidade, pois
10. O Recorrente reside em Macau há cerca de 6 anos e meio, tendo sempre mantido uma conduta exemplar e contributiva para a RAEM.
11. A declaração de caducidade da sua autorização de residência com cerca de meio ano até esta se tornar permanente com base numa declaração unilateral da esposa e na mera confirmação do Recorrente de que os cônjuges vivem em moradas diferentes é manifestamente contrária ao princípio da proporcionalidade positivado no art. 5.º, n.º 2, do CPA.”
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A entidade recorrida apresentou contestação, pugnando pela improcedência do recurso.
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Nenhuma das parte apresentou alegações.
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“(…)A autorização de residência dada ao recorrente, em 2012, foi concedida por motivo de reunião conjugal, tal como afirma a autoridade recorrida.
Entretanto, em 9 de Outubro de 2018, a mulher do recorrente efectuou comunicação ao Serviço de Migração, dando conta de que o casal estava separado há vários meses e que o marido deixara a casa de morada de família a partir de 5 de Julho de 2018, havendo acordo entre ambos para o divórcio, e acrescentando que, mais tarde, viera a tomar conhecimento de que o marido mantinha uma relação extraconjugal.
Com base nesta versão da mulher foi elaborada proposta de decisão, no sentido de declarar a caducidade da autorização de residência, tendo o recorrente sido ouvido sobre esse projecto de declaração de caducidade.
Em exercitação do direito de audição, tendo embora negado a existência de relação extraconjugal e a intenção de divórcio, o recorrente admitiu a separação, confirmando que saíra de casa em 5 de Julho de 2018, posto que contra a (sua) vontade e por pedido da mulher.
Veio então a ser proferido o acto impugnado, que decretou a caducidade da autorização de residência, com fundamento na insubsistência do pressuposto sobre o qual se havia fundado essa autorização de residência, que fora, como se referiu, a reunião conjugal.
No contexto de admissão e confissão pelo recorrente da separação do casal, embora rejeitando que haja tido culpa nessa separação, impõe-se, salvo melhor juízo, a conclusão de que o acto recorrido não incorreu em erro nos pressupostos de facto, pois o pressuposto de facto invocado - que é a separação fáctica do casal, que não o divórcio ou a intenção de divórcio nem o relacionamento extraconjugal - está preenchido.
Improcede este vício.
E igualmente não se detecta qualquer afronta ao princípio da proporcionalidade.
No que a este tange, é sabido que, como corolário do princípio da justiça, obriga a que as decisões administrativas que colidam com direitos e interesses legítimos dos particulares apenas possam afectar as posições destes na justa medida da necessidade reclamada pelos objectivos a prosseguir, não se podendo falar de desproporcionalidade quando a actuação administrativa é adequada à prossecução do interesse público que lhe cabe salvaguardar e desde que o sacrifício do interesse particular encontre justificação na importância do interesse público a salvaguardar.
Pois bem, como se sabe, Macau é um território minúsculo, em cuja península se abriga uma das maiores densidades populacionais do mundo e onde o direito de residência confere um estatuto equiparável, em certo sentido, ao de nacionalidade. Neste contexto, é natural que haja alguma contenção na concessão de autorizações de residência, compreendendo-se que, nessa matéria, eminentemente discricionária, a primazia vá para os casos cujas finalidades se revelam mais prementes, à luz do interesse da Região Administrativa Especial de Macau e dos seus residentes, de que é exemplo o caso das reuniões familiares. Se a finalidade do pedido não integra afinal uma dessas situações mais prementes, como veio a constatar-se no caso, a supremacia conferida ao interesse público é perfeitamente aceitável no confronto com o interesse do particular que almeja obter residência em Macau.
Soçobra também este fundamento do recurso.
Ante o exposto, e na improcedência dos suscitados vícios, o nosso parecer vai no sentido do não provimento do recurso.”
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Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão bem representadas.
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III – Os Factos
Consideramos provada a seguinte factualidade:
1 - Em 10 de Agosto de 2012, o Secretário para a Segurança autorizou a residência do Recorrente em Macau, a fim de lhe permitir reunir-se com sua esposa, e essa autorização foi renovada até 9 de Agosto de 2019.
2 - Em 9 de Outubro de 2018, a esposa do Recorrente apresentou uma declaração ao Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública, relatando, de modo geral, que esta se tinha separado de seu marido há vários meses e tinha intenção de pedir o divórcio, pedindo ainda o cancelamento da autorização de residência do Recorrente.
3 - Na fase de audiência escrita, o Recorrente não negou o facto da separação, apenas salientou constantemente que seu cônjuge pretendia que ele se fosse embora, acrescentando não ter qualquer relação extraconjugal, nem pretender o divórcio.
4 - Recorrente e esposa não vivem juntos.
5 - No Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública foi emitido o seguinte Relatório nº 300131/CESMREN/2018/P:
“1. De acordo com o despacho proferido em 10 de Agosto de 2012 pelo ex-Secretário para a Segurança, foi autorizada a fixação da residência do interessado, A, em Macau, com a finalidade da reunião com o seu cônjuge, B que é residente de Macau, cujo prazo de validade da autorização de residência terminará em 9 de Agosto de 2019 (naquele momento, a autorização da fixação da residência já decorreu 7 anos consecutivos).
2. Em 9 de Outubro de 2018, este Departamento recebeu uma declaração escrita do cônjuge do interessado, B, na qual alegou o seguinte “... eu e o interessado estamos separados há vários meses (ele já deixou de viver na casa de morada a partir de 5 de Julho de 2018) e, concordamos em proceder aos trâmites de divórcio. Mas, o interessado espera que o divórcio possa ser realizado no momento em que decorreu o período experimental do seu trabalho e disse que, aquando do termo do seu BIR não permanente, ele já tem os próprios documentos comprovativos na área de trabalho e tributação, sem os necessários meus documentos comprovativos e declaração. Por outro lado, em Outubro de 2018, eu descobri que ele tinha uma relação extraconjugal há vários meses. Assim, espero que seja cancelada a sua autorização de residência ...”. Tendo em conta que a respectiva situação resulta na insatisfação do pressuposto sobre o qual se fundou a autorização de residência inicial do interessado (reunião com o cônjuge em Macau), assim, a autorização da sua residência deve ser declarada caduca.”
3. No procedimento de audiência, o interessado alegou essencialmente que, apesar de abandonar a casa de morada, não teve uma relação extraconjugal, nem pediu o divórcio”.
6 - No dia 7/01/2019, o Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho (a.a.):
“Tendo em consideração os conteúdos constantes dos pontos 1 a 3 do relatório acima indicado, o interessado apresentou um pedido da autorização de residência com fundamento na junção conjugal e esse pedido foi deferido. Mas, actualmente, os cônjuges não coabitam há vários meses.
Dado que o interessado deixa de ter a vida em comum com a mulher, já não satisfaz o propósito de pedir a autorização de residência. Pelo exposto, nos termos do disposto no art.º 24.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 5/2003 e art.º 9.º, n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003, decide-se declarar a caducidade da autorização de residência em causa.
Secretário para a Segurança
XXX
(ass.: vide o original)
7 de Janeiro de 2019”
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IV – O Direito
1- Os vícios
O recorrente imputa ao acto administrativo recorrido os vícios de:
- Erro sobre os pressupostos de facto;
- Violação de lei, por violação do princípio da proporcionalidade.
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2- Do vício do erro sobre os pressupostos de facto
O recorrente vive em Macau com autorização de residência temporária desde 20/08/2012, portanto há 7 anos. A autorização para a residência teve por fundamento a reunião familiar com o seu cônjuge, então já residente na RAEM.
No entanto, em 9/10/2018, o seu cônjuge fez uma participação ao Departamento competente da PSP informando que o marido deixou de viver com ela desde 5 de Julho de 2018, acrescentando ter descoberto que ele mantinha uma relação extraconjugal e que estariam a pensar obter o divórcio.
Foi com base nesta informação que o procedimento administrativo foi desencadeado com vista à declaração de caducidade da autorização de residência foi determinado.
Vem agora o recorrente invocar erro nos pressupostos de facto, afirmando inexistir qualquer relação extraconjugal ou qualquer acordo quanto ao divórcio entre si e o seu cônjuge, ainda que não negando que ele a mulher estejam a viver em sítios diferentes.
Ora, no recurso contencioso e no procedimento administrativo (pois o próprio recorrente aceitou esse facto na audiência de interessados) é objectivo e confessado o facto de que os cônjuges não vivem juntos, mas sim separadamente e em casas distintas.
Sendo isto verdade, então a situação é de separação de facto, sem dúvida alguma, o que contraria o fundamento que esteve na base da concessão da autorização de residência e, por tal razão, é motivo para a caducidade desta, face ao art. 24º, al. 1), do Regulamento nº 5/2003.
E isto é, por si só, suficiente para manter o acto administrativo impugnado, já que este unicamente se limitou a destacar a circunstância de que “actualmente, os cônjuges não coabitam há vários meses” e de “o interessado deixa de ter a vida em comum com a mulher”. Ou seja, para o acto não foi relevante a alegada circunstância de o recorrente poder ter (ou não), uma relação extraconjugal ou os cônjuges estarem a ponderar (ou não) o termo da união conjugal através do divórcio.
Esta situação é, aliás, idêntica a uma outra que este TSI já analisou, e no respectivo processo teve ocasião para dizer que:
“Com efeito, à aplicação das normas citadas no acto é indiferente que tenha sido o cônjuge feminino a abandonar o lar, nem tampouco interessam as causas que a levaram a fazê-lo. Realmente, a finalidade invocada pelo recorrente para a autorização de residência inicialmente pretendida foi a reunião conjugal e não outro qualquer. O recorrente pretendia, portanto, reunir-se à sua mulher, que já vivia em Macau. Sendo assim, esta finalidade (art. 9º, nº2, al. 3), da Lei nº 4/2003, de 17/03) deveria manter-se sempre, enquanto, pelo menos, não fosse adquirido o direito à residência permanente. Significa isto que não importa saber se o recorrente teve ou não relações extra-matrimoniais, nem sequer se pretende manter o casamento” (Ac. do TSI, de 8/02/2018, Proc. nº 683/2016).
Improcede, pois, o recurso quanto a esta parte.
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3- Violação de lei, por violação do princípio da proporcionalidade.
Este é um princípio geral de direito administrativo que, como outros, constitui um limite interno à actividade discricionária da Administração (cfr. art. 5º, do CPA).
No caso concreto, a situação da alínea 1) do art. 24º do Regulamento Administrativo configura um caso de actuação vinculada: Desde que a situação de facto seja verdadeira e enquadre no âmbito de previsão da norma, então a autorização e residência caduca. A lei diz “caduca” e não “pode caducar”. Estamos perante uma caducidade “ope legis”. Não há aí qualquer margem para a discricionariedade1.E por isso, a violação do referido princípio não tem aqui cabimento.
No entanto, mesmo que assim se não ache, nem por isso entendemos que o vício possa proceder. Com efeito, quanto a esta matéria, não se têm desviado os tribunais da RAEM da ideia fulcral de que, quando em presença de actos discricionários, como este é, só em casos de erro manifesto, notório, grosseiro e palmar deve o Tribunal censurar a actividade da Administração, sob pena de estar a fazer administração activa, o que, como é sabido, não cabe na esfera do poder jurisdicional, e dessa maneira violar o fundamental princípio da separação de poderes (v,g, cit. Ac. do TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014; tb. do TSI, de 14/04/2016, Proc. nº 607/2015).
Ora, mesmo na pressuposição de esta ser actividade discricionária, no caso em apreço não se vê que o indeferimento tenha incorrido em erro grosseiro e manifesto, já que, como se viu, o facto em que o acto se baseou é verdadeiro e está, precisamente, na trajectória da previsão do citado art. 24º.
Improcede, pois, o vício, de qualquer maneira.
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V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 8UC.
T.S.I., 20 de Fevereiro de 2020
(Relator) José Cândido de Pinho
Mº Pº
Joaquim Teixeira de Sousa (Primeiro Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong
1 Pese embora a posição deste TSI, no Ac. de 27/06/2019, Proc. nº 550/2018, que conheceu do princípio da boa fé, como se fosse discricionária a actividade, com base na mesma alínea i1), do art. 24º, posição que agora corrigimos.
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Proc. nº 389/2019 12