Proc. nº 1172/2019
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 12 de Março de 2020
Descritores:
- Marcas
- Concorrência desleal
- Marca de prestígio
SUMÁRIO:
I - A marca exerce uma função de garantia de qualidade não enganosa, visando associar um produto ou serviço a determinado produtor ou prestador e evitar no consumidor o erro e a confundibilidade de origem e proveniência.
II - Só pode haver afinidade e risco de confusão entre marcas em presença de produtos e serviços idênticos ou afins. Pode acontecer que em classes diferentes continue a haver perigo de interpenetração de produtos. Mas, se os produtos não se confundirem na sua substância e na sua utilidade consumística, parece claro que aí a protecção de marca registada não pode ir ao ponto de impedir o registo de outra, mesmo que esta reproduza parcialmente a composição daquela.
III - Só não será assim em casos especiais, como é o caso previsto na alínea c), do nº1, do art. 214º do RJPI, quando estabelece que, mesmo para produtos sem afinidade, uma marca não pode ser registada se constituir a reprodução, imitação ou tradução de outra anterior que goze de prestígio em Macau.
Proc. nº 1172/2019
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I – Relatório
“A LIMITADA”, sociedade com sede em Macau na…, registada na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis sob o n.º ..., ---
Recoreu judicialmente para o TJB (Proc. nº CV3-18-0024-CRJ) ---
Do despacho de 7 de Fevereiro de 2018 da Sra. Chefe do Departamento da Propriedade Industrial que lhe recusou o registo de marca com o n.º N/....
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Por sentença de 28/05/2019 foi o recurso julgado improcedente.
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É contra essa sentença que o recorrente ora vem interpor o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
“1. A marca da BARRANCARNES - B, S.A. não pode ser considerada marca notória.
2. Uma coisa é a “Denominação de Origem Barrancos - Presunto de Barrancos” - conceito e marca guarda-chuva à sombra da qual se podem agregar e abrigar dezenas ou centenas de outras marcas - e outra coisa, bem diversa, é a “C - Barrancos” - menor, mais restrita, delimitada e meramente confinada a um determinado âmbito geográfico no centro sul do país menor da península ibérica!
3. A “C - Barrancos” não detém a exclusividade da produção e transformação do porco preto em Barrancos.
4. Sob pena de se tomar a parte pelo todo, a marca “C - Barrancos” não se deve confundir ou identificar com a “Denominação de Origem Barrancos”, sendo esta D.O.P. e apenas esta que confere notoriedade a qualquer um dos produtos derivados de porco preto daquela região, onde a BARRANCARNES - B, S.A. detém não mais que uma só unidade de produção e transformação de tal produto animal.
5. A notoriedade que a marca “C - Barrancos” poderá porventura gozar estará eventualmente circunscrita a não mais que ao centro sul de Portugal e, ao nível do perfil do consumidor europeu, aos provindos do sul da Europa.
6. A marca “C - Barrancos” não é de todo conhecida do público em e/ou de Macau, e, logo, é insusceptível de ser idónea para causar qualquer simples risco de associação com os produtos que integram o serviço de restauração da recorrente ou de concorrência desleal.
18. Babe perguntar: onde, em que local, em que circunstâncias temporais ou territoriais?
19. A BARRANCARNES - B, S.A. é uma empresa que apenas se dedica à mera comercialização de produtos de charcutaria e que não tem, pois, qualquer espaço de restauração ou preparação de refeições em Macau.
20. Diversamente, a recorrente presta serviços de restauração e tem sucesso pela comida que serve, pelo mérito do seu serviço de confecção, tempero e apresentação das suas refeições.
21. A BARRANCARNES - B, S.A. nem sequer é detentora de um qualquer espaço físico onde pudesse comercializar os seus produtos ao público, ao contrário do que acontece no caso da recorrente.
22. A marca “C - Barrancos” só poderia, quanto muito, ser eventualmente considerada uma marca com alguma notoriedade apenas em Barrancos, sendo somente conhecida e considerada como mais uma marca, entre muitas outras, do ramo e que em Macau é uma marca desconhecida ou não tão conhecida, pelo que não merece a protecção legal que, em face da sentença a quo, lhe foi reconhecida.
23. Ao não ter adoptado a ora propugnada interpretação e aplicação das normas jurídicas constantes dos artigos 158.º, 159.º e 165.º, todos do Código Comercial, o Tribunal a quo procedeu à violação das mesmas normas jurídicas, o que se invoca nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 598.º do C.P.C.
NESTES TERMOS, requer-se a V. Ex.as a revogação da sentença a quo e a sua substituição pou outra que acolha os argumentos e fundamentos expostos pela recorrente, levando a que seja deferido o pedido de registo da marca “C - Genuine Cuisine” em Macau.”
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
- A recorrente, requereu, em 04/01/2017, junto da Direcção dos Serviços de Economia, o pedido de registo de marca número N/..., consistindo tal marca no seguinte:
…
- O referido pedido foi feito para os “Serviços de restauração”, incluídos na classe 43ª.
- O referido pedido foi publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau (BORAEM), n.º 7, II Série, de 15.02.2017.
- Em 18/04/2017, a parte contrária deduziu os embargos contra o pedido acima referido, os embargos foram publicados no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau (BORAEM), n.º 25, II Série, de 21.06.2017.
- A recorrente não apresentou a contestação.
- Por via do despacho proferido em 07/02/2018, o Chefe do Departamento da Propriedade Intelectual da Direcção dos Serviços de Economia proferiu a decisão de recusar o pedido de registo de marca número N/..., vide a fls. 125 e 133 do auto administrativo anexado nos autos, cujo teor que aqui se dá por integralmente reproduzido.
- O despacho supracitado foi publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau (BORAEM), n.º 10, II Série, de 07.03.2018.
- A parte contrária é a titular das seguintes marcas:
Número
N/...
N...
Classe
29
29
Constituição da marca
…
…
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III – O Direito
A sentença julgou o recurso improcedente, considerando que:
- A marca da recorrida particular ”Barrancarnes – B, S.A.” …não é marca notória;
- Essa marca foi registada antes do registo pedido pela recorrente, gozando do direito de prioridade;
- A marca registanda da recorrente …reune todos os requisitos para ser considerada de reprodução ou imitação da marca da recorrida particular.
- A marca registando pode traduzir concorrência desleal.
A fundamentação utilizada foi a seguinte:
“…Quanto à marca de notoriedade, nos termos do artigo 214.º, n.°1, alínea b) do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, “1. O registo de marca é recusado quando: …b) A marca constitua, no todo em parte essencial, reprodução, imitação ou tradução de outra notoriamente conhecida em Macau, se for aplicada a produtos ou serviços idênticos ou afins e com ela possa confundir-se, ou que esses produtos possam estabelecer ligação com o proprietário da marca notória;…” Um dos meios de protecção concedidos pela lei à marca notória é de visar a proibir o registo das marcas que se encontrarem na total ou parcial reprodução, imitação ou tradução da marca notória.
No entanto, a lei não delimita que quais marcas são marcas notórias.
Segundo a definição do Autor Luís M. Couto Goncalves, “A marca notoriamente conhecida é entendida como a marca conhecida de uma grande parte do público consumidor como a que distingue de uma forma imediata um determinado produto ou serviço”1, “Se o produto ou serviço for de grande consumo, a marca deve ser conhecida do grande público; se o produto ou serviço for de consumo específico, a marca deve ser conhecida de grande parte do público interessado nesse produto ou serviço. A marca notoriamente conhecida deve ser notória no país onde se solicita a especial protecção – pois é nele que, obviamente, se haverá de dirimir o conflito entre a marca a registar e a marca notoriamente conhecida – embora não careça de nele ser usada de modo efectivo.”2
Conforme o entendimento do acórdão n.º 873/2009 do TSI, “As marcas notórias são as marcas muito conhecidas pelo público interessado, constituem assim excepções aos princípios do registo e da territorialidade. No entanto, por serem apenas muito conhecidas pelo público interessado, e não público em geral, ficam sempre sujeitas ao princípio da especialidade”.
No presente caso, do entendimento do despacho recorrido, conforme os documentos apresentados pela parte contrária, revela-se que os consumidores de Macau conhecem a marca da parte contrária por via do fornecimento aos supermercados e do consumo dos respectivos produtos nos locais designados, e ao mesmo tempo, a parte contrária registou a sua marca em diferentes países (nomeadamente, nas regiões vizinhas), nestes termos, deve-se considerar a marca da parte contrária como marca notória.
É certo, segundo o conteúdo dos documentos constantes nos autos, mesmo que os produtos (presunto) vendidos e a marca da parte contrária tenham certa notoriedade em Portugal, e além disso, a marca envolvida foi registada no continente da China, em Hong Kong, na Angola e na EU (incluindo o Portugal), paralelamente, a parte contrária tem fornecido os produtos supracitados de marca envolvida aos parciais supermercados e diferentes hotéis de Macau.
No entanto, salvo o devido respeito, do entendimento do tribunal, tendo em conta que os produtos vendidos pela parte contrária são produtos de carne (produtos alimentos), os consumidores finais devem ser os residentes de Macau, os trabalhadores não residentes e os turistas, considerando que os residentes de Macau, os trabalhadores não residentes e os turistas são maioritariamente os chineses ou asiáticos, em geral, a cultura alimentar deles é bem diferente da cultura alimentar dos europeus e residentes de ocidental, nestes termos, o tribunal entende que os documentos apresentados pela parte contrária não são suficientes para verificar que a maior parte dos consumidores supracitados conhecem amplamente a marca da parte contrária.
Nestes termos, o tribunal não entende que a marca da parte contrária é uma marca notória nem que a mesma marca deve ser concedida à protecção especial gozada pela marca notória.
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Embora a marca da parte contrária não constitua a marca notória, no entanto, tendo em consideração que segundo os factos provados do presente caso, a marca da parte contrária foi registada anteriormente da marca da recorrente, por causa disso, a partir das regras gerias, podemos julgar se a marca da parte contrária deva ser protegida no caso vertente.
Nos termos do artigo 214.º, n.°2, alínea b) do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, “2. O pedido de registo também é recusado sempre que a marca ou algum dos seus elementos contenha: …b) Reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de marca anteriormente registada por outrem, para produtos ou serviços idênticos ou afins, que possa induzir em erro ou confusão o consumidor, ou que compreenda o risco de associação com a marca registada;…”
Nos termos do artigo 215º do Regime Jurídico da Propriedade Industrial,
“1. A marca registada considera-se reproduzida ou imitada, no todo ou em parte, por outra, quando, cumulativamente:
a) A marca registada tiver prioridade;
b) Sejam ambas destinadas a assinalar produtos ou serviços idênticos ou afins;
c) Tenham tal semelhança gráfica, nominativa, figurativa ou fonética com outra que induza facilmente o consumidor em erro ou confusão ou que compreenda um risco de associação com marca anteriormente registada, de forma que o consumidor não as possa distinguir senão depois de exame atento ou confronto.
2. Considera-se reprodução ou imitação parcial de marca, a utilização de certa denominação de fantasia que faça parte de marca alheia anteriormente registada, ou somente do aspecto exterior do pacote ou invólucro com as respectivas cores e disposição de dizeres, medalhas e recompensas, de modo que pessoas analfabetas os não possam distinguir de outras adoptadas por possuidor de marcas legitimamente utilizadas.”
Do articulado supracitado, a situação de - reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de marca anteriormente registada por outrem constitui a causa de recusa do registo de marca, ao mesmo tempo, a existência da reprodução ou imitação tem que preencher simultaneamente as seguintes 3 condições: 1) A marca já registada tiver prioridade; 2) A identidade e a semelhança dos produtos ou serviços; 3) Tem a semelhança que possa induzir facilmente o consumidor em erro ou confusão ou que compreenda um risco de associação com outros produtos.
A doutrina e jurisprudência dominante têm vindo a entender que “A afinidade entre dois produtos ou serviços pode encontrar-se na sua aparência ou conteúdo mas pode, também, basear-se na aplicação a que se destinam, na sua possibilidade de satisfazer a mesma ou idêntica função Para além do critério da finalidade e utilidade dos produtos e serviços a doutrina refere ainda o critério da natureza (estrutura e características) dos produtos e serviços e o critério dos circuitos e hábitos de distribuição dos produtos e serviços.”3
Quanto à afinidade da marca, Luís M. Couto Gonçalves apontou que, “O primeiro é o de se dever apreciar as marcas no seu conjunto só se devendo recorrer à dissecação analítica por justificada necessidade; o segundo é o da irrelevância, no conjunto da apreciação das marcas, das suas componentes genérica ou descritiva; o terceiro é o de, nas marcas complexas, se dever privilegiar sempre que possível, o elemento dominante; por último, temos que nos referir ao possível significado do “risco de associação” que, sob impulso da Directiva, passa a fazer parte do conceito de imitação. A doutrina dominante tem ligado esse risco ao conceito de “confusão em sentido amplo”. Assim sendo passa a haver o sentido de confusão em sentido estrito para as situações típicas em que haja o risco do público-consumidor confundir a origem dos produtos ou serviços, e o conceito de confusão em sentido amplo para as situações-atípicas em que o público consumidor, reconhecendo a diferente origem dos produtos ou serviços, incorra no risco de pensar existir uma qualquer relação de tipo jurídico, económico ou comercial entre as diferentes origens.”4
Segundo a jurisprudência, o acórdão n.º 77/2016 proferido pelo TUI apontou que, “I - A imitação de uma marca por outra tanto existe quando, postas em confronto, elas se confundam, mas também, quando, tendo-se à vista apenas a marca a constituir, se deva concluir que ela é susceptível de ser tomada por outra de que se tenha conhecimento. II – A susceptibilidade de erro ou confusão quanto às marcas deve ser aferida em face do consumidor médio dos produtos ou serviços em causa, em termos de este só poder distinguir os sinais depois de exame atento ou confronto. III – A averiguação da novidade das marcas mistas e das marcas complexas deve conduzir a considerá-las globalmente, como sinais distintivos de natureza unitária, mas incidindo a averiguação da novidade sobre o elemento ou elementos prevalentes – sobre os elementos que se afigurem mais idóneos a perdurar na memória do público (não deverão tomar-se em linha de conta os elementos que desempenhem função acessória, de mero pormenor). IV - No caso das marcas mistas o elemento nominativo é, em regra, o mais importante para a apreciação do risco de confusão. Mas poderá não ser assim, se, por exemplo, o elemento figurativo suplantar em dimensão o nominativo.”
Conforme o acórdão n.º 1098/2018 proferido pelo TSI, “V - A semelhança tem de ser de ordem gráfica, nominativa, figurativa ou fonética, e, ela tem de ter uma eficácia especial. Tem se ser capaz de induzir o consumidor em erro ou confusão sobre as marcas ou capaz de levar o consumidor a associá-las (marca da Recorrida vs marcas da Recorrente) como reportando-se a uma mesma ou relacionada origem comercial dos bens que se destinam a marcar. Mais, essa capacidade tem de ser elevada, exigindo a lei que a indução do consumidor em erro ou confusão seja fácil (induza facilmente o consumidor em erro ou confusão, refere a al. c) do art. 215º).”
Para além disso, conforme o acórdão n.º 450/2014 proferido pelo TSI, “1. Não se verifica o fundamento de recusa entre as marcas (registada) e (registanda), pois não obstante um elemento comum, as dissemelhanças ganham relevo na análise do conjunto. 2. Pode haver semelhança da marca havendo risco de associação. O que é indispensável é que não exista risco de confusão. 3. A distintividade deve ser feita de forma a que “o risco de confusão de marcas seja aferido em função do registo de memorização do consumidor médio dos produtos a que elas se reportam, baseado na afinidade desses mesmos produtos e na semelhança gráfica, figurativa ou fonética dos elementos constituintes da marca em questão”.”
No presente caso, segundo os factos provados acima referidos, sem dúvida, a marca da parte contrária foi registada de forma anterior, até goza do direito de prioridade.
No entanto, a questão a analisar é – se a marca da recorrente e a marca da parte contrária sejam para assinalar os produtos ou serviços idênticos ou afins, se as marcas das partes induzam facilmente o consumidor em erro ou confusão ou que compreenda um risco de associação.
Para tanto, vamos confrontar a marca da recorrente e a marca da parte contrária:
Marca registanda
Marca já registada
N/...
…
N/...
…
N/...
Entre os quais, a marca número N/... e a marca número N/... é para assinalar produtos incluídos na classe 29ª, a marca número N/... é para assinalar serviços incluídos na classe 43ª, a descrição é de Serviços de Restauração.
Nesta situação, mesmo que a classe da marca pedida pela recorrente pertença à classe 43ª (serviços de restauração), no entanto, conforme os documentos constantes nos autos, pode-se concluir que a recorrente presta serviços de alimentação e bebidas portugueses, a marca já registada pela parte contrária envolve os produtos alimentares de carne da classe 29ª, nomeadamente as salsichas portuguesas, os presuntos e as carnes produzidas em Barrancos do Portugal. Por outras palavras, os serviços de restauração acima referidos e os produtos de carne dirigem-se igualmente aos consumidores que gozam dos produtos alimentares portugueses, existem assim a afinidade nas partes, quer na natureza quer na circulação.
Por outro lado, a partir da formação da marca, a marca da recorrente é uma marca mista, do ponto de vista directa e global, a parte mais introduzida da marca é o desenho de … e a palavra mista de …, a moldura exterior da marca e a palavra de “Genuine Portuguese Cuisine” não desempenham um papel principal no confronto ou na apresentação visual. Comparando com a marca da parte contrária, pode-se concluir que o desenho de “…” na marca da recorrente é bastante semelhante ao desenho de “ … ” na marca número N/... da parte contrária, a pessoa média tem que comparar cuidadosamente os dois desenhos, e depois, pode-se encontrar a distinção subtil na forma e na postura dos desenhos, a palavra mista de “…” é igual com a palavra de “…” da marca número N/... e a palavra de “…” da marca número N/... da parte contrária. Em caso de os elementos constitutivos da marca da recorrente sejam quase iguais aos da marca da parte contrária, do ponto de vista directa e global, existem a afinidade entre as duas marcas, ou seja, as duas marcas são quase iguais.
Conjugando com a afinidade das duas marcas revelada nos produtos e serviços, no momento em que efectua a ponderação do ponto de vista dos consumidores gerais, existe assim a possibilidade de que induzam o consumidor em erro ou confusão, ou seja, os consumidores entendem que os serviços de restauração prestados pela recorrente tenham ligação com a empresa da parte contrária, os produtos de alimentos prestados pela recorrente (nomeadamente os produtos alimentares de salsichas portuguesas, de presuntos e de carnes) decorrem da empresa da parte contrária ou da origem de Barrancos do Portugal.
Nestes termos, o tribunal entende que a marca pedida pela recorrente preenche todos os requisitos de reprodução ou imitação.
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No fim, por mera cautela, então vejamos, se exista a concorrência desleal no requerimento apresentado pela recorrente.
Nos termos do artigo 9º, n.º 1, alínea c) do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, “1. São fundamentos de recusa da concessão dos direitos de propriedade industrial: …c) O reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal, ou que esta é possível independentemente da sua intenção;…”
Quanto ao sentido da concorrência desleal, como apontado pelo acórdão n.º 239/2015 do TSI, “V. O acto de concorrência desleal é aquele que se mostra contrário às normas e usos honestos da actividade económica, designadamente o que seja idóneo a criar confusão entre produtos ou serviços de diferentes agentes económicos e o que configure aproveitamento da reputação empresarial de outrem, com isso visando a deslocação ou a possibilidade de deslocação da clientela.” (para além disso, pode-se ver os acórdãos n.ºs 246/2017, 170/2016 e 226/2014 proferidos pelo TSI)
Diferente das regras gerais, na ponderação da concessão do registo de marca, a concorrência desleal exigida pela lei não toma a intenção subjectiva da recorrente como condição, para além da concorrência desleal de intenção subjectiva, a concorrência desleal objectiva também constitui a causa de recusar o pedido de registo de marca, no tocante à situação supracitada, como apontado pelo acórdão n.º 1046/2017 do TSI, “I - Para ser recusado o registo com o fundamento do artigo 9º/1-c) do RJPI, é necessário que se reconheça que a requerente do registo pretende fazer concorrência desleal, ou que esta é possível independentemente da sua intenção. Esta norma abrange duas situações: a contrariedade objectiva intencional e a contrariedade objectiva não intencional às normas de concorrência desleal. II - O acto de concorrência desleal é o acto de disputa de clientela que é contrário às normas e usos honestos da actividade económica, designadamente o que seja idóneo a criar confusão entre produtos ou serviços de diferentes agentes económicos - Cfr. artigos 158º e 159º do Código Comercial. III - Há que ter bem presente que a grande directriz nesse domínio não é o repúdio da cópia ou da imitação, mas a da reacção contra o risco de confusão. E apenas por trazer (e se trouxer) este risco que o acto de cópia é rejeitado. É necessário que a confusão actue no espírito do público de maneira a fazê-lo tomar um operador ou os seus produtos ou serviços por outros. Só assim funciona no sentido de uma eventual deslocação de clientela. IV - Com efeito, perante as duas marcas em análise, o consumidor facilmente considerará que os produtos da marca da Recorrida são uma extensão da actividade da Recorrente, o que não é verdade e como tal contraria as normas e usos honestos de actividade económica (artigo 159º do CCOM)”.
Na delimitação concreta de se constitua o acto de concorrência desleal, a jurisprudência entende que deve-se recorrer às regras gerais do Código Comercial. Podemos ver a douta tese formulada pelo TSI no acórdão n.º 148/2018, “I - O regime jurídico da propriedade industrial não descreve as situações que configurem um quadro de concorrência desleal, pelo que haverá que pedir socorro ao Código Comercial, que no art. 158º estabeleceu uma cláusula geral, segundo a qual a concorrência desleal é toda aquela que se mostra contrária às normas e usos honestos da actividade económica (art. 158º), para logo a seguir estabelecer que o acto desleal é aquele que se revele idóneo a criar confusão entre produtos ou serviços de diferentes agentes económicos ou o crédito dos concorrentes (art. 159, nº1).”
No presente caso, de acordo com o fundamento supracitado, não se conseguir concluir a marca da parte contrária como marca notória, e além disso, não há provas de que a recorrente tem a intenção de praticar o acto de concorrência desleal. No entanto, a falta anteriormente referida não é crucial, pelo que existiu no caso a situação de que a marca da recorrente efectuou a reprodução e imitação da marca da parte contrária, essa situação é suficiente para induzir o consumidor em erro ou confusão sobre os produtos e serviços das duas marcas, nestes termos, na perspectiva objectiva, pode-se reconhecer que o pedido e o uso de registo de marca da recorrente é suficiente para constituir os actos de confusão da concorrência desleal (nos termos do artigo 159º do Código Comercial), até constituindo a causa de recusar o registo de marca.
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Como a marca da recorrente constituiu a imitação à marca já registada pela parte contrária, e além disso, existe a concorrência desleal, nos termos do artigo 214º, n.º 2, alínea b), do artigo 9º, n.º 1, alínea c) do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, conjugado com o artigo 214º, n.º 1, alínea a), a decisão da entidade recorrida de recusar o pedido de registo de marca da recorrente corresponde à lei, deve ser mantida.
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Face ao expendido, o tribunal negou provimento ao recurso da recorrente, e mantendo-se a decisão proferida no despacho recorrido.”
A fundamentação transcrita, perdoados alguns pecados de deficiente tradução, não é de acolher.
Com efeito, embora se concorde que não se pode falar aqui de marca notória por parte da marca registada e pertencente à parte contrária, quanto aos dois restantes fundamentos, não podemos com ela concordar.
Como se sabe, “A marca exerce uma função de garantia de qualidade não enganosa, visando associar um produto ou serviço a determinado produtor ou prestador e evitar no consumidor o erro e a confundibilidade de origem e proveniência.” (v.g., Ac. do TSI, de 5/03/2015, Proc. nº 796/2014).
É por isso que o art. 214º, nº2, al. b), do RJPI afirma que o registo é recusado sempre que a marca os alguns dos seus elementos contenha “Reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de marca anteriormente registada por outrem, para produtos ou serviços idênticos ou afins, que possa induzir em erro ou confusão o consumidor, ou que compreenda o risco de associação com a marca registada”.
Ou seja, o que a norma pretende evitar é que o consumidor não seja levado a pensar que está a adquirir um produto ou serviço produzido por outro agente económico que não aquele que realmente o produziu. O que o legislador pretende é, pois, que as marcas sejam distintas, para que se evite esse risco de confusão.
Ora, “A distintividade deve ser feita de forma a que “o risco de confusão de marcas seja aferido em função do registo de memorização do consumidor médio dos produtos a que elas se reportam, baseado na afinidade desses mesmos produtos e na semelhança gráfica, figurativa ou fonética dos elementos constituintes da marca em questão”.” (Ac do TSI, de 16/10/2014, Proc. nº 450/2014).
Ora, só pode haver afinidade e risco de confusão entre marcas em presença de produtos e serviços idênticos ou afins. Pode acontecer que em classes diferentes continue a haver perigo de interpenetração de produtos. Mas, se os produtos não se confundirem na sua substância e na sua utilidade consumística, parece claro que aí a protecção de marca registada não pode ir ao ponto de impedir o registo de outra, mesmo que esta reproduza parcialmente a composição daquela. Só não será assim em casos especiais, como é o caso previsto na alínea c), do nº1, do art. 214º do RJPI, quando estabelece que, mesmo para produtos sem afinidade, uma marca não pode ser registada se constituir a reprodução, imitação ou tradução de outra anterior que goze de prestígio em Macau. Não é o caso.
Assim sendo, não nos parece na situação em apreço haver o perigo que o nº2, al. b) pretende afastar, já que a marca registada pertence à classe 29ª (destinada à produção e comercialização de carnes, peixe, aves, caça, Carne, peixe, aves e caça; extractos de carne; frutos e legumes em conserva, secos e cozinhados; geleias, doces, compotas; ovos, leite e lacticínios; óleos e gorduras comestíveis), ao passo que a classe para a qual a recorrente pretendia o registo era para a classe 43ª (serviços prestados por pessoas ou por estabelecimentos cujo objectivo é a preparação de alimentos ou de bebidas para o consumo bem como os serviços prestados relativos ao alojamento e alimentação em hotéis, pensões ou outros estabelecimentos que forneçam alojamento temporário, incluindo ainda serviços de reserva de alojamento para viajantes, prestados nomeadamente por agentes de viagens ou por intermediário e pensões para animais).
Como se vê, há uma grande diferença entre os produtos e serviços englobados nestas duas classes. E tanto é assim que não concebemos que nenhum consumidor que apenas quer comprar carnes ou enchidos derivados do porco preto acabe a almoçar ou jantar num restaurante, mesmo que ali se confeccionem pratos à base de carne de porco preto e vice-versa. Os consumidores nunca se poderão enganar em tal situação, por tão ostensiva que é a diversidade de produtos e serviços em análise. Não se pode instalar a confusão entre uma coisa e outra, mesmo que as marcas em si mesmas apresentem pontos de contacto e de semelhança, como é o caso do símbolo figurativo do porco preto, voltado para o mesmo lado esquerdo e com a mesma configuração plástica, bem como a designação C. É que o público-alvo de cada uma das marcas é diferente.
O aproveitamento destes pontos de contacto entre as marcas apenas permitiriam a recusa do registo da da recorrente caso a da parte contrária gozasse de prestígio, o que não sucede.
Portanto, não se verifica no caso a situação prevista na referida norma.
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O mesmo se há-de dizer quanto à concorrência desleal.
Como este TSI teve oportunidade de observar, “O regime jurídico da propriedade industrial não descreve as situações que configurem um quadro de concorrência desleal, pelo que haverá que pedir socorro ao Código Comercial, que no art. 158º estabeleceu uma cláusula geral, segundo a qual a concorrência desleal é toda aquela que se mostra contrária às normas e usos honestos da actividade económica (art. 158º), para logo a seguir estabelecer que o acto desleal é aquele que se revele idóneo a criar confusão entre produtos ou serviços de diferentes agentes económicos ou o crédito dos concorrentes (art. 159, nº1)” (Ac. do TSI, de 11/10/2018, Proc. nº 148/2018).
E noutra ocasião assinalou que:
“O acto de concorrência desleal é aquele que se mostra contrário às normas e usos honestos da actividade económica, designadamente o que seja idóneo a criar confusão entre produtos ou serviços de diferentes agentes económicos e o que configure aproveitamento da reputação empresarial de outrem, com isso visando a deslocação ou a possibilidade de deslocação da clientela” (Ac. do TSI, de 18/05/2017, Proc. nº 246/2017).
Ou seja, o que a concorrência desleal tem como objectivo é, através de um estratagema marcário, contribuir para a deslocação de clientela de um agente para outro, precisamente por confundir o universo dos consumidores acerca da origem na produção de um determinado bem levando-os a fazer uma escolha não consciente e em erro.
Ora, e como já se disse, este perigo não existe aqui, em que o único elemento comum é o porco preto, mas em que os produtos são tão diferentes: de um lado, a venda directa de carnes do animal no mercado, para um determinado público, enquanto do outro, a oferta de um serviço de restauração, em que o animal apenas é elemento mediato ou indirecto do serviço.
Esta a razão pela qual não achamos que a sentença possa manter-se.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e o despacho do Chefe do DPI da DSE que recusou o registo, que deverá ser substituído poro outro que proceda ao registo da marca em apreço.
Sem custas.
T.S.I., 12 de Março de 2020
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Luís M. Couto Goncalves, Direito de Marcas, 2ª edição, Almedina, página 146
2 Luís M. Couto Goncalves, Direito de Marcas, 2ª edição, Almedina, página 147, no tocante ao mesmo entendimento, vide o acórdão n.º 34/2012 do TUI.
3 Luís M. Couto Goncalves, Direito de Marcas, 2ª edição, Almedina, página 134, no tocante ao mesmo entendimento, vide o acórdão n.º 135/2015 e o acórdão n.º 663/2016 do TUI.
4 Luís M. Couto Goncalves, Direito de Marcas, 2ª edição, Almedina, página 136 a 138.
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Proc. nº 1172/2019 12