Processo n.º 1250/2019
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 27/Fevereiro/2020
ASSUNTOS:
- Divórcio litigioso
- Violação do dever conjugal (dever de respeito) e critério de avaliação legalmente estipulado
SUMÁRIO:
I - O divórcio-sanção baseia-se na violação culposa, grave e reiterada de qualquer deveres conjugais previstos no artigo 1533º do CCM. O dever de respeito é um dever simultaneamente negativo e positivo, como negativo, não ofender a integridade física ou moral do outro, como positivo, respeitar a personalidade do outro.
II - A impossibilidade da vida em comum há-de traduzir-se por actos expressos donde se conclua que a vida conjugal se tornou insustentável para o cônjuge ofendido.
III – Só os actos objectivamente graves e subjectivamente culposas cometidos por um dos cônjuges, que constituam violação de deveres conjugais, nomeadamente do dever de respeito, é que justificam o decretamento do divórcio litigioso. O arranhar do Autor na cara e no pescoço pela Ré enquanto acto incidental per si só não é fundamento suficiente para decretar o divórcio peticionado ao abrigo do disposto no artigo 1635º do CCM.
O Relator,
________________
Fong Man Chong
Processo nº 1250/2019
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 27 de Fevereiro de 2020
Recorrente : C (C) (Ré)
Recorrido : B (B) (Autor)
*
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
C (C), Recorrente/Ré, devidamente identificada nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 19/06/2019, que decretou o divórcio entre o Autor e a Ré, com culpa exclusiva desta última, discordando desta decisão, veio, em 11/10/2019, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 181 a 186, tendo formulado as seguintes conclusões :
1. 本卷宗第134至141頁的判決宣告解銷原告B及被告C(上訴人);
2. 經審判聽證後,認定下列事實獲得證實:
a. O Autor e a Ré são marido e mulher, tendo contraído casamento civil na República popular da China, em 11 de Setembro de 2013;
b. Durante o ano de 2017 a Ré numa discussão arranhou o Autor na cara e braço;
c. A Ré telefonava com frequência para o Autor;
d. O Autor não pretende reater a vida em comum.
3. 《民法典》第1635條第1款之規定,夫妻任一方均得因他方在有過錯下違反夫妻義務,且該違反之嚴重性或重複性導致不可能繼續共同生活,而聲請離婚;
4. 《民法典》第1635條第2款規定:法院審查被援引事實之嚴重性時,尤其應對可歸責於聲請人之過錯、夫妻雙方之教育程度及道德意識等方面加以考慮;
5. 上訴人只曾在一次的爭執中抓傷被上訴人;
a. 只是夫妻間爭執的肢體磨擦;
b. 被上訴判決沒有認定是上訴人故意對被上訴人作出的攻擊性行為;
c. 卷宗內亦沒有載有被上訴人的醫學驗傷報告及/或報案文件;
6. 有關上訴人經常致電給被上訴人;
a. 夫妻間保持緊密聯繫屬正常之事;
b. 在本卷宗內無有任何證據證明上訴人的行為為被上訴人帶來不便,影響其生活及工作;
7. 上訴人的上述行為不符合《民法典》第1635條第1款規定之重複性及嚴重性導致不可能繼續共同生活的要件,而聲請離婚;
8. 上訴人認為被上訴判決未有對可歸責於聲請人之過錯、夫妻雙方之教育程度及道德意識等方面加以考慮該等事實之嚴重性;
9. 上訴人認為被上訴判決所證明的事實並不符合《民法典》第1635條的規定。
*
Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
* * *
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
- O Autor e a Ré são marido e mulher, tendo contraído casamento civil, na República Popular da China, em 11 de Setembro de 2013; (alínea a) dos factos assentes)
- Durante o ano de 2017 a Ré numa discussão arranhou o Autor na cara e braço; (resposta ao quesito nº 1 da base instrutória)
- A Ré telefonava com frequência para o Autor; (resposta ao quesito nº 3 da base instrutória)
- O Autor não pretende reatar a vida em comum. (resposta ao quesito nº 6 da base instrutória)
* * *
IV – FUNDAMENTAÇÃO
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
B, casado, de nacionalidade chinesa, residente em Macau na......廣場...號......花園...樓...座.
Vem instaurar a presente acção de divórcio litigioso contra,
C, casada, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, na......廣場...號......花園...樓...座.
Alega o Autor que entre si e a Ré foi celebrado casamento em 2013 sendo que a partir de 2015 a Ré começou a agredir o Autor o que fazia na frente da família, impedia-o de dormir e ligava vezes sem conta para este durante a horas de trabalho do Autor. O casal passou a viver em quartos separados embora na mesma casa e o Autor não antevê qualquer possibilidade de reatamento da vida em comum pretendo pôr fim a esta situação.
Concluindo pede o Autor que seja decretado o divórcio por culpa da Ré.
Realizada uma tentativa de conciliação entre os cônjuges não foi a mesma possível sendo a Ré notificada para contestar o que fez, defendendo-se por impugnação e concluindo pela improcedência da acção.
Foi elaborado o despacho saneador, sendo seleccionada a matéria de facto assente e a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal, mantendo-se a validade da instância.
A questão a decidir nesta sede processual consiste em apreciar se a Ré violou o dever de respeito a que estava obrigada.
Da instrução e discussão da causa apurou-se que:
(……)
Cumpre assim apreciar e decidir.
De acordo com o disposto no nº 3 do artº 1628º do C.Civ. «o divórcio litigioso é requerido no tribunal por um dos cônjuges contra o outro, com algum dos fundamentos previstos nos artigos 1635º e 1637º».
De acordo com o artº 1533º do C.Civ. os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelo dever de respeito.
O dever de respeito traduz-se na urbanidade com que os cônjuges devem tratar entre si de acordo com o seu nível de educação e sensibilidade moral.
É vedado aos cônjuges agredirem-se seja física ou psiquicamente, injuriarem-se, ou grosso modo, assumirem condutas ou proferirem verbalizações que pelo seu conteúdo sejam susceptíveis de ferir a sensibilidade do outro.
Face ao disposto no nº 2 do artº 1635º do C.Civ. a violação de todos os deveres conjugais, mas de modo especial no que ao de respeito concerne terá sempre que ser aferida em face da sensibilidade e do grau de educação de cada um dos cônjuges.
Sem prejuízo de, no que concerne a determinado tipo de comportamentos e condutas, pelo seu desvalor social e até ilicitude, a simples prática ou tentativa das mesmas ser suficiente para se considerar violado o dever de respeito.
Tal é sem dúvida o caso de agressões físicas ou tentativa de, conduta que pela sua gravidade e perigosidade é bastante para se concluir pela violação do dever de respeito, bem como a chamada violência psíquica que resumidamente se traduz num provocar constante de discussões ou reprender o outro verbalmente sem qualquer razão levando a que por vezes acabe por destruir a auto-estima do agredido causando doenças do foro psiquiátrico.
Da prova produzida resultou que a Ré agrediu o Autor fisicamente e telefonava para o Autor de uma forma que se pode considerar excessiva e não saudável.
A situação supra descrita é objectivamente grave o suficiente para se considerar violado o dever de respeito a que a Ré estava obrigada para com o Autor e consequentemente haver fundamento para o divórcio.
Assim sendo, impõe-se declarar o divórcio e que no caso em apreço ocorre por culpa da cônjuge mulher, aqui Ré.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decreta-se o divórcio entre B e C por culpa exclusiva desta e assim dissolvido o respectivo casamento.
Custas a cargo da Ré.
Registe e Notifique.
Transitada em julgado esta decisão, cumpra o disposto no artº 58º CRC.
Macau, 19.06.2019.
Quid Juris?
A Recorrente/Ré veio a defender que os factos provados não são suficientes para aplicar o artigo 1635º do CCM para decretar o divórcio. Ou seja, há violação deste artigo e como tal pede que seja revogada a sentença.
Ora, o artigo 1635º (Violação culposa dos deveres conjugais) do CCM estipula:
1. Qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum.
2. Na apreciação da gravidade dos factos invocados, deve o tribunal tomar em conta, nomeadamente, a culpa que possa ser imputada ao requerente e o grau de educação e sensibilidade moral dos cônjuges.
Em termos de factos, ficaram assentes os seguintes:
- Durante o ano de 2017 a Ré numa discussão arranhou o Autor na cara e braço; (resposta ao quesito nº 1 da base instrutória)
- A Ré telefonava com frequência para o Autor; (resposta ao quesito nº 3 da base instrutória)
E em termos de fundamentação, o Tribunal recorrido teceu as seguintes considerações:
Tal é sem dúvida o caso de agressões físicas ou tentativa de, conduta que pela sua gravidade e perigosidade é bastante para se concluir pela violação do dever de respeito, bem como a chamada violência psíquica que resumidamente se traduz num provocar constante de discussões ou reprender o outro verbalmente sem qualquer razão levando a que por vezes acabe por destruir a auto-estima do agredido causando doenças do foro psiquiátrico.
Da prova produzida resultou que a Ré agrediu o Autor fisicamente e telefonava para o Autor de uma forma que se pode considerar excessiva e não saudável.
A situação supra descrita é objectivamente grave e suficiente para se considerar violado o dever de respeito a que a Ré estava obrigada para com o Autor e consequentemente haver fundamento para o divórcio.
Assim sendo, impõe-se declarar o divórcio e que no caso em apreço ocorre por culpa da cônjuge mulher, aqui Ré.
Ora, o divórcio-sanção baseia-se na violação culposa, grave e reiterada de quaisquer deveres conjugais previstos no artigo 1533º do CCM.
O dever de respeito é um dever residual que só é autonomamente violado por comportamentos que não constituam em si mesmos, violação de outros deveres. É um dever simultaneamente negativo e positivo, como negativo, não ofender a integridade física ou moral do outro, como positivo, respeitar a personalidade do outro.
Perante o quadro fáctico acima transcrito, pergunta-se, por causa dos factos acima descritos, a vida comum do casal fica irremediavelmente comprometida? Já que a Ré não quer divorciar-se!
Olhando para o aspecto de gravidade do facto ocorrido, salvo o melhor respeito, o simples facto provado na respostas dada artigo 1º da BI não é fundamento suficiente para decretar o divórcio requerido, sendo certo que o comportamento da Ré, apesar de constituir uma violação do dever de respeito, não atingiu um tal grau de gravidade que mereça a tutela divorcista aqui peticionada.
Por outro lado, pelos factos assentes, parece que tal agressão foi um caso incidental, já que os autos só mencionam tal evento e não mais outros factos relevantes neste domínio, e também não foram averiguadas as causas motivadoras de tal reacção por parte da Ré, o que leva a concluir-se à falta de elementos objectivos e subjectivos suficientes para ser atendido o pedido de divórcio.
Num caso semelhante decidiu-se:
A impossibilidade da vida em comum há-de traduzir-se por actos expressos donde se conclua que a vida conjugal se tornou insustentável para o cônjuge ofendido, ou, pelo menos, há-se resultar directamente dos actos ofensivos, considerados estes dentro do circunstancialismo que os rodeou (RC, 11-1-1983: CJ, 1983, 1.º-30).
Pelo que, por violação do artigo 1635º do CCM, é de revogar a decisão recorrida, concedendo-se assim provimento ao recurso interposto pela Recorrente/Ré.
*
Síntese conclusiva:
I - O divórcio-sanção baseia-se na violação culposa, grave e reiterada de quaisquer deveres conjugais previstos no artigo 1533º do CCM. O dever de respeito é um dever simultaneamente negativo e positivo, como negativo, não ofender a integridade física ou moral do outro, como positivo, respeitar a personalidade do outro.
II - A impossibilidade da vida em comum há-de traduzir-se por actos expressos donde se conclua que a vida conjugal se tornou insustentável para o cônjuge ofendido.
III – Só os actos objectivamente graves e subjectivamente culposas cometidos por um dos cônjuges, que constituam violação de deveres conjugais, nomeadamente do dever de respeito, é que justificam o decretamento do divórcio litigioso. O arranhar do Autor na cara e no pescoço pela Ré enquanto acto incidental per si só não é fundamento suficiente para decretar o divórcio peticionado ao abrigo do disposto no artigo 1635º do CCM.
*
Tudo visto e analisado, resta decidir.
* * *
V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em conceder provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida.
*
Custas pelo Recorrido.
*
Registe e Notifique.
*
RAEM, 27 de Fevereiro de 2020.
Relator
Fong Man Chong
Primeiro Juiz-Adjunto
Ho Wai Neng
Segundo Juiz-Adjunto
José Cândido de Pinho
2019-1250-divórcio-agressãoi-culpa 1