Processo n.º 1145/2019
(Autos de recurso jurisdicional)
Data: 26/Março/2020
Descritores:
- Conhecimento de mérito no saneador
- Improcedência do pedido face aos factos alegados pelo autor
- Pedido de indemnização
SUMÁRIO
O disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 429.º do Código de Processo Civil prevê a possibilidade de o juiz conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial do pedido ou dos pedidos deduzidos pelo autor.
Se no momento em que deve ser proferido o despacho saneador chegar à conclusão de que, face à matéria alegada pelo autor, a acção terá mesmo que improceder, não há razão para ordenar o prosseguimento dos autos e a consequente selecção da matéria de facto, sob pena de prática de acto inútil.
Atentos os factos alegados pelo autor, não se verificando que a ré, enquanto terceiro na relação estabelecida entre o promitente-comprador, ora autor, e a promitente-vendedora no contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma, tenha actuado culposamente e com intenção de prejudicar aquele promitente-comprador, nem que tenha agido com violação do dever de boa fé para com o mesmo, e muito menos actuado com abuso de direito, andou bem a sentença recorrida ao julgar improcedente o pedido de indemnização formulado por aquele autor.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo n.º 1145/2019
(Autos de recurso jurisdicional)
Data: 26/Março/2020
Recorrentes:
- A
Recorrida:
- Região Administrativa Especial de Macau
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A, com sinais nos autos (doravante designada por “autora” ou “recorrente”), intentou acção de responsabilidade civil por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública contra a Região Administrativa Especial de Macau (doravante designada por “ré” ou “recorrida”), pedindo a condenação desta no pagamento de uma indemnização no valor de MOP5.563.699,00, correspondente ao prejuízo sofrido pela mesma por não ter podido celebrar o contrato definitivo de compra e venda com a “B”, por culpa da ré.
Foi proferido, oportunamente, despacho saneador-sentença, que julgou improcedente a acção e absolveu a ré do pedido.
Inconformada, recorreu a autora jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. 作出之判決因未有詳細說明作為裁判理由之已證事實及相應的法律根據、因欠缺對第二個訴因 — 不法行為的責任 — 之裁判依據而無效,故違反了《民事訴訟法典》第562條之第2及第3款規定下及根據同一法典第571條第1款d)項之規定。
II. 在認為應把澳門特區視作私人,為產生否認任何其與預約買受人間的關係上,原審法院因違反《行政程序法典》第4條之規定,犯下了判審錯誤。
III. 在認為澳門特區作為本上訴人和已訂立之預約合同間的第三人,原審法院因違反《物業登記法典》第5條之規定,犯下了審判錯誤。
IV. 在認為澳門特區所作的只不過是行使其批給人地位所賦予的權利,或是相關行政程序中官方的權力,原審法院因違反《行政程序法典》第2、第4及第167條a)項,以及第LT/2013號第220條之規定,犯下了審判錯誤。
V. 在認為澳門特區的行為從本質上說,是無法損害預約買受人的,因為其與他們沒有直接關係,原審法院因違反《行政程序法典》第3、第4、第7條及第8條以及第28/91/M號法令第2及第7條之規定,犯下了審判錯誤。
VI. 在認為部門過錯無法使行政當局基於濫用第三人權利而作出的特別可受譴責和令人震驚的行為,原審法院犯下了審判錯誤。
VII. 在認為宣告批給失效之行為與本上訴人所遭受的損害間不存在因果關係,原審法院因違反《民法典》第557條之規定而犯下了審判錯誤。
綜上所述,及根據法律規定,懇請 尊敬的法官閣下,應裁定:
a) 本上訴理由成立;並且
b) 廢除現上訴所針對之判決,再加上,
c) 將相關卷宗移送至原審法院以就事實事宜和判決依據作出審理;及,
d) 判決被告支付本訴訟案之一切訴訟費用及職業代理費。
倘 尊敬的法官閣下不這樣認為,則:
a) 撤銷現上訴所針對之判決書;以及,
b) 將 貴中級法院裁定上訴成立的合議庭判決書取代;及,
c) 判處被告支付原告澳門幣伍佰伍拾陸萬叁仟陸佰玖拾玖元(MOP5,563,699);並且,
d) 判決被告支付本訴訟案之一切訴訟費用及職業代理費。
懇請 尊敬的法官閣下公正審理!”
*
Contra-alegou a ré, pugnando pela negação de provimento ao recurso nos termos que se seguem:
“1. 根據主流學說理解及司法見解,配合被上訴判決的內容,原審法院基於認定上訴人在起訴狀描述的所有事實即使獲得證實,亦明顯無法支持上訴人的請求成立,僅屬於法律問題,從而決定無需進行調查證據階段及審理認定上訴人描述的事實,立即審理上訴人提出的實體問題,並判處上訴人的訴訟請求不成立及開釋被上訴人,有關判決不存在《民事訴訟法典》第571條第1款b項規定的判決無效情事。
2. 原審法院正確認定被上訴人是上訴人與B之間訂立的預約買賣合同的第三人,上訴人在起訴狀描述的被上訴人作出的行為是被上訴人作為土地批給合同的當局身份向B作出的行為,只對B產生直接效果,不對外產生效力,亦即對上訴人與B之間的關係沒有直接影響,且被上訴人沒有作出對上訴人的權益而言特別具讉責性的行為,亦沒有介入上訴人與B之間的合同關係,部門運作過錯也顯然不能符合權利之濫用的制度的前提,無論將被上訴人的行為定性為合法還是不法,皆與上訴人主張的損失沒有適當因果關係,上訴人的損失亦不屬於特別和非常,故此,被上訴判決不存在上訴人在上訴陳述中主張的所有審判錯誤。”
*
Por o relator do projecto inicial do acórdão ter ficado vencido, passa o presente acórdão a ser lavrado pelo primeiro adjunto vencedor.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Está em causa a seguinte decisão:
“I. Relatório
Autora A, melhor id. nos autos,
vem intentar a presente
Acção para Efectivação da Responsabilidade Civil Extracontratual
Contra
Ré Região Administrativa Especial de Macau
com os fundamentos constantes da p.i. de fls. 2 a 18v dos autos,
Conclui pedindo que:
- seja a Ré condenada a pagar à Autora as quantias indemnizatórias cujo valor corresponde à diferença entre o preço previsto nos contratos-promessa e o preço actual para a aquisição das fracções com os mesmos cómodos, no valor de MOP$5,563,699.00, acrescidas de juros legais, vencidos e vincendos até integral pagamento.
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A Ré contesta a acção com os fundamentos de fls. 54 a 84 dos autos, concluiu pedindo que sejam julgadas procedentes as excepções de prescrição e de manifesta improcedência do pedido com fundamento na irresponsabilidade de terceiro por lesão do direito de crédito, ou que seja improcedente a acção e absolvida a Ré dos pedidos.
*
A Autora apresenta a sua réplica com os fundamentos de fls. 123 a 126 dos autos.
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II. Saneamento
Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade “ad causam”.
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, excepções dilatórias, ou questões prévias que obstem a apreciação “de meritis”.
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O Tribunal considera que a decisão conscienciosa para o caso concreto depende só da solução da questão meramente jurídica, que não se considera impedida pelo conhecimento prévio da excepção de prescrição, motivo pelo qual despicienda a precisão do apuramento fáctico, passa a conhecer imediatamente dos pedidos da Autora, como se seguem.
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III. Fundamentos:
Pede a Autora que seja ressarcida dos prejuízos resultantes da impossibilidade do cumprimento do contrato-promessa para a aquisição da fracção autónoma do edifício denominado “C” em construção, alegadamente imputável à actuação da Ré através dos seus serviços e no decurso da execução do contrato de concessão por arrendamento, com fundamentos na sua responsabilidade por acto ilícito pela culpa do serviço.
Pese embora ser a relação jurídica material configurada pela Autora com sua ênfase na actuação ilícita, culposa e lesiva da Ré, considero importante antes saber melhor que tipo do direito subjectivo que se considerou lesado, e determinar depois, se a sua violação, ainda que fosse inteiramente comprovada, é ou não susceptível de provocar os efeitos indemnizatórios naquele alcance almejado, no sentido de fazer responsabilizar a Ré pelas lesões provocadas.
1. Logo à partida, a Autora alega ser promitente-compradora no contrato-promessa celebrado com a Sociedade de Importação e Exportação B Limitada (doravante designada por “B”), em que aquela declarou prometer adquirir a fracção autónoma do edifício em construção, situado no terreno de que esta era concessionária e que foi procedido ao registo da inscrição da aquisição na Conservatória do Registo Predial.
Mais alega que foram pagos os valores a título de sinal à promitente-vendedora pela celebração do referido contrato-promessa.
Além do mais, anos depois da celebração do contrato-promessa, a supra-referida concessão do terreno veio a ser declarada caduca pelo despacho de Chefe do Executivo da RAEM de 26 de Janeiro de 2016 e que a construção projectada nunca chegou a ser executada.
Face a esse enquadramento fáctico suposto, parece-nos ser patente que a Autora nunca adquiriu o direito de propriedade da dita fracção autónoma em construção, por consequência, não se pode arrogar titularidade de qualquer tipo de direito real em relação à mesma fracção, uma vez que o referido contrato-promessa carece da eficácia real que as partes poderiam atribuir mediante declaração expressa e inscrição no registo, de acordo com o preceituado no art.º 407.º do CCM.
Não sendo com eficácia real, reveste-se o contrato em causa de uma natureza meramente obrigacional, que apenas confira aos seus outorgantes o direito de crédito ou obrigacional.
Nesta conformidade, a despeito da configuração pela Autora da relação jurídica material assente na responsabilidade extracontratual da Ré, afigura-se-nos ser inverosímil discutir as questões de indemnização à margem do referido contrato-promessa já celebrado, uma vez que os danos alegadamente sofridos pela Autora têm como fonte directa o contrato.
2. A questão a seguir passa por saber se, não obstante a existência de um contrato-promessa, o terceiro alheio poderá ou não ser atingido pela eficácia do contrato, podendo este ser ou não titular da obrigação de indemnizações por lesões do seu direito de crédito, com uma outra fonte autónoma na responsabilidade extracontratual.
Ou melhor dizendo, a questão consiste em saber se a eficácia do contrato se restringe às partes do contrato ou deve antes se estender para além do círculo interno das partes, aos terceiros estranhos ao contrato, que não contrataram nem sucederam na posição de qualquer das partes.
2.1 Para os defensores da tese tradicional da relatividade do direito de crédito, não seria de reconhecer ao crédito um efeito externo que permitisse a sua protecção em relação a terceiros e a responsabilização destes pela lesão do crédito.
Pois, do que se trata é do direito de crédito ou obrigacional que vale apenas inter partes e que só pode ser ofendido pelo devedor, o qual se contrapõe ao direito absoluto de propriedade, ou erga omnes, que é susceptível de lesão por qualquer pessoa.
Nesta linha de consideração, a aceitação dos efeitos externos da obrigação estaria a atribuir um carácter absoluto à relação creditícia, transformando as obrigações em direitos absolutos equiparáveis aos direitos reais, contrariando o disposto do art.º 1230.º do CCM, que considera ter natureza obrigacional e não real todas as restrições ao direito de propriedade.
O mesmo se deve concluir perante o disposto do art.º 400.º, n.º 2 do CCM, “em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos especialmente previstos na lei”.
Em consonância com o disposto da supradita norma, os efeitos externos do crédito apenas surgem indirecta e excepcionalmente, por exemplo, quando se atribui a eficácia real ao contrato-promessa e ao pacto de preferência (art.º s 407.º e 415.º do CCM) e quando se prevê que se converta a obrigação natural de alimentos do lesado, ex lege, em obrigação civil de alimentos do lesante em favor do alimentado pelo lesado que deixa de os poder prestar, nos termos do art.º 488.º, n.º 3 do CCM, ou ainda mais, nos casos da verificação de commodum representationis nos termos do art.º 783.º do CCM.
Resumindo, a responsabilização de terceiro por lesão do crédito não é regra, mas sim excepção quando a lei especialmente o prevê.
2.2 Por outro lado, os efeitos externos da obrigação defender-se-iam apenas ao nível de jure constituendo, segundo a qual se deveria admitir que os direitos de crédito deveriam ser respeitados por terceiros sob pena de responsabilidade, desde que estejamos perante uma situação em que o terceiro conhece a relação especial entre o credor e o devedor e se trate de actuação especialmente censurável, e em particular que esse efeito de responsabilização devem ser assegurados em caso de ataque directo ao crédito e em caso de ataque a um elemento do substrato do crédito, e que se deveria aceitar sempre que se estivesse perante situações de abuso de direito.
Mesmo para os mais influentes oponentes à tese clássica da relatividade do direito de crédito, como por exemplo, o Professor PESSOA JORGE, que entende que “nada impede que a prestação, como um bem a que o credor tem direito, se torne impossível por acto de terceiro, que, dessa forma, lesa um direito subjective alheio, o direito de crédito”, diz no entanto que “É necessário, no entanto, que a sua actuação seja dolosa, ou o terceiro saiba que a obrigação existe e que vai causar um prejuízo ao credor, por impedir que o devedor cumpra, não parecendo, contudo, suficiente uma actuação meramente negligente”.
E por sua vez, no entendimento do Professor MENEZES CORDEIRO, a responsabilidade de terceiro por lesão do crédito, colocar-se-ia em sede do que chama de oponibilidade média. Nesta se colocariam os casos de acção de terceiro que provocasse a morte do devedor, que se traduzisse na destruição de documentos ou de outros elementos instrumentais destinados a atestar ou garantir os créditos e o problema conhecido como o da responsabilidade do terceiro-cúmplice (no incumprimento).
Como é fácil de ver, mesmo para as posições mais radicais, a tese dos efeitos externos da obrigação não se admitiria sem reserva, ou seja, não é qualquer actuação do terceiro releva para a sua responsabilização perante o credor lesado – é sempre necessário que a sua actuação seja especialmente censurável e idónea a trazer uma consequência chocante e insuportável pela exigência de boa-fé e de bom costume, como sucede nos casos de abuso de direito, ou do terceiro-cúmplice no incumprimento.
2.3 Mais ainda, consideramos necessário ter em conta que no elenco das jurisprudências conhecidas, é sempre escassa aquela que aceitou sem reserva a tese da eficácia externa das obrigações.
Assim como na RAEM, a posição que tem sido seguida é a de eficácia relativa da obrigação mitigada com o reconhecimento limitado da sua eficácia externa no caso de abuso de direito pelo terceiro, pela jurisprudência do TUI, no acórdão n.º 2/2002, proferido em 19 de Julho de 2002, onde tratava precisamente a questão da responsabilidade do terceiro pelo incumprimento do promitente-vendedor:
“…Torna-se necessário apurar se o terceiro que contribuiu para frustrar a satisfação do direito do credor, neste caso, o promitente-comprador, deve ser responsabilizado civilmente pelo incumprimento do promitente vendedor, a título de cumplicidade com este. Tem sido discutido o problema da responsabilidade do terceiro na doutrina e há fundamentalmente duas correntes.
Tradicionalmente, entende-se que não admite, em princípio, o efeito externo das obrigações. No caso de incumprimento das obrigações, mesmo com a concorrência de culpa por parte do terceiro, só o devedor incorre em responsabilidade para com o credor. Mas se a conduta do terceiro se mostra particularmente chocante e censurável, este pode responder perante o credor por ter agido com abuso do direito. Portanto, a responsabilidade do terceiro só pode ser constituída com base no abuso do direito, quando se verificarem os respectivos pressupostos.
Diversamente, há autores que defendem a doutrina do efeito externo dos direitos de crédito, considerando que estes também produzem efeitos erga omnes em determinada medida e o regime do desrespeito do direito de crédito por terceiros reconduz-se ao art.º 483.º do CC de 1966 que dispõe sobre a responsabilidade extracontratual. Entende-se que esta norma deve ser aplicável a todos os direitos subjectivos, como o são os direitos de crédito…”
E além do mais:
“…Para Ferrer Correia, sem excluir a relevância de eficácia externa dos direitos de crédito, admite-se o abuso do direito sempre que o terceiro tivesse conhecimento da existência da obrigação.
Não reconhecendo efeito externo da obrigação, Antunes Varela entende que só através doutros institutos, como o abuso do direito, será possível reagir contra a conduta reprovável do terceiro. Então, para que haja abuso do direito por parte do terceiro que viola o direito do credor, “não basta que ele tenha conhecimento desse direito, é preciso que, ao exercer a sua liberdade de contratar, ele exceda manifestamente, por força do disposto no art.º 334.º, os limites impostos pela boa fé.”
Mais razoável será a posição ecléctica sustentada por Vaz Serra. Segundo este autor, para responsabilizar o terceiro por abuso do direito, não basta a cooperação consciente na violação do contrato. Até pode não haver abuso se o terceiro, movido com interesse próprio, tenha apenas a consciência da existência da obrigação e de causar prejuízo a outra parte. “É perfeitamente admissível que esse terceiro tenha um interesse legítimo em comprar, talvez mais legítimo até que o do promitente-comprador.”
Considera que, para haver abuso do direito, não se afigura bastar, porém, que o terceiro conheça, ao contratar, a existência do direito do credor, sendo preciso que tenha agido manifestamente contra a boa fé ou os bons costumes, isto é, que o seu procedimento seja acompanhado de circunstâncias especiais que manifestamente ofendam a consciência social, que denunciem a sua particular censurabilidade, como se o terceiro compra só para prejudicar o credor, e não porque a coisa lhe convém, ou quando o terceiro sabe que o outro contraente não indemnizará o credor lesado com o contrato.
Com esta posição, por um lado, atende-se aos fins visados pelo instituto, de ultrapassagem dos tradicionais quadros e molduras formalistas do conceitualismo, impregnando a Ordem Jurídica dos valores jurídicos de carácter social. Mas por outro, reconhece-se que a abertura demasiada do instituto, tal como o reconhecimento ilimitado da eficácia externa das obrigações, é susceptível de entravar significativamente o tráfico e a segurança jurídicos.” (sublinhado nosso).
2.4 Mutatis mutantis, julgamos que ao caso vertente deve ser esta a posição que merece nossa adesão, repugnando por um lado a aceitação geral e incondicional da tese da eficácia externa do direito de crédito pelo seu radicalismo, em virtude dos argumentos conhecidos a favor da teoria clássica da relatividade dos direitos de crédito, como inoponibilidade do mesmo a terceiros pela falta de publicidade da constituição do direito, impossibilidade lógico-conceitual da violação do crédito por terceiros, risco de grave enfraquecimento do comércio jurídico no caso de aceitar a responsabilização do terceiro por lesão do crédito.
Por outro lado, reconhecemos limitadamente a responsabilização dos terceiros que não se tenham interferido na relação jurídica creditícia, somente nas circunstâncias especialmente censuráveis, quando demonstrada a existência comprovada do abuso de direito por parte dos terceiros ou verificado o terceiro-cúmplice que com a sua actuação dolosa venha a frustrar o direito dos credores.
2.5 Voltemos ao nosso caso concreto.
Com base nas alegações da Autora, parece-nos seguro afirmar que a Ré ocupa a posição jurídica de terceiro alheio em face do direito de crédito alegadamente lesado, uma vez que a Ré nunca interveio no contrato-promessa de compra e venda outorgado entre a Autora e a B e que a Ré é apenas a parte do contrato da concessão de terreno celebrado com a B, interagindo com esta no âmbito das respectivas relações recíprocas.
Em conformidade com a tese clássica da relatividade de crédito, não estando o caso abrangido por nenhuma excepção legal, bastaria o aludido para afastar a responsabilidade da Ré pelos danos reclamados. Não obstante, veremos se se verifica uma situação de abuso de direito ou uma actuação intencional e lesiva da Ré que poderia ainda justificar a sua responsabilização nos termos limitados.
Das alegações da Autora resulta que se integram nas causas de pedir da presente acção os factos reportados a uma séria de condutas dos serviços da Ré, alegadamente ilícitas e impeditivas da conclusão do aproveitamento do respectivo terreno por parte da B, resumidamente, a colocação sucessiva de um conjunto de novas exigências legalmente não previstas para o estudo de impacto ambiental, e a demora injustificada na pronúncia e na comunicação à B do resultado dos respectivos estudos.
E segundo o que se alega, trata-se de condutas que conduziram à declaração de caducidade da concessão por não aproveitamento e que inviabilizaram por conseguinte o cumprimento do contrato-promessa por parte da B face à promitente-compradora.
Porém, salvo a melhor opinião em contrário, afigura-se-me ser legítimo afirmar que as imputadas condutas, mesmo que fossem verdadeiras, não seriam aptas a indiciar a existência de uma actuação culposa da Ré para com a Autora, porque nunca aquela se intrometeu directamente na esfera jurídica desta.
Pois, uma coisa é saber se a Ré tinha culpa no decurso da execução do contrato de concessão para com a B, coisa diversa é se a mesma agia culposamente perante a promitente-compradora, com que não se deve confundir.
Muito menos qualquer situação de abuso de direito que daí se poderia vislumbrar.
Como é estabelecido na norma do art.º 326.º do CCM: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” (sublinhado nosso).
Reiterando a jurisprudência que já citámos assente na posição ecléctica quanto ao instituto de abuso de direito, a censurabilidade do abuso de direito de terceiro depende do seu conhecimento da existência do direito do credor, e o mais importante, da sua actuação que vai manifestamente para além dos limites suportáveis da boa-fé ou dos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Isto quer dizer que o conhecimento pelo terceiro da existência do direito do credor por si só é insuficiente para sustentar a responsabilização do terceiro.
No caso vertente, foi alegado o conhecimento da Ré da existência do contrato-promessa já celebrado pela Autora e a sua consciência da provável lesão do crédito desta pela respectiva actuação. Mas o que é muito diferente de a Ré ter actuado manifestamente contra a regra de boa-fé, com intenção de a prejudicar.
Parece-nos ser evidente que não bastariam para este efeito as imputações vagas, de que “澳門特區清楚知道,或者不應該忽視,每當作出那樣的行為(妨礙B完成合同規定對土地的利用以及隨後宣告批給失效),都會對已規劃的建築項目(相關的利用標的)所包含的單位之預約買受人造成損失。” (conforme se alega no art.º 112.º da p.i.), já para não falar que a própria Autora em consciência queria afastar a existência dessa intenção da Ré de a prejudicar, quando diz “這當然並非指公共當局故意或預早地存在故意損害各原告債權的主觀意圖…” (conforme se afirma no art.º 20.º da réplica).
Na nossa óptica, não pode a Ré ter violado qualquer dever de boa-fé para com a promitente-compradora, mesmo entendendo que aquela aquando da imposição das sucessivas exigências à B tivesse alguns comportamentos faltosos, esta falta terá apenas consequência directa na sua relação com a B, mas sem a repercussão para fora.
Porque a boa-fé só se aplica no âmbito limitado às situações de relacionamento específico entre os sujeitos. Não se pode exigir a um terceiro para as pessoas com quem não mantém qualquer relação, condutas positivas segundo os ditames da boa-fé, o que é diferente da exigência do dever de respeitar o direito alheio não fundado numa relação obrigacional.
Também não existe a violação de bons costumes por parte da Ré.
A actuação alegadamente ilícita da Ré era simplesmente limitada ao exercício dos direitos conferidos pelo seu estatuto de concedente no âmbito do contrato de concessão, ou dos poderes autoritários inerentes ao respectivo procedimento administrativo na sua relação com a mesma concessionária.
Por outras palavras, dos factos alegados não se conheceria outra intenção da Ré para além daquela que tem sempre acompanhado e dominado a sua actuação administrativa, no exercício das suas funções legalmente atribuídas.
Além disso, convém não esquecer que o acto da declaração da caducidade da concessão de terreno em causa, pelo qual se tornaram efectivas as lesões alegadas pela Autora, e que esta parece não querer criticar expressamente, é legalmente vinculado, cuja legalidade já não se discutiria, como foi decidido pelo Acórdão do TUI processo n.º 7/2018, proferido em 23 de Maio de 2018, “Decorrido o prazo de 25 anos da concessão provisória (se outro prazo não estiver fixado no contrato) o Chefe do Executivo deve declarar a caducidade do contrato se considerar que, no mencionado prazo, não foram cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas”.
Como é natural, se a Ré se limitava a dar cumprimento a um comando imposto pela lei vigente na declaração da caducidade da concessão dos terrenos referidos, dificilmente se poderia concluir que exista o direito para ser abusado, ou que exista qualquer intenção por parte dela de prejudicar os interesses dos promitentes-compradores, contrária à exigência das regras de bom costume ou de ordem moral.
Por último, também não parece que a conduta alegada da Ré exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico do direito. Como acima referido, daí, não se conhece nenhum desvio da funcionalidade no exercício dos direitos por parte da Ré, quer como concedente do terreno em causa, quer como autoridade administrativa.
Assim sendo, no quadro legal acima analisado, não se deve concluir que a Ré seja responsabilizada no âmbito de abuso de direito, enquanto que a tese da culpa de serviço elegida pela Autora naturalmente não nos convence, pelas razões que se passa a expor:
Como é sabido, constitui a culpa de serviço ou a responsabilidade pelo funcionamento anormal do serviço, uma nova modalidade de responsabilidade de importação jurisprudencial, assente na responsabilização da Administração enquanto tal, pela sua própria conduta lesiva, sem necessidade da demonstração de que um determinado agente actuou com culpa, mas apenas de que o serviço no seu conjunto funcionou de modo anormal.
Contudo parece-nos ser uma tese que vai longe demais para chamar a Ré à responsabilização. Como se sabe, a aplicação deste regime só terá lugar em relação aos danos que devam ser atribuídos ao funcionamento do serviço público e servirá para caracterizar a falta anónima ou colectiva ocorrida na actuação administrativa. Mas como acima referido, pela existência da relação creditícia emergente do contrato-promessa no caso concreto, a actuação da Ré enquanto terceiro, seja faltosa ou não, não é susceptível de lesar, em abstracto, os direitos da Autora.
Aliás, sempre se diga que a culpa funcional se reporta às situações em que o facto ilícito “não se revela susceptível de ser apontado como emergente da conduta ético-juridicamente censurável de um agente determinado, mas resulta de um deficiente funcionamento dos serviços – caso em que se imputa subjectivamente o facto danoso não ao agente ou funcionário, mas tão-só à pessoa colectiva pública responsável pelo funcionamento” (cfr. Acórdão do TUI no processo n.º 23/2005, proferido em 18 de Janeiro de 2006).
Daí que as situações típicas da culpa funcional mesmo demonstradas, naturalmente, não se compatibilizam com a exigência de uma actuação especialmente censurável e chocante da Ré fundada no abuso de direito de terceiro como pressuposto da sua responsabilização pelas lesões do direito de crédito.
Portanto, é evidente que a referida tese não sustenta o respectivo pedido indemnizatório.
Concluindo, inexiste nenhum título idóneo para fazer responsabilizar a Ré no caso concreto, é manifesto que os pedidos da Autora devem ser julgados improcedentes.
IV. Decisão:
Assim, pelo exposto, decide-se:
Julgar improcedente a acção e em consequência, absolver a Ré Região Administrativa Especial de Macau dos pedidos formulados pela Autora.
*
Custas pela autora.
*
Registe e notifique.”
Analisada a douta sentença de primeira instância que antecede, louvamos a acertada decisão com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito aí exposta, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC, aplicável subsidiariamente.
Apenas mais umas achegas.
É verdade que a lei manda prosseguir os autos se a acção tiver sido contestada, e proceder-se à selecção da matéria de facto relevante segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, conforme previsto no n.º 1 do artigo 430.º do CPC.
Mas não podemos deixar de ter em consideração o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 429.º do mesmo Código, em que prevê a possibilidade de o juiz conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial do pedido ou dos pedidos deduzidos pelo autor.
Ora bem, salvo o devido respeito por opinião contrária, se no momento em que deve ser proferido o despacho saneador, já há condições para conhecer do mérito da causa, nomeadamente se chegar à conclusão de que, face à matéria alegada pelo autor, a acção terá mesmo que improceder, por que motivo terá que ordenar o prosseguimento dos autos e a consequente selecção da matéria de facto se, ao fim e ao cabo, vai dar o mesmo resultado, isto é, a improcedência da acção? Em nossa opinião, trata-se de um acto inútil.
Ademais, se da decisão de improcedência for interposto recurso e se o tribunal ad quem também vem entender que, atenta a matéria alegada pela autora, a acção não deixará de improceder, não vejamos razão para não confirmar a decisão recorrida.
A nosso modesto ver, entendemos que só terá necessidade de mandar prosseguir os autos e proceder-se à selecção da matéria de facto relevante para decisão da causa se o tribunal entender que a acção intentada pelo autor é realmente viável. Neste caso haverá necessidade de produzir a prova uma vez que ainda não reúnem condições para apreciar o pedido do autor.
No fundo, o que está em causa é evitar a prática de actos inúteis, em prol do princípio da economia processual previsto no artigo 87.º do CPC.
Efectivamente, se a lei permite que a petição deva ser indeferida liminarmente com fundamento na manifesta improcedência da acção com respeito pelo princípio da economia processual, por maioria de razão, não vemos obstáculo à apreciação do pedido no saneador, se entender que a pretensão do autor não vai proceder.
No mesmo sentido, defende Paulo Ramos de Faria1 que “O juiz pode indeferir in limine a petição inicial quando for manifesta a inviabilidade da pretensão do autor(…), [pelo que] não se compreendia que lhe fosse vedado conhecer desse mesmo aspecto numa fase mais adiantada do processo, no despacho saneador, quando já dispunha de maiores e melhores elementos de informação.(…) A desnecessidade de mais provas para o imediato conhecimento do pedido não equivale a ausência de controvérsia sobre a questão de facto apresentada pelo autor. Pode esta subsistir e, não obstante, ser possível o conhecimento do mérito da causa. Assim ocorrerá, desde logo, nos casos em que deve ser formulado um juízo de manifesta inviabilidade da acção. Este juízo pode evoluir e reforçar-se entre a apreciação liminar e a fase do saneamento processual, levando à decisão de improcedência nesta ocasião.(…) Reunidos os pressupostos da sua admissibilidade, a realização do julgamento imediato da causa não é apenas um poder do tribunal de primeira instância. É um dever tributário do princípio da economia processual.”
Ora bem, no caso em apreço, não se verifica a alegada falta de fundamentação da decisão quanto à segunda causa de pedir, a saber, a responsabilidade por acto lícito, considerando que o Tribunal recorrido adoptou a mesma fundamentação da decisão em relação à primeira causa de pedir.
De resto, entre a ré e a Sociedade de Importação e Exportação B Limitada foi celebrado um contrato de concessão de terreno, daí que, se existir alguma responsabilidade por danos decorrente de actos praticados pela ré durante a execução do contrato de concessão, cabe à própria concessionária, e não a uma pessoa terceira, accionar junto da entidade concedente.
Conforme se decidiu na sentença recorrida, atentos os factos alegados pela autora ora recorrente, não se verifica que a ré, enquanto terceiro na relação estabelecida entre a promitente-compradora e a promitente-vendedora no contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma, tenha actuado culposamente e com intenção de prejudicar a recorrente, nem que tenha agido com violação do dever de boa fé para com a mesma, e muito menos actuado com abuso de direito, pelo que andou bem a sentença recorrida, devendo negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto por A, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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RAEM, 26 de Março de 2020
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
José Cândido e Pinho
(vencido, conforme voto anexo)
Proc. nº 1145/2019
Voto de vencido
Não acompanho a solução do acórdão, pelo seguinte:
1 - A recorrente considera nula a decisão recorrida, com base no disposto nos arts. 562º, nº2 e 3 e 571º, nº1, al. b), do CPC, por não conter os factos em que se alicerçou a decisão de direito.
Ora bem. Teve já este TSI oportunidade de afirmar o imenso perigo que constitui julgar-se a questão de direito no despacho saneador sem a fixação dos factos provados apenas com base na simples especulação de que, mesmo que provados, outra não poderia ser a solução1.
É um perigo que, se naquele recurso foi afastado pelas razões indicadas no respectivo aresto, mostra aqui, nos presentes autos, a sua mais evidente face. É que nem todas as situações são iguais, sendo de admitir a existência de casos, tal como o presente, em que a omissão da factualidade provada pode fazer ruir toda a construção jurídica acerca do litígio.
Como naquele recurso jurisdicional foi observado “Quando o juiz no saneador decide o mérito da causa sem necessidade de mais provas, por julgar que a questão é meramente de direito, não estamos perante a nulidade do art. 571º, nº1, al. b), do CPC, por falta de especificação dos factos assentes, se nele for expressamente referido que, ainda que provados os factos invocados pelo autor, a solução não podia deixar de ser aquela que tomou” (destaque nosso).
Reitero o que ali ficou exarado, sublinhando-se que aquela solução não oferece dúvida quando a questão de direito analisada é indiscutível, i.é., quando para a solução do caso não se confrontam teses divergentes ou quando as normas legais apontam claramente o caminho decisório. Sob esse prisma, se a fixação dos factos não se revelar imprescindível, porque qualquer que seja o acervo material fáctico invocado a solução não deixa de ser uma só, não se falará aí em nulidade.
Tudo muda, todavia, se o assunto do litígio pode ser resolvido à luz de mais de uma tese. Neste caso, nenhum magistrado judicial se pode sentir seguro e tranquilo para decidir a lide sem os factos pertinentes que possam subsumir-se a uma delas. Em tal hipótese, sem os factos, é impossível ao juiz decidir o caso em segurança e em boa consciência realizar a justiça que lhe pedem. A falta da fundamentação de facto, então, redundará na nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. b), do CPC.
Mais coisa, menos coisa, este é semelhante ao problema de saber se alguém (A) que pretende muito comprar uma coisa a outrem (B) e, sabendo que este está em negociações com outro interessado (C), se dirige ao vendedor dizendo “cobras e lagartos” do interessado comprador (C), imputando a este os piores vícios de carácter, defeitos e anti virtudes, com a intenção de levar o vendedor (B) a desistir do negócio com C. Se B vier a celebrar o contrato com A, poderá C responsabilizar A pelos prejuízos que sofrer com a não realização do contrato de compra e venda?
Ou então: Se um terceiro, com a sua conduta culposa, tiver contribuído para frustrar a satisfação do direito do credor, promitente-comprador de uma fracção imobiliária, impedindo a celebração do contrato definitivo de compra e venda, deverá ser responsabilizado civilmente pelo incumprimento do promitente-vendedor?
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2 - No caso vertente, a questão nuclear consiste em saber se, face a um contrato-promessa de compra e venda, um terceiro pode interferir na relação obrigacional entre as partes, impossibilitando a celebração do contrato definitivo e lesando o direito subjectivo de um dos promitentes causando-lhe danos, pelos quais deva ser responsabilizado extracontratualmente, ao abrigo dos art. 477º do CC e 2º e sgs. do DL nº 28/91/M, de 22/04 (Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública e de Pessoas Colectivas Públicas).
Ora, no despacho-saneador impugnado é o próprio magistrado judicial que expressamente reconhece a existência de mais do que uma corrente doutrinal sobre a questão central do litígio, havendo fortes e ilustres defensores de ambos os lados a tomarem posição num e noutro sentido2.
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3 - As teses em confronto
3.1 - A doutrina clássica, pugnando pela relatividade inter-partes da eficácia dos direitos obrigacionais, levaria a concluir que jamais os direitos de crédito poderiam ser violados por terceiros. Nessa tese, no caso de incumprimento das obrigações, ainda que para este tenha concorrido a culpa de algum terceiro, só o devedor incorre em responsabilidade para com o credor.
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3.2 - Segundo uma outra posição, a excepção àquela regra abrir-se-ia para as situações em que a conduta do terceiro se revelar particularmente chocante, insidiosa e censurável, constituindo infracção aos princípios da boa-fé, dos bons costumes ou da função sócio-económica do direito, hipótese em que este pode responder perante o credor com fundamento em abuso do direito, uma vez verificados os respectivos requisitos (art. 326º). Neste sentido, pode ver-se: Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pág. 79 a 83; Vaz Serra, Responsabilidade de terceiros no não-cumprimento de obrigações, in BMJ, n.º 85, pág. 345 a 360; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 8ª ed., págs. 181 a 188; Ferrer Correia, Estudos Jurídicos – II, Direito Civil e Comercial, Direito Criminal, Atlântida Editora, Coimbra, 1969, pág. 33 a 51; Luis Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 7ª ed., Almedina, pág.101-103; Manuel Trigo, Lições de Direito das Obrigações, FDUM, 2014, pág. 88; Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, Coimbra, 1990, pág. 41 a 47; Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, pág. 77 a 89; Para Ferrer Correia o abuso do direito ocorreria sempre, bastando que o terceiro tivesse conhecimento da existência da obrigação (ob. cit., pág. 45 a 51). Para Antunes Varela, só através da figura do abuso do direito, será possível reagir contra a conduta reprovável do terceiro. Mas, para esse efeito, para que haja abuso do direito por parte do terceiro que viola o direito do credor, “não basta que ele tenha conhecimento desse direito, sendo ainda necessário que, ao exercer a sua liberdade de contratar, ele exceda manifestamente, por força do disposto no art.º 334.º, os limites impostos pela boa fé.” (ob. cit., págs. 183-185).
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3.3 - Noutra linha de pensamento, há quem defenda a doutrina do efeito externo dos direitos de crédito, considerando que estes também produzem efeitos erga omnes, caso em que o desrespeito por aqueles direitos por terceiros se reconduz ao art.º 477º do actual Código Civil de Macau (art. 483.º do CC de 1966) a propósito da responsabilidade civil extracontratual ou delitual.
De acordo com esta tese, o art. 477º mostra-se aplicável a todos os direitos subjectivos, incluindo os direitos de crédito. Neste sentido, ver, v.g., António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, vol. I, AAFDL, 1980, p. 251 a 283; Rita Amaral Cabral, A tutela delitual do direito de crédito, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da Silva, Edição da FDUL, Coimbra Editora, 2001, p. 1042.
No entanto, dentro desta corrente, há vozes que para a aplicação desta doutrina introduzem um factor correctivo, digamos assim,
Pessoa Jorge, por exemplo, aceita que o terceiro possa ser responsabilizado pelo prejuízo causado a um dos contraentes, titular de um direito de crédito, quando conheça esse direito, isto é, quando saiba de antemão da existência do direito e que, com a sua acção, irá causar um prejuízo ao credor, impedindo o devedor de cumprir a sua obrigação (Lições de Direito das Obrigações, AAFDL, 1975-1976, pág. 602-603).
Também E. Santos Júnior sustenta que o terceiro que, com conhecimento do direito de crédito de alguém, venha a lesá-lo, poderá ser responsabilizado perante o credor, por aplicação das regras da responsabilidade civil (Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, Almedina, 2003, pág. 446-447). Este mesmo autor conclui, portanto, pela oponibilidade do direito de crédito em relação a terceiros, reconhecendo nestes o dever de respeito por aquele direito quando o conheçam efectivamente (ob. cit., pág. 487), sob pena de, consequentemente, se gerar o dever de indemnizar quando a sua conduta seja ilícito-culposa, de acordo com as regras da responsabilidade civil subjectiva (ob. cit., pág. 499-501).
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4 - Sem poder entrar na análise de direito do caso, importa listar as razões da minha discordância em relação à decisão sob escrutínio.
Primeiramente, o julgador na 1ª instância tomou a decisão no despacho saneador por lhe parecer manifesta a improcedência.
Ora, dizer que é manifesta a improcedência, como fez o despacho recorrido, é julgar tardiamente aquilo que só liminarmente deveria ter sido reconhecido. Na verdade, só nessa fase liminar do processo é possível indeferir liminarmente a petição “quando for evidente que a pretensão do autor não pode proceder” (art. 394º, nº1, al. d), fine, do CPC). Isso não o fez o tribunal “a quo” nessa fase, certamente por achar que o processo não reunia os elementos que lhe permitissem concluir pela evidência da improcedência do pedido. E se não era manifesta ou evidente a improcedência nessa fase dos autos, não mais podia o juiz em fases ulteriores, nomeadamente a do saneador, socorrer-se desse mesmo argumento.
O juiz, no despacho saneador, só poderá conhecer do mérito da acção e apreciar o pedido, sem necessidade de mais provas, “sempre que o estado do processo permitir”3 (art. 429º, nº1, al. b), do CPC). Ou seja, o juiz do processo só pode conhecer do pedido no despacho saneador quando se acharem reunidos todos os dados de facto (já provados, por documentos, por confissão, etc.4) necessários à decisão nesse momento, reconhecendo dessa maneira não ser precisa nenhuma produção de prova, nem se mostrar aconselhável relegar para a sentença uma tarefa que pode desde logo ser executada sem mais perda de tempo e de meios.
Em suma, “só pode conhecer-se do mérito da causa no despacho saneador, nos termos do art. 510.º, n.º 1, alínea b), do C.P.C., quando for de afastar absolutamente a possibilidade de a produção da prova alterar os elementos de facto relevantes para a decisão”.5
É por isso que a disposição legal exige que não sejam precisas “mais provas” (sic), o que significa que o tribunal já deve ter coligido prova suficiente que o habilite a decidir nesse instante. E, quanto a esta afirmação, é universalmente indisputável que, quando o legislador fala em prova, se está o legislador a referir, obviamente, à prova dos factos. Logo, o tribunal só pode apreciar no saneador o mérito do petitório desde que os factos (provados) o habilitem para o efeito. Sem essa prova, não.
Por essa razão é que, na senda melhor jurisprudência de direito comparado, se afirma que “as excepções para as quais haja várias soluções plausíveis de direito só devem ser julgadas no despacho saneador se já estiverem assentes os factos necessários para deles conhecer na perspectiva de todas as soluções plausíveis”6 (destaque nosso).
Repetimos: o juiz só deve servir-se dos factos já provados, consignando-os expressamente, e julgando-os suficientes ao conhecimento do mérito.
Mas, para isso, tem que os fixar, no respeito pelo ónus de prova que cada uma das partes tem sobre os seus ombros. Só depois de os fixar, pode o titular do processo avançar para a solução jurídica, a qual pode ser impugnada em sede de recurso, nomeadamente com fundamento no errado julgamento da matéria de facto.
Realmente, só assim o juiz cumpre a lei. É que o julgador não pode simplesmente vazar no saneador a sua opinião acerca do “thema decidendum” e a partir dela avançar para a imediata decisão de mérito.
Desde que haja a possibilidade de outras respostas judiciais, para além daquela que o juiz eventualmente perfilhe, ele deve, de acordo com as “várias soluções plausíveis de direito da questão de direito”, colher todos os factos imprescindíveis a estas (art. 430º, nº1, do CPC).
Porquê?
Porque “A admissibilidade do conhecimento do mérito no saneador, está condicionada à existência no processo de todos os elementos para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa” 7. (destaque nosso).
Porque “Se uma dessas soluções impuser prosseguimento do processo em ordem ao apuramento dos factos alegados, não pode proferir no saneador decisão sobre o mérito da causa” (cit. aresto)8.
Porque «…o juiz do processo não deve sobrepor o seu entendimento subjectivo à directriz que resulta da lei e que aponta para a necessidade de instrução quando haja factos controvertidos segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito»9 (sublinhado nosso)
Porque o juiz só deve tomar conhecimento do pedido nessa fase «…se o processo já reunir todos os elementos para uma decisão conscienciosa segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa»10 (sublinhado nosso)
O que acaba de se transcrever remete-nos, como num epílogo, para as palavras simples, mas sábias e de fina cirurgia, que Alberto dos Reis nos legou a propósito deste mesmo tema do conhecimento antecipado do mérito da lide:
«A segurança não deve ser sacrificada à celeridade. Segurança, neste caso, quer dizer acerto e justiça. Julga com segurança o tribunal que só emite a sua decisão quando está de posse de todos os elementos necessários para proferir um veredictum consciencioso, ponderado e justo. Se o juiz, na ânsia de andar depressa, julgar uma questão que ainda não está devidamente instruída e amadurecida, sacrificará a justiça à rapidez (…) o excesso de velocidade, a preocupação da rapidez pode pôr em risco a segurança, ou seja o julgamento consciencioso e justo. Prudência, pois, no despacho saneador»11
Acontece que o juiz do tribunal “a quo”, de acordo com a sua visão pessoal acerca das teses que se digladiam sobre o alcance da relação obrigacional e dos efeitos que nela se podem repercutir por acção de terceiro, limitou-se a optar por uma. Fê-lo sem curar de saber se os factos invocados estão ou não provados, omitindo por completo a possibilidade de as outras teses precisarem dos respectivos factos.
Ou seja, e com o merecido respeito o dizemos, sem que a necessária prudência o aconselhasse e sem que a lei o permitisse, avançou imediatamente para a apreciação da questão de direito, desconsiderando totalmente os factos, que desprezou por desnecessários.
Dito de outra forma, agindo contra a lei, ignorou as várias soluções plausíveis de direito, que lhe impunham a fixação dos factos pertinentes provados, e não procedeu, quanto aos controvertidos, à elaboração do “questionário” em base instrutória que, novamente, respeitasse as várias soluções plausíveis da questão de direito (cfr. art. 430º, nº1, do CPC).
Voltemos às teses acima enunciadas:
De acordo com uma das teses, o terceiro nunca pode ser responsabilizado.
Mas, de acordo com outra, o terceiro pode ser responsabilizado desde tenha agido em claro abuso de direito. Perguntamos, por isso: pode dizer-se que a Administração preencheu com a sua actuação a figura do abuso? Há factos invocados nesse sentido? Se sim, é preciso ver se estão já aceites ou se é preciso submetê-los à prova.
De acordo com outra tese ainda, o terceiro pode ser responsabilizado pela sua acção/omissão. Noutra formulação, essa responsabilização depende de o terceiro ter conhecimento da existência do direito de crédito do lesado. Então, perguntamos: A Administração sabia da existência dos contratos-promessa, nomeadamente deste? Há organismos públicos que tinham conhecimento deste contrato e da existência do direito de crédito desta autora? A autora trouxe aos autos factos que o revelem? Se sim, é preciso ver se estão já aceites ou se é preciso submetê-los à prova.
Este exercício não fez o T.A. Ora, uma vez que em relação aos factos que constituem a causa de pedir se desenvolvem duas ou mais teses jurídicas em redor da solução do caso concreto, não podia o tribunal “a quo”, no despacho saneador, avançar para a decisão de mérito sem a elencagem dos factos provados.
E se o não podia fazer o TA, entendo que igualmente o não pode fazer o tribunal de recurso “ad quem”. Neste momento, nem sequer este colectivo julgador do TSI pode fazer um exercício intelectual idêntico ao do tribunal “a quo”, porque não lhe cumpre antecipar o seu juízo que poderá vir a manifestar no futuro em face das teses em confronto na solução da lide. Um juízo decisor recursório só pode ser definitivo perante os factos apurados na sede própria. Quer dizer, este colectivo, sem os factos fixados, não pode aderir, nem opor-se, à tese de direito que o TA abraçou. Basta admitir que outra possa ser a solução, no quadro das várias admissíveis, para se não aceitar a decisão recorrida sem os factos provados. O próprio TUI, ainda que reportado a eventual direito dos concessionários, não excluiu liminarmente “o direito à indemnização, se os concessionários demonstrarem factos que integrem os pressupostos da responsabilidade civil.” (v.g., Ac. do TUI, de 30/07/2019, Proc. nº 72/2019).
É por estas razões que, com a devida consideração, concordo com os recorrentes quando afirmam que o saneador-sentença não respeitou o dever de discriminar os fundamentos de facto (art. 562º, nºs 2 e 3, do CPC), o que constitui a nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. b), do CPC.
Nulidade que o TSI não poderia suprir ao abrigo dos poderes de substituição que lhe confere o art. 630º, nº1, do CPC, uma vez que existe matéria de facto controvertida, nomeadamente relativa à indemnização (cfr. art. 60º da contestação), outra que parece ter natureza exceptiva (arts. 163º - 180º da contestação), toda devendo ser objecto de prova no lugar e momento próprios.
Em suma, porque o art. 430º, nº1, do CPC constitui norma imperativa, que não admite aplicação arbitrária do juiz, entendo que o tribunal de recurso não pode pactuar com a manifesta ilegalidade do despacho recorrido.
Por estes motivos, não subscrevo o acórdão que fez vencimento.
TSI, 26 de Março de 2020
___________________
José Cândido de Pinho
1 Juiz de Direito, “Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito”, in Julgar Online, http://julgar.pt/relevancia-das-outras-solucoes-plausiveis-da-questao-de-direito
1 Ac. do TSI, de 11/10/2011, Proc. nº 761/2009
2 O mesmo reconheceu o Ac. do TUI, de 19/07/2002, Proc. nº 2/2002, igualmente citado na decisão recorrida.
3 Repare-se que o conhecimento do pedido na fase do saneamento já não radica na manifesta improcedência-evidência do pedido, mas na suficiência da prova dos factos.
4 A. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, 1997, II, pág.127.
5 Ac. do STA (Portugal) de 7/05/2003, Proc. nº 1875/2002.
6 Ac. da RP, de 11/01/2018, Proc. nº 4075/16.
7 Ac. da RL, de 14/12/2006, Proc. n º 9662/2006.
8 No mesmo preciso sentido, ver ainda Ac. da RL, de 24/07/1981, Proc. nº 14706, in BMJ nº 314, pág. 361; tb. Ac. da RC, de 29/10/1991, in CJ, 1991, IV, pág. 124; Ac. da RC, de 28/03/1995, Proc. nº 1303/94 , in BMJ nº 445, pág. 626
9 Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed., pág. 393.
10 José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª ed., pág. 402.
11 Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª ed., reimpressão, pág. 190
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Recurso Jurisdicional 1145/2019 Página 22
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