Processo nº 29/2019
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 26 de Março de 2020
ASSUNTO:
- Processo disciplinar arquivado
SUMÁRIO:
- Sem outra causa de nulidade do acto, a Administração não pode reabrir o processo disciplinar arquivado, com fundamento de que já inexistia a causa da inutilidade face à anulação da pena de demissão aplicada ao Recorrente noutro processo disciplinar.
- Assim o fez, gera a nulidade do procedimento disciplinar, o que implica a anulabilidade do acto punitivo ora recorrido.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 29/2019
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 26 de Março de 2020
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Segurança
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
A, melhor identificado nos autos, vem interpor o presente recurso contencioso contra o despacho do Secretário para a Segurança, de 04/12/2018, que lhe aplicou a pena de demissão, concluíndo que:
1. No dia 24 de Julho de 2018, no âmbito do processo disciplinar n.º 22/2018-1.1-DIS, foi o ora Recorrente formalmente acusado de violar vários dos deveres previstos nos artigos 5.º, 6.º, 8.º, 11.º e 12.º do EMFSM.
2. Porquanto, de acordo com acusação, na madrugada do dia 20 de Abril de 2015, fora do serviço, cometeu ele os crimes de injúria, resistência e coacção e gravações ilícitas.
3. Factos esses que deram também origem a processo-crime que se encontra presentemente em fase de recurso no Tribunal de Segunda Instância.
4. No dia 7 de Dezembro de 2018 foi o Recorrente notificado do acto do Senhor Secretário para a Segurança, de 4 de Dezembro, que lhe aplicou a pena de demissão, ao abrigo dos artigos 228.º e 238.º, n.º 2, alíneas a) e n) do EMFSM.
5. Já no âmbito do (já findo) processo disciplinar n.º 09/2012-1.1-DIS, fôra o Recorrente acusado de violar os seus deveres funcionais pela alegada prática do crime de lenocínio.
6. Enquanto decorria esse processo disciplinar foi-lhe instaurado um novo processo disciplinar, com o n.º 10/2015-2.213-DIS, pelos mesmos factos deram origem ao processo disciplinar aqui sub judice.
7. Tendo sido este último processo disciplinar suspenso para se aguardar decisão final no processo-crime que corria termos no Tribunal Judicial de Base.
8. O primeiro processo disciplinar (n.º 09/2012-1.1-DIS) resultou na aplicação ao Recorrente de uma pena de demissão.
9. No dia 19 de Maio de 2017 foi arquivado pelos Serviços de Alfândega, o processo disciplinar n.º 10/2015-2.213-DIS tendo por base a inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 132.º, n.º 2, al. b) do CPA, arquivamento esse notificado ao Recorrente.
10. O Recorrente recorreu contenciosamente da pena de demissão aplicada no âmbito do processo disciplinar n.º 09/2012-1.1-DIS, e por douta decisão do TSI, confirmada após recurso pelo Venerando TUI, foi anulada a pena de demissão aplicada.
11. Conhecida essa decisão, os Serviços de Alfândega decidiram reabrir o processo disciplinar com o n.º 10/2015-2.213-DIS, conferindo-lhe um novo número, tratando-se portanto da reabertura de um processo disciplinar que havia anteriormente sido arquivado, pelos mesmos factos acusatórios.
12. Tal reabertura, nessas circunstâncias, carece de base legal, porquanto nem o EMFSM nem o ETAPM preveem a possibilidade legal de reabrir processos disciplinares anteriormente arquivados.
13. A possibilidade de reabertura de processos previamente arquivados é apenas prevista no CPP, aplicável subsidiariamente ao EMFSM, no seu art.º 261.º, e apenas nos casos em que surgirem novos elementos de prova.
14. Mas os fundamentos usados para reabrir o presente processo não foram a existência de novos elementos de prova, uma vez que esses já existiam plenamente nos autos ainda antes do despacho de arquivamento.
15. Esse despacho de arquivamento foi uma decisão tomada de livre resolução da Administração, que a tal não estava obrigada.
16. Afigurando-se estar o processo disciplinar que deu origem ao acto de que aqui se recorre ferido de nulidade, por ter sido (re)instaurado fora das condições legalmente admissíveis.
17. Nulidade essa suscitada pelo ora Recorrente na sua contestação, e portanto tempestivamente.
18. Da análise do processo administrativo instrutor resulta manifesto de que se tratou da "reabertura" dos processos disciplinares previamente instaurados, com os números 09/2012-1.1-DIS e 10/2015-2.213-DIS, e da correspondente apensação de ambos.
19. Sendo que a sentença penal, muito menos não transitada em julgado, não se trata de um novo elemento de prova, tanto que o acto recorrido não se fundou nessa sentença para proferir a pena de demissão agora aplicada, mas sim nas restantes provas produzidas.
20. O processo disciplinar sub judice foi reaberto, tão-só, porque a demissão que havia sido aplicada no âmbito do primeiro disciplinar, por outros factos, foi anulada judicialmente.
21. Sendo ponto assente que a reabertura do processo disciplinar verificada no processo sub judice é atentatória dos princípios da celeridade e da certeza jurídica processuais, que norteiam os processos disciplinares instaurados contra agentes militarizados.
22. Com a notificação efectuada ao Recorrente desse despacho de arquivamento estabilizou-se, plenamente, na ordem jurídica, esse arquivamento, por aqueles factos, e a sua reabertura ocorreu fora das condições legalmente admissíveis e contra princípios basilares que regem o processo disciplinar administrativo.
23. Por outro lado, o Recorrente foi acusado de injuriar agentes da polícia, resistir à sua autoridade e, posteriormente, já na esquadra policial, tirar fotografias ilícitas.
24. Mas a verdade é que toda a sua conduta resultou de estar alcoolizado no momento dos factos e portanto de estar incapacitado para avaliar a gravidade sua conduta nesse momento.
25. Trata-se de uma total privação das faculdades intelectuais no momento da prática dos factos, e tal facto resulta plenamente do processo instrutório.
26. Vários são os testemunhos constantes dos autos do processo administrativo instrutório, alguns provenientes das próprias vítimas da sua conduta, que confirmam que o Recorrente, na altura dos factos, não estava num estado emocional normal, que cheirava a álcool e que havia ingerido grandes quantidades de bebidas alcoólicas, e ainda confirmando que ele, em condições psicológicas normais, não levaria a cabo tais comportamentos.
27. Havendo portanto que se concluir que se encontra plenamente demonstrado que o Recorrente estava fortemente alcoolizado no momento da prática dos factos, estado esse que não lhe permitiu avaliar a gravidade da sua conduta (e muito menos conformar-se com ela) no momento da prática dos factos descritos na nota de culpa contra si impulsionada.
28. O Despacho decisório aceita como facto assente que o arguido se encontrava alcoolizado na altura dos factos mas afirma também que ele agiu de forma "consciente e livre", incorrendo portanto em erro nos pressupostos de facto, por partir de uma factualidade que, verdadeiramente, não existiu.
29. Afirmando-se posteriormente que o facto de estar alcoolizado não pode beneficiar o arguido, porquanto os seus hábitos privados não podem comprometer o prestígio da instituição.
30. Mas o estado de alcoolémia em que se encontrava o arguido afasta a sua culpa, uma vez que levou a que ele se encontrasse privado das suas habituais faculdades intelectuais, de forma acidental, o que constitui uma circunstância dirimente da sua responsabilidade disciplinar prevista no EMFSM.
31. Essa circunstância dirimente é resultado de uma análise que deve ser efectuada de forma puramente objectiva, não competindo à entidade decisória avaliar se a circunstância dirimente merece, no caso concreto, afastar ou não a responsabilidade disciplinar do arguido.
32. Porquanto a lei afasta essa margem, ao estabelecer uma norma de carácter imperativo, à entidade decisória competindo apenas avaliar se, objectivamente, existe ou não uma circunstância dirimente, mas já não se essa circunstância é juridicamente relevante.
33. Admitiu-se a existência da circunstância dirimente, mas ajuizou-se que essa circunstância não pode levar ao afastamento da sua responsabilidade disciplinar, sendo manifesto que tal conclusão é juridicamente inaceitável.
34. Porquanto a condição do Arguido exclui a sua culpa e a ilicitude da conduta, e estas são pressupostos da punição disciplinar, sendo de concluir que devia ter sido ele absolvido da prática de qualquer infracção disciplinar pelos factos descritos na acusação.
35. A entidade recorrida parece ter querido relevar o facto de o arguido não poder ingerir bebidas alcoólicas na quantidade e forma em que o fez, por isso colidir com o seu estatuto de militarizado, mas não era essa a conduta pela qual o Recorrente vinha acusado.
36. Ademais sempre se diga que a pena aplicável ao arguido nunca poderia ser a pena de demissão, mas sim a de aposentação compulsiva.
37. No âmbito do Estatuto dos Militarizados, tanto a pena de demissão como a pena de aposentação compulsiva são aplicáveis quando se trate de infracção disciplinar que inviabilize a manutenção da relação funcional.
38. O Despacho punitivo imputa ao Recorrente as condutas previstas nas alíneas a) e n) do n.º 2 do art.º 238.º, sendo que nenhuma delas cabe no artigo 240.º, que impõe a aplicação da pena de demissão em determinadas situações.
39. Já o art.º 239.º impõe a aplicação da pena de aposentação compulsiva quando "se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções" e o arguido tenha prestado pelo menos 15 anos de serviço, como é o caso do Recorrente, que foi admitido em 1998.
40. O Despacho punitivo conclui que a conduta do Recorrente o torna "indigno do exercício de funções das forças e serviços de segurança", conclusão essa que se insere na previsão normativa ínsita no art.º 239.º do EMFSM.
41. Da mesma forma que o artigo 240.º impõe à Administração Pública que opte pela pena de demissão em determinadas situações, o art.º 239.º impõe a escolha pela pena de aposentação compulsiva noutras.
42. Sendo de aplicar essa pena quando (1) se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções (2) o militarizado reúna pelo menos 15 anos de serviço (3) a infracção inviabilize a manutenção da relação funcional e (4) não se trate de uma das condutas que impõem a aplicação da pena de demissão.
43. É isto que resulta da conjugação dos artigos 238.º, 239.º e 240.º do EMFSM.
44. Impunha-se portanto a aplicação ao Recorrente da pena aposentação compulsiva, ao invés da pena de demissão.
45. O acto recorrido violou o princípio da legalidade administrativa, previsto no art.º 3.º do CPA por ter sido consequência de um processo disciplinar que se afigura ferido de nulidade.
46. O acto recorrido incorreu ainda em violação de lei, em específico os artigos 202.º e 196.º, n.º 1, ambos do EMFSM, por se ter ignorado a circunstância dirimente que saiu comprovada no processo disciplinar e ainda em erro nos pressupostos de facto, por ter considerado que o Recorrente agiu de forma "consciente e livre", quando tal não corresponde à factualidade assente.
47. Finalmente, e subsidiariamente, incorreu ainda em violação de lei por ter sido violado o disposto nos artigos 232.º e 239.º do EMFSM, ao se ter aplicado a pena de demissão ao invés da pena de aposentação compulsiva que se impunha.
48. Sendo vícios que tornam o acto passível de recurso nos termos previstos no art.º 25.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, al. b) (este quanto ao erro nos pressupostos de facto), ambos do CPAC.
*
Regularmente citada, a Entidade Recorrida contestou nos termos constantes a fls. 56 a 62 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pelo não provimento do recurso.
*
O Mº Pº emitiu o seguinte parecer:
“…
Nos presentes autos de recurso contencioso que foi interposto por A, melhor identificado nos autos, e que tem por objecto o acto do Secretário para a Segurança, datado de 4 de Dezembro de 2018, que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão, vem o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 69.º do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), emitir parecer nos termos que seguem:
1.
Por despacho datado de 4 de Dezembro de 2018, cuja cópia consta de fls. 29 e 30 dos presentes autos, o Secretário para a Segurança aplicou ao ora Recorrente a pena disciplinar de demissão, por violação dos deveres de correcção e de aprumo previstos nas alíneas b) e d) do n.º 2 do artigo 11.º e na alínea f) e o) do n.º 2 do artigo 12.º, e por infracção ao dever geral de «constituir exemplo de respeito pela legalidade instituída e actuar no sentido de reforçar na comunidade o sentimento de confiança na instituição que serve», valor a que concretamente se refere o n.º 3 do artigo 5.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro.
Inconformado, com a referida decisão, dela veio o Recorrente interpor o presente recurso contencioso, imputando-lhe, em síntese, os seguintes vícios:
- Nulidade do processo disciplinar;
- Violação de lei, mais concretamente o artigo 202.º do EMFSM e erro nos pressupostos de facto;
- Errada escolha da pena disciplinar aplicada.
2.
2.1.
Para fundamentar a sua pretensão impugnatória, começa o Recorrente por alegar que o processo disciplinar que culminou com a prática do acto recorrido teve por objecto os mesmos factos que haviam estado na base da instauração do processo disciplinar n.º 10/2015-2.213-DIS que, com base na respectiva inutilidade superveniente a que se refere o artigo 103.º, n.º 2, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo (CPA), foi arquivado pelos Serviços de Alfândega, em 19 de Maio de 2017.
Assim, segundo o Recorrente, por via desse arquivamento, estava a Administração impedida de instaurar novo processo disciplinar pelos mesmos factos, dado que não há base legal que permita sustentar a verdadeira reabertura do processo que teve lugar, uma vez que a mesma não resultou da existência de novos meios de prova.
Daí que, sustenta, o processo disciplinar esteja ferido de nulidade que afecta o próprio acto recorrido.
Com o devido respeito, parece-nos que o Recorrente não tem razão.
É certo o que diz no que tange a ter havido um arquivamento de anterior procedimento disciplinar reportado aos mesmos factos motivado pelo facto de, em outro processo disciplinar, ter sido aplicada ao Recorrente a pena de demissão.
No entanto esse arquivamento do procedimento disciplinar foi motivado não por razões substanciais atinentes aos factos ou ao respectivo enquadramento jurídico mas, ao invés, a uma razão meramente formal, mais concretamente, pelo entendimento da Administração de que ocorria uma inutilidade superveniente do procedimento.
Sucede que, entretanto, o acto que havia aplicado a pena de demissão foi contenciosamente anulado. Por isso, face a essa circunstância superveniente, os Serviços de Alfândega determinaram a instauração de um novo procedimento disciplinar que culminou com o acto recorrido.
Não vemos que algum obstáculo exista à instauração deste novo processo disciplinar. Na verdade, à data da mesma, os factos que estiveram na base dessa instauração não haviam sido objecto de qualquer juízo ou apreciação disciplinar e, portanto, com a anulação da demissão aplicada no outro processo, a Administração ficou constituída no dever legal de perseguir disciplinarmente os ditos factos.
Só assim não seria se tivesse sobrevindo a prescrição do procedimento disciplinar cujo prazo é de 5 anos nos termos resultantes do artigo 205.º, n.º 1 do EMFSM. Mas essa prescrição não ocorreu, uma vez que estão em causa factos ocorridos no dia 20 de Abril de 2015.
Parece-nos, portanto, que não ocorre a nulidade do processo disciplinar invocada pelo Recorrente.
2.2
Alega depois o Recorrente que toda a sua conduta que levou à aplicação da pena disciplinar aqui em causa resultou de, no momento dos factos, estar alcoolizado e incapacitado para avaliar a sua conduta e, portanto, de estar totalmente privado das faculdades intelectuais no momento da prática dos factos.
Pelo que, diz o Recorrente, o estado de alcoolemia em que se encontrava quando da prática dos factos afasta a sua culpa, o que, nos termos do artigo 202.º, alínea b) do EMFSM, constitui uma circunstância dirimente da sua responsabilidade disciplinar.
Vejamos.
A questão foi objecto de pronúncia expressa por parte da Entidade Recorrida no despacho que agora se encontra sob impugnação. Disse-se aí a este propósito: «[o arguido] não pode beneficiar o facto de ao tempo se encontrar alcoolizado, atenta a responsabilidade que impende sobre qualquer agente das forças de segurança, de não comprometer o prestígio da instituição com hábitos privados e comportamentos socialmente adequados».
É incontroverso que a culpa constitui elemento constitutivo da responsabilidade disciplinar. Isso resulta, expressamente do n.º 1 do artigo 196.º do EMFSM: «[c]onstitui infracção disciplinar o facto culposo praticado pelo militarizado, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais a que está vinculado».
Também é pacífico que a inimputabilidade, isto é, a incapacidade de, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação (cfr. artigo 19.º nº 1 do Código Penal), afasta a culpa, ou, na lição de um Autor português, mais que uma causa de exclusão, constitui verdadeiramente um obstáculo à determinação da culpa, ou, noutra perspectiva, constitui um pressuposto da comprovação da culpa (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, págs. 569-570 apud Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.5.2019, processo n.º 382/14.7JALRA.C1, www.dgsi.pt).
No entanto, o facto de o Recorrente estar alcoolizado no momento da prática da infracção não implica a respectiva inimputabilidade, sequer acidental ou momentânea, com a virtualidade de excluir a sua culpa.
Sabe-se, por outro lado, que a chamada imputabilidade diminuída, decorrente do facto de o agente estar alcoolizado no momento da prática da infracção, não implica qualquer atenuação da culpa nem sequer qualquer atenuação da pena.
Assim, temos por irrepreensível, nesta parte, o acto recorrido.
2.3.
A última questão suscitada pelo Recorrente é a da que, segundo diz, ter sido uma errada escolha da pena disciplinar por parte da Entidade Recorrida.
Para o Recorrente, ao invés da pena de demissão, impunha-se, no caso, a pena menos gravosa, a saber a aposentação compulsiva uma vez que o artigo 239.º do EMFSM impõe a aplicação de tal medida «quando se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções».
Salvo o devido respeito, parece-nos que não tem razão.
Dispõe o n.º 1 do artigo 238.º do EMFSM que «as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional».
Por sua vez, do n.º 2 do dito artigo resulta que «As penas referidas no número anterior são aplicáveis ao militarizado que, nomeadamente:
a) Agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, em local de serviço ou em público;
(…)
n) Praticar, ainda que fora do exercício das suas funções, acto revelador de ser o seu autor incapaz ou indigno de exercer o cargo ou que implique a perda da confiança geral necessária ao exercício da função».
Por seu turno, o artigo 239.º do mesmo diploma estabelece:
«1. A pena de aposentação compulsiva é especialmente aplicável nos casos em que se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções.
2. Em qualquer caso, a pena de aposentação compulsiva só poderá ser aplicada se o militarizado reunir, pelo menos, 15 anos de tempo de serviço, sem o que lhe será aplicada a pena de demissão».
E o artigo 240.º preceitua:
«A pena de demissão é aplicada ao militarizado que:
a) Tiver praticado qualquer crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, com flagrante e grave abuso da função que exerce e com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Tiver praticado, ainda que fora do exercício das funções, crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos que revele ser o seu autor incapaz ou indigno da confiança necessária ao exercício da função;
c) Praticar ou tentar praticar qualquer acto previsto nas alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do artigo 238.º».
A propósito da escolha da pena disciplinar, ponderou-se no acto recorrido:
«Esta conduta é indigna da manutenção de um vínculo funcional a uma instituição dotada de autoridade policial, como o são os Serviços de Alfândega, porquanto, injuriar e desrespeitar publicamente agentes de autoridade no exercício pleno das suas funções legais, torna-o indigno do exercício de funções das forças e serviços de segurança.
Na escolha da medida concreta da pena expulsiva exclui-se a pena concreta de aposentação compulsiva, atendo o elevado desvalor da conduta descrita, razão por que (…), puno o arguido A (…) com a pena de demissão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 228.º e 238.º, n.º 2 alíneas a) e n) do mesmo diploma legal».
Não vemos que o acto recorrido, nesta parte, possa censurar-se. A conduta do Arguido cabe, em pleno, nas previsões normativas das alíneas a) e n) do n.º 2 do Artigo 238.º de EMFSM, como se consignou no despacho recorrido, pelo que, nesse pressuposto, à Entidade Recorrida cabia escolher a pena disciplinar que considerasse adequada, sem que nada, nomeadamente o artigo 239.º do referido Estatuto, a vinculasse a escolher a pena de aposentação compulsiva. Trata-se, ao invés, do exercício de um poder discricionário, em cujo concreto exercício não se verifica, de todo, erro manifesto ou total desrazoabilidade.
Daí que este fundamento do recurso não possa, em nosso entendimento, deixar de ser julgado improcedente.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que o presente recurso deve ser julgado improcedente com a consequente manutenção na ordem jurídica do acto recorrido…”.
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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II – Pressupostos Processuais
O Tribunal é o competente.
As partes possuem a personalidade e a capacidade judiciárias.
Mostram-se legítimas e regularmente patrocinadas.
Não há questões prévias, nulidades ou outras excepções que obstam ao conhecimento do mérito da causa.
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III – Factos
Com base nos elementos existentes nos autos e no respectivo P.A., é assente a seguinte factualidade com interesse à boa decisão da causa:
1- No âmbito do processo disciplinar nº 09/2012-1.1-DIS, foi aplicada ao Recorrente a pena de demissão, por ter violado gravemente os seus deveres funcionais enquanto agente dos Serviços de Alfândega da RAEM.
2- Enquanto decorria o processo disciplinar supra referido, foi-lhe instaurado um novo processo disciplinar com o nº 10/2015-2.213-DIS.
3- Este último foi considerado como extinto por inutilidade superveniente face à pena disciplinar de demissão aplicada ao Recorrente no processo disciplinar nº 09/2012-1.1-DIS.
4- Foi determinado, assim, o arquivamento do processo disciplinar nº 10/2015-2.213-DIS em 04/05/2017.
5- A pena de demissão aplicada no disciplinar com o nº 10/2015-2.213-DIS foi anulada judicialmente.
6- Conhecida essa decisão, os Serviços de Alfândega decidiram reabrir o processo disciplinar nº 10/2015-2.213-DIS, conferindo-lhe um novo número 22/2018-1.1-DIS.
7- Os factos reportados neste último são idênticos ao do processo disciplinar nº 10/2015-2.213-DIS.
8- No dia 04/12/2018 o Senhor Secretário para a Segurança proferiu o Despacho nº 141/SS/2018, nos seguintes termos:
“…
Nos presentes autos consta suficiente provado que o arguido, A, Verificador Alfandegário n.º ****1, do quadro de pessoal alfandegário dos Serviços de Alfandega praticou, como consta da matéria da acusação, que aqui se dá por inteiramente reproduzida, os seguintes factos, com relevância disciplinar:
a) Cerca das 05:55 do dia 20 de Abril de 2015, o arguido foi abordado por três agentes policiais do Corpo de Policia de Segurança Pública, porquanto, junto ao estabelecimento comercial Mcdonald's da Av. Horta e Costa desta cidade, gritava em voz alta, exibindo um comportamento socialmente desadequado; Tendo-lhe sido pedida a identificação para efeitos de autuação porquanto deitara ao chão uma ponta de cigarro, não só recusou como repeliu, com agressividade, uma tentativa de o conter levada a cabo pelos agentes policiais, quando se preparava para abandonar o local, ao ponto de ter lhes ter causado ferimentos vários, como vem descrito. Simultaneamente dirigiu-lhes insultos, ameaças e outros impropérios ofensivos da dignidade de qualquer pessoa e, particularmente, de uma agente da autoridade, tudo como consta do libelo acusatório;
b) Cerca das 08h50, já no comissariado policial, e após uma passagem pelo Hospital Conde de S. Januário, onde fora conduzido em face do notório estado de perturbação emocional em que se encontrava, o arguido invocou indisposição pelo que foi requisitada uma ambulância ao Corpo de Bombeiros. Acto contínuo, o arguido subiu a uma cadeira e, enquanto prosseguiu com afirmações ofensivas dirigidas a quem o interpelava, filmou a instalação policial onde se encontrava, captando, ainda, imagens dos agentes policiais ali presentes, recusando-se, não obstante tal lhe ter sido pedido, a entregar-lhes o telemóvel com que o fazia ao mesmo tempo que os injuriava.
Com esta conduta, que arguido adoptou de forma consciente e livre, bem sabendo que estava perante agentes da autoridade, no cumprimento da sua missão, resistindo-lhes, injuriando-os e gravando ilicitamente a sua imagem no interior de uma instalação policial, violou de forma afrontosa e grave os deveres de correcção na formulação que lhes conferem as alíneas b) e d) do n.º 2 do artigo 11.º e de aprumo, na formulação que lhe conferem as alíneas f) e o) do n.º 2 artigo 12.º, para além de ter infringido, ainda, um dever geral de "constituir exemplo de respeito pela legalidade instituída e actuar no sentido de reforçar na comunidade o sentimento de confiança na instituição que serve", valor a que concretamente se refere o n.º 3 do artigo 5.º - todos do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n. 66/94/M, de 30 de Dezembro.
Pese embora a circunstância atenuante a que se refere a alínea 1) do n.º 2 do artigo 200.º daquele Estatuto, a verdade é que o bom comportamento anterior de que formalmente beneficia o arguido, não diminui o desvalor da conduta que adoptou, como não o pode beneficiar o facto de ao tempo se encontrar alcoolizado, atenta a responsabilidade que impende sobre qualquer agente das forças de segurança, de não comprometer o prestígio da instituição com hábitos privados e comportamentos socialmente desadequados.
Esta conduta é indigna da manutenção de um vínculo funcional a uma instituição dotada de autoridade policial, como o são os Serviços de Alfândega, porquanto, injuriar e desrespeitar publicamente agentes de autoridade no exercício pleno das suas funções legais, torna-o indigno do exercício de funções das forças e serviços de segurança.
Na escolha da medida concreta da pena expulsiva exclui-se a pena concreta de aposentação compulsiva, atento o elevado desvalor da conduta infractora descrita, razão porque, usando dos poderes executivos que me advêm do disposto no n.º 1 da Ordem Executiva n.º 111/2014 e, bem assim, da competência conferida pelo Anexo G ao Artigo 211.º do citado EMFSM, puno o arguido A, Verificador Alfandegário n.º ****1, do quadro de pessoal alfandegário dos Serviços de Alfandega, com a Pena de DEMISSÃO, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 228.º e 238.º n.º 2 alíneas a) e n) do mesmo diploma legal.
Notifique o arguido do teor do presente despacho e, ainda, de que do mesmo cabe recurso contencioso no prazo de 30 dias, contados da data da efectiva notificação…”.
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IV – Fundamentação
1. Da nulidade do procedimento disciplinar:
A questão que se coloca é a de saber se a Administração pode ou não reabrir um processo disciplinar arquivado cujo procedimento já foi declarado extinto por inutilidade superveniente, atribuindo assim um número novo do processo e o prosseguindo até ao final.
Tanto a Entidade Recorrida como o Mº Pº junto deste TSI entenderam que não existia obstáculo legal para o efeito.
Salvo o devido respeito, temos uma posição diferente.
Para nós, uma vez declarado extinto o procedimento disciplinar por inutilidade superveniente e determinado o consequente arquivamento do processo por decisão que se tornou inimpugnável, já se formou o caso decidido, que é o caso.
Assim, sem outra causa de nulidade do acto, a Administração não pode reabrir o processo disciplinar arquivado, com fundamento de que já inexistia a causa da inutilidade face à anulação da pena de demissão aplicada ao Recorrente noutro processo disciplinar.
Assim o fez, gera a nulidade do procedimento disciplinar, o que implica a anulabilidade do acto punitivo ora recorrido.
Em bom rigor, os Serviços de Alfândega, não obstante já ter aplicado a pena de demissão ao Recorrente noutro processo disciplinar, não deviam declarar extinto o procedimento disciplinar entretanto instaurado, que correu sob o nº 10/2015-2.213-DIS, determinando o arquivamento deste, já que, por um lado, a pena disciplinar aplicada ainda não se formou o caso decidido, e, por outro, a existência da pena de demissão nunca constitui causa da inutilidade superveniente do processo disciplinar em referência, pois a cessação da função do funcionário ou agente não prejudica a sua punição.
Como já o fez, ainda que exista erro no pressuposto de facto/direito na decisão do arquivamento que determina a sua anulabilidade, a mesma não poderia ser revogada unilateral e livremente por parte da Administração com fundamento na sua anulabilidade se já decorreu o prazo de 365 dias (cfr. o artº 130º do CPA, conjugado com o artº 25º, nº 2, al. c) do CPAC), uma vez que tal revogação é desfavorável ao ora Recorrente.
2. Dos demais vícios alegados:
Tendo em conta a decisão supra, fica prejudicado o conhecimento dos demais vícios alegados.
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V – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar procedente o presente recurso contencioso, anulando o acto recorrido.
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Sem Custas, por a Entidade Recorrida gozar da isenção subjectiva.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 26 de Março de 2020.
(Relator)
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
Mai Man Ieng
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29/2019