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Processo n.º 459/2019 Data do acórdão: 2020-3-26
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O

Como da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto, não pode ter ocorrido o vício de erro notório na apreciação da prova aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 459/2019
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): B (B)



ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 426 a 430v do Processo Comum Colectivo n.° CR1-15-0201-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a arguida B, aí já melhor identificada, ficou condenada como autora material, na forma consumada, de um crime de ofensa grave à integridade física, p. e p. pelos art.os 138.o, alínea b), 66.o, n.os 1 e 2, alínea c), e 67.o do Código Penal (CP), com atenuação especial da pena, em um ano e seis meses de prisão, suspensa na execução por dois anos.
Inconformada, veio recorrer a arguida para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando (no seu essencial) e rogando, na sua motivação de recurso apresentada a fls. 439 a 451v dos presentes autos correspondentes, o seguinte:
– a fórmula verbal empregue pelo Tribunal sentenciador (segundo a qual “não se provam outros factos constantes da acusação e da contestação que sejam desconformes com os factos provados”) na indicação de factos não provados respeitantes aos factos alegados na contestação não dá, atento o grau genérico da própria fórmula verbal, para satisfazer a exigência legal prevista no art.o 355.o, n.o 2, do Código de Processo Penal (CPP), problema esse gerador, assim, da nulidade da própria decisão condenatória nos termos do art.o 360.o, n.o 1, alínea a), do CPP;
– e mesmo que assim não se entendesse, a decisão condenatória recorrida não deixaria de padecer do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, por o Tribunal recorrido não ter investigado, pelos vistos, os factos alegados na contestação;
– outrossim, haveria também erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido aquando da sua decisão de julgar por provado o facto ora descrito como provado sob o n.o 4, isto porque das imagens de vigilância visual referidas na fundamentação probatória do aresto impugnado, não se poderia resultar provado que a arguida empurrou a ofendida de modo súbito e com grande força, por um lado, e, por outro, as declarações prestadas pelo perito médico-legal na audiência de julgamento também não dão para comprovar qualquer empurrão feito de modo súbito e com grande força pela arguida contra a ofendida;
– pelo que tudo indicaria que a arguida teria agido apenas com negligência, devendo ser alterado o julgado em seu favor.
Ao recurso respondeu o Ministério Público a fls. 481 a 488v, no sentido de improcedência do recurso, pugnando, porém, a alteração da qualificação jurídico-penal dos factos, de modo a passar convolar-se o crime por que vinha condenada arguida para o crime de ofensa à integridade física, agravada pelo resultado da ofensa grave à integridade física, p. e p. pelo art.o 139.o, n.o 2, do CP, com possível atenuação especial da pena, com consequente aplicação de uma pena de prisão inferior a um ano e seis meses, com suspensão na execução por dois anos.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 496 a 498, opinando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
– o acórdão recorrido ficou proferido a fls. 426 a 430v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida;
– na contestação então apresentada pela arguida por escrito a fls. 212 a 223, ela alegou um conjunto de factos para defender a sua tese de que não tinha chegado a praticar qualquer acto de ataque contra a ofendida, nem tinha praticado acto ilícito culposo, e de que a ofendida se tinha ofendido corporalmente por causa da queda no chão por descuido próprio dela, sem qualquer nexo de causalidade com a arguida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Na sua motivação do recurso, começou a arguida por suscitar a questão de falta de fundamentação da decisão condenatória na parte referente à especificação de factos não provados.
No caso dos autos, empregou o Tribunal a quo a seguinte fórmula verbal para indicar os factos não provados, materialmente a respeito dos factos alegados na contestação escrita da arguida de fls. 212 a 223 (em que a arguida alegou um conjunto de factos para defender, sobretudo, que não tinha chegado a praticar qualquer acto de ataque contra a ofendida, nem tinha praticado acto ilícito culposo, e que a ofendida se tinha ofendido corporalmente por causa da queda no chão por descuido próprio dela, sem qualquer nexo de causalidade com a arguida): “Não se provam outros factos constantes da acusação e da contestação que sejam desconformes com os factos provados” (cfr. o primeiro parágrafo da página 5 do texto do aresto recorrido, a fl. 428).
Dado o sentido e alcance da tese fáctica defendida pela arguida na sua contestação escrita, tese essa que contraria logicamente com a matéria de facto dada por provada finalmente pelo Tribunal sentenciador, entende o presente Tribunal ad quem que aquela fórmula verbal usada pelo Tribunal recorrido já satisfaz, em concreto, a exigiência, plasmada no n.o 2 do art.o 355.o do CPP, da fundamentação da decisão da matéria de facto.
Portanto, naufraga o recurso nessa primeira parte, sem alguma nulidade da decisão condenatória prevista no art.o 360.o, n.o 1, alínea a), do CPP.
No caso dos autos, o tema probando ficou composto pela matéria fáctica alegada no libelo acusatório e também na contestação escrita da arguida. Como através daquela fórmula verbal, ainda se sabe quais os factos provados e quais os factos não provados, não pode ter ocorrido, ao contrário do esgrimido pela arguida na sua motivação do recurso, qualquer omissão, por parte do Tribunal recorrido, na investigação dos factos alegados na contestação. No fundo, da leitura da fundamentação fáctica do aresto recorrido, a gente passa a saber que o Tribunal recorrido acabou por dar por não provada a tese fáctica descrita na contestação da arguida. Por isso, no caso, a decisão condenatória penal não pode ter enfermado do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
E sobre o alcance e sentido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014.
Finalmente, a arguida invocou a existência de erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto. Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos – cfr. o teor da mesma fundamentação probatória.
Cabe frisar que das imagens visualizadas na audiência de julgamento, se pode ver, no entender também do presente Tribunal ad quem, que a arguida chegou a empurrar a ofendida de modo súbito e com grande força, o que fez cair a ofendida no chão.
Perante toda a matéria de facto já dada por assente no aresto recorrido, a arguida agiu realmente com dolo, e não por negligência, na prática do crime por que vinha condenado, sendo de salientar que um empurrão dado de modo súbito e por grande força pode, segundo o senso comum das pessoas, causar ofensa grave à integridade física da pessoa atingida pelo empurrão, pelo que não se pode, salvo o devido respeito por opinião diversa, convolar o crime da arguida para o crime de ofensa à integridade física agravado pelo resultado da ofensa grave à integridade física.
Improcede, pois, o recurso, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pela arguida, com oito UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão ao Processo n.o CR3-19-0141-PCC.
Macau, 26 de Março de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



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