Processo nº 851/2018
Data do Acórdão: 26MAR2020
Assuntos:
Autorização de residência
Falta de fundamentação
Antecedentes criminais
SUMÁRIO
O acto administrativo considera-se fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o artº 480º/2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de reacção, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 851/2018
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
A, devidamente identificado nos autos, vem recorrer do despacho do Senhor Secretário para a Segurança que lhe indeferiu o pedido que formulara para que fosse autorizada a residência em Macau, concluindo e pedindo:
1.a O acto recorrido enferma de ilegalidades que, conforme se demonstrará, o tornam inválido e anulável;
2.a O regime jurídico geral da fundamentação dos actos administrativos consta actualmente dos artºs 114º. e 115º. do Código do Procedimento Administrativo.
3.a A fundamentação deve proporcionar ao administrado (destinatário normal) a reconstituição do denominado iter cognoscitivo e valorativo do autor do acto para que este fique a conhecer o motivo por que se decidiu naquele sentido; para que conscientemente o aceite ou o impugne, ao mesmo tempo que se deseja que aquele decida com ponderação o que, em princípio se conseguirá com a externação dos respectivos fundamentos, prática que, normalmente, conduz à sua reflexão.
4.a Trata-se, em suma, de exigir motivação adequadamente compreensível.
5.a Do exposto flui, que o ora Recorrente tinha o direito de conhecer a respectiva e verdadeira fundamentação, para os fins legalmente previstos. Era necessária uma exposição dos fundamentos de facto e de direito que se apresentasse clara, congruente e suficiente, ainda que sucinta, e esclarecesse concretamente a motivação da decisão, o que não se verifica no acto impugnado, que por isso é ilegal.
6.a Com efeito, do acto ora recorrido apenas consta a prática de um crime ocorrido no continente chinês e não crimes ocorridos em Macau onde o ora Recorrente tem um registo criminal sem qualquer ocorrência.
7.a Daí que se possa concluir, que no que respeita à fundamentação do acto recorrido, há manifesta insuficiência de fundamentos, pois não é esclarecida de forma conveniente a motivação do acto.
8.a O acto ora recorrido enferma, assim, do vício de forma, por falta de fundamentação. O Recorrente, enquanto destinatário do acto administrativo impugnado, não ficou em condições de saber a verdadeira motivação da decisão.
9.a Em consonância com o exposto, acrescentar-se-á que sofrendo a fundamentação de insuficiência determina a lei a falta da mesma - cfr. artigo 107.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo. Falta de fundamentação que determina a anulabilidade do despacho.
Nestes termos e nos mais de direito, com o douto suprimento de V. Exa, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência anulado o despacho recorrido, por vício de forma, com todas as consequências legais, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA.
Citado, veio o Senhor Secretário para a Segurança contestando pugnando pela improcedência do recurso.
Não havendo lugar à produção de provas, foram o recorrente e a entidade recorrida notificados para apresentar alegações facultativas.
Não foram apresentadas alegações facultativas.
Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer pugnando pelo não provimento do presente recurso.
É tidas por assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:
* O recorrente A, nascido em 01ABR1970, é cidadão da R. P. China;
* Casou-se em 26NOV1999 com B, residente em Macau e titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau;
* Ao abrigo do disposto no artº 14º do Regulamento Administrativo nº 5/2003 e com fundamento nos laços familiares com residente da RAEM, requereu em 27DEZ2017 ao Chefe do Executivo da RAEM a autorização de residência em Macau;
* Em 23JUL2012, o recorrente foi condenado na China pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 7 meses de prisão;
* Por despacho do Senhor Secretário para a Segurança lançado em 26JUN2018 sobre a informação nº 20073/CRSMA/2018P, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido, foi indeferido o pedido de autorização de residência com fundamento nos antecedentes criminais do recorrente; e
* Inconformado com o despacho que lhe foi notificado pessoalmente em 03SET2018, veio o recorrente interpor recurso contencioso mediante o requerimento que deu entrada na Secretaria do TSI em 20SET2018.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Em face das conclusões na petição do recurso, o recorrente está a assacar ao acto recorrido apenas os vícios de falta de fundamentação e/ou insuficiência da fundamentação.
Então vejamos.
Para imputar ao acto recorrido os vícios de falta e/ou da insuficiência de fundamentação, o recorrente alegou que:
……
6.a Com efeito, do acto ora recorrido apenas consta a prática de um crime ocorrido no continente chinês e não crimes ocorridos em Macau onde o ora Recorrente tem um registo criminal sem qualquer ocorrência.
7.a Daí que se possa concluir, que no que respeita à fundamentação do acto recorrido, há manifesta insuficiência de fundamentos, pois não é esclarecida de forma conveniente a motivação do acto.
8.a O acto ora recorrido enferma, assim, do vício de forma, por falta de fundamentação. O Recorrente, enquanto destinatário do acto administrativo impugnado, não ficou em condições de saber a verdadeira motivação da decisão.
9.a Em consonância com o exposto, acrescentar-se-á que sofrendo a fundamentação de insuficiência determina a lei a falta da mesma - cfr. artigo 107.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo. Falta de fundamentação que determina a anulabilidade do despacho.
Ao que parece que, o recorrente está a usar indistintamente as expressões “falta de fundamentação” e “insuficiência de fundamentação” para identificar o(s) vício(s) que imputou ao acto recorrido.
Para nós, não se verificou qualquer desses vícios, pois o acto recorrido se encontra suficientemente fundamentado.
Como se sabe, o acto administrativo considera-se fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o artº 480º/2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de reacção, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.
Sob outro prisma, considera-se cumprido o dever de fundamentação, quer na forma da exposição directa das razões de facto e de direito, quer através da declaração da concordância ou da remissão para os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas nos termos autorizados pelo artº 115º/1 do CPA, quando o acto encerrar os aspectos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do acto.
In casu, o despacho recorrido consiste na declaração de concordância exarado na informação nº 20073/CRSMA/2018P, onde o subalterno hierárquico propôs o seguinte:
1. 利害關係人A曾持編號…之《前往港澳通行證》於27/12/2017到本廳申請「居留許可」,其申請來澳門定居之理由是與配偶〔B,持第…號《澳門永久性居民身份證》〕團聚。
2. 本廳曾於8/8/2017收到廣東省公安廳出入境管理局傳真之公函(文號:…號)及前往澳門定居核查人員表,當中包括利害關係人A;經初步核查後,並沒發現其屬受限制入境本澳之人士,故於10/11/2017致函(116349/CRSM/2017P)內地回覆相關情況。
3. 根據A是次遞交由廣東省佛山市順德公證處發出之公證書〔…〕 及由廣東省佛山市順德區人民法院發出之刑事判決書〔…),證明A曾於23/7/2012被廣東省佛山市順德區人民法院判處犯有販賣毒品罪,處以7個月有期徒刑,根據判決書所載,於2012年A與購毒人電話聯絡後,在其住宅內收款及交收海洛因(0.13克)被民警當場抓獲,及後,並在卧室內起獲0.84克海洛因及電子秤等物品。
4. 考慮到A存有上述第3點之刑事前科,對本地區的公共安全或公共秩序構成嚴重威脅,因此,本廳擬不批准其「居留許可」申請,並於6/3/2018向A發出《書面聽證通知書》,後於23/3/2018,其親臨本廳並簽收該通知書。
Ora, basta uma simples leitura da proposta constante da informação nº 20073/CRSMA/2018P, nomeadamente os seus pontos 3 e 4, é de concluir que foi cabalmente cumprido o dever de fundamentação pela entidade recorrida.
Pois vê-se facilmente na fundamentação do despacho recorrido que foi com base nos comprovados antecedentes criminais do recorrente que o Senhor Secretário para a Segurança indeferiu o seu pedido de autorização da residência.
Para os efeitos de concessão da autorização de residência temporária na modalidade de reagrupamento familiar, a lei exige que se deva atender, inter alia, antecedentes criminais – cf. artº 9º/2-1) da Lei nº 4/2003.
Ficou provado que, em 23JUL2012, o recorrente foi condenado na China pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 7 meses de prisão:
Trata-se indubitavelmente de antecedentes criminais.
Ora, uma coisa é não conseguir conhecer as razões de facto e de direito que levaram a Administração para o indeferimento da autorização de residência, outra coisa é não concordar que estas razões são boas ou suficientes para fundamentar o indeferimento.
O recorrente confundiu justamente estas dois tipos de vício, um formal e outro de mérito.
De qualquer maneira, por razões que vimos supra, mostrando-se fundamentado o acto recorrido, é de julgar totalmente improcedente o recurso.
Concluindo:
O acto administrativo considera-se fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o artº 480º/2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de reacção, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.
Resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 4 UC.
Registe e notifique.
RAEM, 26MAR2020
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Mai Man Ieng
851/2018-9