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Processo n.º 1187/2019
(Autos de recurso cível)

Data: 12/Março/2020

Descritores:
- Cumulação de pedidos
- Adequação da tramitação processual

SUMÁRIO
Apesar da diversidade de formas processuais, a cumulação de pedidos é autorizada quando as diferentes formas processuais não devem seguir uma tramitação manifestamente incompatível e se houver interesse relevante na apreciação no mesmo processo ou a apreciação conjunta for indispensável para a justa composição do litígio, incumbindo ao juiz adaptar a tramitação processual à apreciação dos vários pedidos.
No caso de cumulação do pedido de condenação dos Réus no pagamento de quantias peticionadas com o pedido de consignação em depósito, há todo o interesse em apreciar aqueles pedidos no mesmo processo, uma vez que a procedência de ambos depende da prova dos mesmos pressupostos fácticos.
Além de que as duas formas de processo, a saber, a forma comum ordinária e a forma especial de consignação em depósito, não seguem uma tramitação manifestamente incompatível, antes pelo contrário, têm uma tramitação processual semelhante, pelo que, preenchidos estão os requisitos do n.º 3 do artigo 65.º do CPC, deve o juiz fixar a tramitação que o processo deverá seguir, nos termos consentidos pelo n.º 4 da mesma norma.


O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo n.º 1187/2019
(Autos de recurso cível)

Data: 12/Março/2020

Recorrente:
- A (Autor)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
No âmbito da acção declarativa comum sob a forma de processo ordinária que corre termos no TJB, foi indeferido no despacho saneador o pedido de consignação em depósito deduzido pelo Autor A na sua petição inicial, com fundamento em que aquele pedido segue a forma de processo especial.
Inconformado, recorreu o Autor jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“I. Vem o presente recurso interposto do doutro despacho de fls. 155-161 e pelo qual o douto Tribunal a quo decidiu indeferir o pedido de consignação em deposito deduzido pelo ora Autor na sua petição inicial, com fundamento em que a consignação em depósito segue a forma de acção especial.
II. Em sede de Petição Inicial, o ora Recorrente requereu que fosse ordenado o depósito judicial do veículo BMW aqui em crise, nos termos do disposto no artigo 920º do CPC, ex vi artigo 65º, n.º 3 do mesmo diploma, requerendo também que fosse a 1ª Ré nomeada como depositária do mesmo.
III. De facto, o processo ordinário de declaração não se confunde com o processo especial de consignação em depósito, previsto nos artigos 920º a 928º do CPC. Este, dadas as suas especificidades, segue uma tramitação própria, definida nos referidos preceitos.
IV. Porém, salvo devido respeito, estão preenchidos todos os pressupostos estabelecidos no artigo 65º do CPC e, como tal, deveria ter sido admitida a coligação de tais pedidos.
V. Este preceito vem atenuar um dos principais inconvenientes da excessiva proliferação de processos especiais, que é a impossibilidade de cumular na mesma causa pretensões substancialmente conexas, duplicando-se processos que poderiam ser apreciados em simultâneo, com maior ganho para as partes e mesmo para o julgador que, desta forma, sempre consegue ter uma visão mais abrangente de toda a factualidade que possa estar em causa.
VI. Além disso, esta possibilidade que o legislador quis dar ao julgador, reflecte o princípio geral da adequação formal, previsto no artigo 7º do CPC, onde se refere que “quando a tramitação processual prevista na lei não se adeque às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente, ouvidas as partes, determinar a prática dos actos que melhor se ajustem aos fins do processo.”
VII. No caso dos presentes autos, o Recorrente pretende que lhe seja devolvida a quantia paga pelo veículo BMW, contra a devolução do mesmo à 1ª Ré, e tratando-se de um veículo automóvel, tornar-se-á demasiado oneroso para o Recorrente mantê-lo na sua posse durante a pendência do processo, e esta situação acaba mesmo por desvalorizá-lo, com eventual prejuízo para todas as partes em causa.
VIII. Já a 1ª Ré, sendo concessionária da marca automóvel BMW em Macau, terá todas as condições para receber em depósito o veículo e acautelar melhor a conservação do mesmo. Donde,
IX. O pedido deduzido de consignação em depósito tem uma estreita relação com o demais peticionado não fazendo sentido, salvo melhor opinião, a propositura de duas acções distintas para a apreciação dos mesmos.
X. Ademais que, não seguindo as acções uma “tramitação manifestamente incompatível” ficam preenchidos os requisitos do artigo 65º, n.º 3 do CPC para que seja aceite a cumulação, e
XI. Tendo também em conta o princípio da adequação formal, previsto no artigo 7º do CPC, parece-nos ser de concluir, salvo melhor opinião, que os pedidos podem, e devem, ser apreciados na mesma acção.
XII. Termos pois que o tribunal a quo deveria, salvo melhor opinião, ter aceitado a cumulação de pedidos requerida, por estarem preenchidos os requisitos do artigo 65º, n.º 3 do Código de Processo Civil, por não existir inconveniente grave em que as causas fossem instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente, e por ser essa a solução que melhor se coadunava com o princípio da adequação formal, previsto no artigo 7º do mesmo diploma, e por ser essa a solução que mais respeitaria o princípio da economia processual.
XIII. Ao não ter entendido dessa maneira, o tribunal a quo violou o disposto nos supra citados artigos 65º e 7º do Código de Processo Civil.
Nestes termos, e nos mais de Direito, requer-se a este Venerando Tribunal que revogue o despacho saneador proferido a 1 de Abril de 2019, fls. 155-161, e que ordene ao tribunal a quo que aceite a cumulação de pedidos requerida, nos termos do artigo 65º, n.º 3 do CPC, e que, nos termos do n.º 4 do mesmo preceito, adeque a tramitação processual ao circunstancialismo da causa.
Assim se fazendo a já costumada JUSTIÇA!”
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
Está em causa a seguinte decisão recorrida:
“關於原告提出的提存請求,考慮到提存本身屬特別訴訟程序,而本卷宗是以通常宣告訴訟程序進行,因而提存的請求應遵守《民事訴訟法典》第920條及續後的規定,由原告另行提出獨立的提存聲請,而不能在同一卷宗內一併作出處理,有見及此,現決定不受理由原告在本卷宗提出的提存聲請。”
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A questão que se coloca no presente recurso é saber se deve ser admitida a cumulação dos pedidos formulados pelo Autor na sua petição inicial.
Vejamos.
No caso dos autos, o Autor pede que sejam a 1ª Ré condenada a restituir àquele a quantia de HKD1.050.000,00 e o 2º Réu a pagar àquele HKD70.000,00. Mais afirma que o Autor deve devolver à 1ª Ré o veículo livre de quaisquer ónus ou encargo, pedindo ao Tribunal que se defira o depósito judicial do referido veículo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 920.º do Código de Processo Civil.
Dispõe o n.º 1 do artigo 391.º do CPC que “O autor pode formular cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem os obstáculos fixados no artigo 65.º”
De acordo com essa norma, é permitido ao autor formular contra o réu vários pedidos no mesmo processo, desde que seja verificada a compatibilidade substancial e processual.
Como observa Viriato de Lima1, “compatibilidade substancial significa que os efeitos materiais dos pedidos têm que ser conciliáveis”, citando como exemplo de incompatibilidade o caso de se pedir, ao mesmo tempo, a declaração de nulidade de um contrato e um pedido que pressupunha a validade do mesmo.
No caso vertente, o Autor pede a condenação dos Réus no pagamento de quantia certa com fundamento na resolução do contrato e, ao mesmo tempo, a consignação em depósito do bem em consequência daquela resolução.
A nosso ver, não existe aqui qualquer incompatibilidade substancial, sendo admissível, portanto, a formulação daqueles dois pedidos contra os Réus.
A questão fulcral reside em saber se está verificada a compatibilidade processual a que se alude o artigo 65.º do CPC.
Estatui o artigo 65.º do CPC o seguinte:
“1. A coligação não é admissível quando o tribunal for incompetente para apreciar algum dos pedidos.
     2. A coligação não é também admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes, salvo se a diferença provier do diverso valor dos pedidos.
     3. Quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes que não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação se nela houver interesse relevante ou a apreciação conjunta das pretensões for indispensável para a justa composição do litígio.
     4. Incumbe ao juiz, na situação prevista no número anterior, adaptar a tramitação processual à cumulação autorizada.
     5. Se o juiz, oficiosamente ou a requerimento de algum dos réus, entender que, não obstante a verificação dos requisitos da coligação, há inconveniente grave em que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas conjuntamente, ordena, em despacho fundamentado, a notificação do autor para indicar, no prazo fixado, o pedido ou os pedidos a apreciar no processo, sob pena de, não o fazendo, o réu ser absolvido da instância quanto a todos eles; se houver pluralidade de autores ou for feita a indicação, aplica-se o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 66.º
     6. No caso previsto no número anterior, se as novas acções forem propostas dentro de 30 dias a contar do trânsito em julgado do despacho que ordenou a separação, os efeitos civis da proposição da acção e da citação do réu retrotraem-se à data em que estes factos se produziram no primeiro processo.” – sublinhado nosso

Refere Viriato de Lima, na mesma obra citada2: “Apesar da diversidade de formas processuais, a cumulação de pedidos é autorizada nos casos do artigo 65.º, quando: as diferentes formas processuais não devem seguir uma tramitação manifestamente incompatível e se houver interesse relevante na apreciação no mesmo processo ou a apreciação conjunta for indispensável para a justa composição do litígio, incumbindo ao juiz adaptar a tramitação processual à apreciação dos vários pedidos…”
Em boa verdade, trata-se duma manifestação do princípio da adequação formal prevista no artigo 7.º do CPC, no sentido de que preenchidos determinados requisitos legais, não obstante os pedidos cumulados seguirem formas de processo diferentes, permite ao juiz adoptar uma solução mais favorável ao andamento regular e célere dos autos com respeito pelo princípio da economia processual.
No caso presente, estamos perante uma cumulação do pedido de condenação dos Réus no pagamento de quantias peticionadas com o pedido de consignação em depósito, somos a entender que há todo o interesse em apreciar aqueles pedidos no mesmo processo, uma vez que a procedência de ambos depende da prova dos mesmos pressupostos fácticos (da resolução do contrato).
Por outro lado, salvo o devido respeito por melhor opinião, não vislumbramos incompatibilidade manifesta quanto à tramitação processual das duas formas de processo.
É bom de ver que na forma de processo especial da consignação em depósito (artigo 920.º e seguintes do CPC), após apresentada a petição inicial, o requerido é citado para contestar no prazo de 30 dias, podendo este, dentro do prazo de contestação, impugnar o depósito com fundamento em ser inexacto o motivo invocado pelo requerente, ser maior ou diversa a quantia ou coisa devida, ou ainda ter o requerido qualquer outro fundamento legítimo para recusar o pagamento (artigos 921.º a 923.º do CPC). Após o que se seguem os termos do processo sumário ou ordinário de declaração, conforme o fundamento de impugnação e, a final, julgar procedente ou improcedente a impugnação (artigo 924.º do CPC).
Sendo assim, é de verificar que as duas formas de processo, a saber, a forma comum ordinária e a forma especial de consignação em depósito, não seguem uma tramitação manifestamente incompatível, antes pelo contrário, têm uma tramitação processual semelhante, pelo que, preenchidos estão os requisitos do n.º 3 do artigo 65.º do CPC, deve o juiz fixar a tramitação que o processo deverá seguir, nos termos consentidos pelo n.º 4 da mesma norma.
Aqui chegados, merece provimento o recurso, sendo revogado o despacho proferido no saneador que indeferiu o pedido de consignação em depósito formulado pelo Autor, e fica admitida a cumulação dos pedidos, cabendo ao Tribunal recorrido, caso outro obstáculo não exista, adaptar a tramitação processual à cumulação autorizada.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente A, revogando a decisão recorrida e, em consequência, autorizar a cumulação dos pedidos, devendo o Tribunal recorrido adaptar a tramitação processual à cumulação autorizada.
Custas pelo vencido, a final.
Registe e notifique.
***
 RAEM, 12 de Março de 2020
 Tong Hio Fong
 Lai Kin Hong
 Fong Man Chong
1 Manual de Direito Processual Civil, 3ª edição, CFJJ, 2018, pág. 143
2 Manual de Direito Processual Civil, 3ª edição, CFJJ, 2018, pág. 143

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Recurso Cível 1187/2019 Página 2