Processo n.º 1175/2019
(Autos de recurso jurisdicional)
Data: 2/Abril/2020
Descritores:
- Conhecimento de mérito no saneador
- Improcedência do pedido face aos factos alegados pelo autor
- Pedido de indemnização
SUMÁRIO
O disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 429.º do Código de Processo Civil prevê a possibilidade de o juiz conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial do pedido ou dos pedidos deduzidos pelo autor.
Se no momento em que deve ser proferido o despacho saneador chegar à conclusão de que, face à matéria alegada pelo autor, a acção terá mesmo que improceder, não há razão para ordenar o prosseguimento dos autos e a consequente selecção da matéria de facto, sob pena de prática de acto inútil.
Atentos os factos alegados pelo autor, não se verificando que a ré, enquanto terceiro na relação estabelecida entre o promitente-comprador, ora autor, e a promitente-vendedora no contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma, tenha actuado culposamente e com intenção de prejudicar aquele promitente-comprador, nem que tenha agido com violação do dever de boa fé para com o mesmo, e muito menos actuado com abuso de direito, andou bem a sentença recorrida ao julgar improcedente o pedido de indemnização formulado por aquele autor.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo n.º 1175/2019
(Autos de recurso jurisdicional)
Data: 2/Abril/2020
Recorrentes:
- A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K e L
Recorrida:
- Região Administrativa Especial de Macau
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K e L, com sinais nos autos (doravante designadas por “autoras” ou “recorrentes”), intentaram acção de responsabilidade civil por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública contra a Região Administrativa Especial de Macau (doravante designada por “ré” ou “recorrida”), pedindo a condenação desta no pagamento de indemnizações correspondentes aos prejuízos sofridos pelas mesmas por não terem podido celebrar os respectivos contratos definitivos de compra e venda com a “M”, por culpa da ré.
Foi proferido, oportunamente, despacho saneador-sentença, que julgou improcedente a acção e absolveu a ré do pedido.
Inconformadas, recorreram as autoras jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
“I. Por força do disposto nos artigos 561º a 580º do CPC ex vi artigo 99º do CPAC as sentenças proferidas nas acções administrativas têm, sob pena de nulidade, de ser fundamentadas de facto e de direito.
II. A respeito de tal dever de fundamentação tem sido entendimento consistente e incontestada pela doutrina e jurisprudência de há largos anos que (…) Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito. (…)
III. No saneador-sentença proferido pelo Tribunal a quo ficou consignado que: O Tribunal considera que a decisão conscienciosa para o caso concreto depende só da solução da questão meramente jurídica, que não se considera impedida pelo conhecimento prévio das excepção de prescrição, motivo pelo qual despicienda a precisão do apuramento fáctico, passa a conhecer imediatamente dos pedidos das Autoras, como se seguem.
IV. Da simples leitura da sentença resulta que em lado nenhum se mencionam os factos que se consideram provados e não provados. Na verdade, da leitura da sentença recorrida o que se verifica é que o Tribunal a quo, em vez de julgar a matéria de facto que lhe foi trazida pelo labor das partes, empreendeu um mero exercício teórico e abstracto de enunciação de posições doutrinais e jurisprudenciais, desenvolvidas por referência a cenários hipotéticos por si construídos, suposições e incertezas.
V. Assim, no caso vertente, verifica-se que a sentença é totalmente omissa na fundamentação da matéria de facto, tornando-se inclusivamente impossível para as Recorrentes darem cumprimento ao ónus de indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados pelo Tribunal a que e os concretos meios de prova que impunham uma decisão diversa sobre os mesmos factos, tal como o impõe o artigo 599º do CPC, para efeitos de recurso da matéria de facto.
VI. Consequentemente, com o respeito devido, não pode deixar este Tribunal de reconhecer que a sentença recorrida se encontra irremediavelmente ferida de nulidade por manifesta, expressa e evidente total falta de fundamentação da matéria de facto, nos termos do art. 571º, n.º 1, b) do CPC.
VII. Da análise dos fundamentos da sentença pode-se verifica-se que o pensamento do Tribunal a quo se encontra eivado de diversos vícios de raciocínio, que desaguam em erros de julgamento.
VIII. A este respeito o Tribunal a quo toma como pressuposto – errado – na sua decisão de que do contrato de concessão e dos actos inerentes à sua execução não resulta nenhum direito subjectivo ou interesse legalmente protegido das Recorrentes perante a RAEM.
IX. Ora, nos termos da Lei de Terras é à RAEM que compete a gestão e disposição dos terrenos do Estado na RAEM, tendo sido no uso do seu poder público ou no exercício da função administrativa que a RAEM por contrato de concessão por arrendamento atribuiu à M o lote de terreno em discussão nos presentes autos.
X. Através de tal concessão, a M passou a ser titular dos direitos de construir, transformar e manter no referido terreno uma obra para os fins e com os limites previstos no contrato de concessão, incluindo o direito de transmitir e prometer transmitir o direito de propriedade sobre as construções erigidas, ou a erigir, sobre o terreno (designadamente no regime de propriedade horizontal) conforme previsto no n.º 1 e 2 do Artigo 42º da Lei de Terras.
XI. Assim, é incontestável que o direito a vender as fracções do empreendimento a ser construído sobre o terreno concessionado à M era um direito subjectivo da M, a par do direito de aproveitamento do terreno, resultante do contrato de concessão.
XII. Assim, se a M detinha perante a RAEM um direito ao aproveitamento do terreno que lhe fora concedido, as ora Recorrente detinham prante a M um direito à celebração do contrato definitivo.
XIII. Todavia, a posição jurídica das ora Recorrentes não se esgotava apenas perante a M, podendo tal direito ser legitimamente oposto a outros sujeitos que pudessem perturbar o seu exercício e, em particular, perante a RAEM.
XIV. Nos termos do artigo 4º do Código do Procedimento Administrativo, as posições jurídicas subjectivas dos particulares perante a Administração dividem-se entre direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos.
XV. Apesar das Recorrentes não terem perante a RAEM um direito subjectivo à celebração do contrato, tinham um interesse legalmente protegido a que a RAEM não actuasse de modo a prejudicar a celebração desse contrato.
XVI. Existem a favor das Recorrentes um conjunto de normas que, embora destinadas a regular a actuação da RAEM, visavam a proteger a sua posição jurídica das Recorrentes que, no caso concreto, foram violadas.
XVII. Mais concretamente os princípios da legalidade e da prossecução do interesse público, previstos nos artigos 3º, n.º 1, e 4º do Código do Procedimento Administração, e o princípio da boa fé previsto no artigo 8º do Código do Procedimento Administrativo.
XVIII. No caso concreto, as Recorrentes encontravam.se numa situação de facto perante a Administração em que se encontravam preenchidos todos os pressupostos da lesão da sua confiança, verificando-se a ilicitude da conduta da Administração para efeitos de responsabilidade civil, nos termos sustentados pela lei, doutrina e jurisprudência.
XIX. Acresce que, o entendimento actual da responsabilidade civil da Administração vai no sentido da sua extensão a todas as formas e fases da actividade administrativa que provoquem uma lesão na esfera jurídica do particular que este não deva suportar.
XX. O que, de resto, está em absoluta consonância com o disposto no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril, ao indicar que “a ilicitude consiste na violação do direito de outrem ou de uma disposição legal destinada a proteger os seus interesses” e ao determinar que “Serão também considerados ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração”.
XXI. É assim evidente que, ainda que não se tendo relacionado, no estrito plano contratual, directa e imediatamente com as ora Recorrentes a actuação da RAEM não corresponde à atuação privada de um terceiro totalmente alheia aos contratos promessa celebrados.
XXII. A ilegalidade da actuação da RAEM projectou-se não somente sobre a M, mas também sobre as ora Recorrentes, afectando a sua confiança legítima e os seus interesses, causando-lhes avultados prejuízos.
XXIII. Por tudo isto, em função da sua atuação fora do Direito, causadora de dano a terceiros por si conhecidos (e que não podia sequer razoavelmente ignorar), deve a RAEM ser condenada a restabelecer a situação hipotética dos ora recorrentes, indemnizando-os pelos prejuízos sofridos, detalhados na petição inicial.
XXIV. Ao assim não entender, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 3º, 4º, 7º e 8º do Código do Procedimento Administrativo e dos artigos 2º e 7º do Decreto-Lei n.º 28/91/M, de 22 de Abril.
XXV. Ao supra referido não se opõe, como pretende fazer crer o Tribunal a quo, o facto de os contratos-promessa não terem eficácia real.
XXVI. Conforme resulta do artigo 7º do Código de Registo Predial, esse registo apenas confere uma presunção júris tantum de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, podendo tal presunção ser ilidida mediante prova em contrário, nos termos dos artigos 340º e 343º, n.º 2 do Código Civil.
XXVII. De acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça Português n.º 3/99, sobre o conceito de terceiros para efeitos de registo “terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”.
XXVIII. Ora, no caso em discussão, não está em causa o direito à aquisição de um bem contra uma pretensão aquisitiva posterior da RAEM, o que quer dizer que, a questão da eficácia real (oponibilidade ou inoponibilidade) dos contratos-promessa não se coloca nos presentes autos.
XXIX. O que está efectivamente em causa nos presentes autos, é apenas o facto de a RAEM, pelos seus actos e omissões ilegais, ter impedido as Recorrentes e a M de cumprirem os contratos prometidos, pelo que a RAEM, no caso dos autos, não é um terceiro, nos termos propugnados pelo artigo 5º do Código de Registo Predial, como, com o devido respeito, erradamente, o Tribunal a quo entendeu.
XXX. Por outro lado, a RAEM por iniciativa própria exigiu, como acima se referiu, ter conhecimento de tais contratos e tais contratos foram inclusivamente registados, pelo que, seguindo a doutrina do Acórdão Uniformizador acima citado a publicidade registral era absolutamente inútil para a RAEM que já tinha conhecimento dos referidos contratos-promessa, que aliás publicitou no seu sitio da internet.
XXXI. Deste modo, tendo os actos e omissões da RAEM, porque ilegais e violadores dos direitos e interesses legalmente protegidos das ora Recorrentes, impedido que os contratos definitivos fossem celebrados, deve então esta obviamente ser condenada a indemnizar o dano que provocou às Recorrentes, que não sejam imputáveis à M.
XXXII. O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao afirmar na sentença, que a RAEM era um terceiro alheio aos contratos-promessa celebrados, por estes não serem dotados de eficácia real e por nunca neles ter intervindo.
XXXIII. Um outro vicio de raciocínio de que enferma a sentença do Tribunal a quo é equiparação da RAEM a um sujeito de direito privado.
XXXIV. Sem prejuízo, ainda que assim não se entendesse, e se equiparasse a RAEM a um sujeito privado, a verdade é que face à factualidade relatada na Petição Inicial, mas desatendida pelo Tribunal a quo, não haveria dúvidas em concluir pela responsabilização da RAEM dentro desse mesmo quadro excepcional.
XXXV. Mas a verdade é que de facto a RAEM não é uma entidade privada, mas antes uma entidade pública, e como tal titular de uma responsabilidade acrescida pois como veremos tem obrigação de actuar de acordo com a Lei e o Direito, estabelecendo através da sua actuação modelos de conduta para os particulares e, isso é, a nosso ver, quanto deveria bastar para evidenciar o erro de julgamento em que incorre o Tribunal a quo na sua decisão ao equiparar a RAEM a um sujeito privado.
XXXVI. A RAEM, na posição que assumiu no caso dos autos, de concedente e de autoridade (como o Tribunal reconhece), não actua no âmbito do direito privado.
XXXVII. A Administração encontra-se num plano de autoridade, razão pela qual, não goza da liberdade de fazer o que bem entender dentro dos limites da lei ou do contrato – como sucede no direito privado.
XXXVIII. A Administração rege-se pelo princípio da legalidade, que tal como resulta do disposto no artigo 3º, n.º 1 do Código do Procedimento Administração, se caracteriza por uma dupla vertente: (i) a preferência de lei, entendida no sentido de que os actos jurídicos ou materiais praticados pela Administração têm de se conformar com as determinações legais; (ii) a reserva ou precedência de lei, entendida no sentido de que a Administração não pode actuar sem a pré-existência de uma norma prévia habilitante suficientemente densificada.
XXXIX. Torna-se, pois, evidente que não é a autonomia privada que rege a atuação administrativa e da RAEM.
XL. As posições jurídicas dos administrados que merecem tutela extravasam em muito o campo dos direitos subjetivos e alarga-se ao domínio dos interesses legalmente protegidos, com reflexos evidentes no plano da responsabilidade civil extracontratual da Administração.
XLI. Não se pode pois acompanhar o entendimento do Tribunal a quo, porque destituído de qualquer fundamento, segundo o qual a circunstância de a RAEM ser um sujeito de direito público não lhe traz qualquer responsabilidade acrescida em matéria de ressarcimento de danos que a sua actuação provoque.
XLII. O (des)acerto do entendimento do Tribunal a quo é desde logo infirmado pelo facto de o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado não se confundir com aquele que resulta do Código Civil, estando inclusivamente regulado em diploma próprio, sendo por isso totalmente distinto.
XLIII. Os fundamentos da responsabilidade civil da administração não se confundem com os fundamentos da responsabilidade de direito civil.
XLIV. Também o artigo 4º do Código do Procedimento Administrativo não dá espaço para quaisquer equívocos, mostrando que a RAEM, estando sujeita ao respeito pelas posições jurídicas subjectivas dos particulares, não se posiciona perante eles como um qualquer sujeito de direito privado.
XLV. A partir do momento em que a RAEM criou as condições para a celebração dos contratos promessa celebrados pelas Recorrente e deles tomou por sua própria iniciativa e imposição conhecimento, ela tem que obedecer ao princípio da protecção das posições jurídicas subjectivas das ora Recorrentes, em conformidade com o disposto no artigo 4º do Código do Procedimento Administrativo.
XLVI. Sintomático do que se vem expondo, e como sinal inequívoco do reconhecimento dessa responsabilidade acrescida da Administração, são as disposições especiais (artigo 12º) previstas na Lei n.º 8/2019 (Regime jurídico de habitação para alojamento temporário e de habitação para troca no âmbito da renovação urbana).
XLVII. Ao entender em sentido divergente, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nesse artigo 4º do Código do Procedimento Administrativo.
XLVIII. Exactamente pelas mesmas razões acabadas de expor, falece liminarmente o entendimento do Tribunal a quo segundo o qual a responsabilidade civil por culpa do serviço se encontra afastada pela existência de uma relação creditícia emergente dos contratos promessa, perante a qual a RAEM seria um mero terceiro.
XLIX. Ora, como acabou de se demonstrar, a RAEM não pode ser equiparada a um sujeito privado para este efeito, nomeadamente pelos diferentes fundamentos que determinam a responsabilidade da Administração.
L. Pelo que, falece assim o fundamento esgrimido pelo tribunal para afastar a aplicação ao caso concreto da tese da culpa de serviço ou da responsabilidade pelo funcionamento anormal do serviço, nos termos expostos na Petição Inicial.
LI. Pode ler-se na sentença recorrida que “a actuação alegadamente ilícita da Ré era simplesmente limitada ao exercício dos direitos conferidos pelo seu estatuto de concedente (…) ou dos poderes autoritários inerentes ao respectivo procedimento administrativo na sua relação com a concessionária”.
LII. Ora, como demonstrado na petição inicial, a RAEM não actuou de modo algum no exercício de direitos conferidos pelo seu estatuto de concedente ou no âmbito dos poderes autoritários inerentes ao respectivo procedimento administrativo.
LIII. Conforme resulta dos factos alegados na petição inicial – a que o Tribunal a quo desatendeu –, a RAEM aprovou o projecto de arquitectura mas sujeitou-o à apresentação de um estudo de impacto ambiental.
LIV. Sucede que essa exigência e esse estudo (i) não estavam legalmente ou regulamentarmente previstos, (ii) não eram legalmente ou regulamentarmente exigíveis e (iii) não tinham um conteúdo legalmente ou regulamentarmente definido.
LV. Ou seja, a RAEM actuou sem base legal ou regulamentar e para além da base legal e regulamentar existente, o que significa que, a RAEM incorreu em violação do princípio da legalidade acima enunciado, nas vertentes de precedência e de preferência de lei.
LVI. Ora, como também foi devida e desenvolvidamente alegado na Petição Inicial, não existia qualquer acto normativo em vigor na RAEM à data que regulamentasse os chamados estudos de impacto ambiental, bem como as entidades responsáveis pela análise das suas conclusões e pela autorização e licenciamento de obras ou trabalhos previstos.
LVII. A Lei de Terras, o Código do Procedimento Administrativo ou qualquer outra norma legal são omissas na atribuição de direitos à RAEM de estabelecer exigências ad hoc, não previstas na lei, como foi o caso da exigência de apresentação de um estudo de impacto ambiental ou das exigências sucessivas que foram sendo formuladas quanto ao seu conteúdo.
LVIII. É, pois, evidente que (ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo), a RAEM não actuou no exercício de direitos conferidos pelo estatuto de concedente tendo actuado fora dos poderes autoritários inerentes ao respectivo procedimento administrativo.
LIX. A actuação da RAEM a este propósito teve, assim, lugar num quadro extra-jurídico, alegal, fora dos quadros do princípio da legalidade, seja na vertente de reserva de lei, seja na vertente de preferência de lei.
LX. Ou seja, a RAEM impediu, ilegalmente, a M de exercer o direito subjectivo de aproveitamento do terreno concessão que expressamente lhe tinha sido conferido, logo no aditamento ao contrato de concessão de 2006 (conforme alegado na petição inicial).
LXI. O Tribunal a quo incorreu, pois, em erro de julgamento sobre a (in)validade da actuação da RAEM.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Ex.as doutamente suprirão, requer-se a V. Exas que o presente recurso seja julgado procedente, por provado, e em consequência:
a) Ser declarada nula a sentença proferida pelo Tribunal a quo e, em consequência, serem os autos remetidos ao Tribunal a quo para julgamento da matéria de facto e fundamentação da sentença. Caso assim não se entenda,
b) A sentença proferida pelo Tribunal a quo ser revogada e ser substituída por Acórdão que julgue procedente a acção proposta.”
*
Contra-alegou a ré, pugnando pela negação de provimento ao recurso nos termos que se seguem:
“A. 對於清理批示 — 判決而言,由於無需進行取證即可審理案件的實體問題,亦即案件哪些事實是否獲證實已不再重要,法院無需作出抽取及證實哪些事實的步驟便可直接將所有訴因事實作出法律定性解決實體問題,換言之,透過法院對案件實體問題進行審理及說明理由的同時,正常及客觀受意人能一併知悉法院決定的事實部分依據。為此,清理批示 — 判決無需列明事實依據部分。
B. 本案中,被上訴判決明確指出,即使按照上訴人主張的事實版本,原審法院只能適用權利濫用制度以判定上訴人的請求是否成立,然而,按照上訴人所主張的訴因事實進行法律定性,並不符合權利濫用的前提條件因而裁定上訴人的損害賠償請求明顯不成立。換言之,被上訴判決所解決的純粹是法律問題,無需進行事實篩選或證明即可為之。
C. 為此,被上訴判決即使沒有明確列明所謂的既證或獲證明的事實,亦不導致判決因欠缺說明理由而無效。
D. 另一方面,針對合法非合同民事責任方面,原審法院乃是經過先前針對不法行為非合同民事責任的說明理由,解釋了為何上訴人所主張的債權因不符合權利濫用制度而不能要求被上訴人承擔責任,基於適用同樣的法律理據下,上訴人所主張的合法合同民事責任亦因此亦不能成立。
E. 同樣地,針對此部分被上訴判決亦沒有出現欠缺說明理由。
F. 按照傳統的債權相對效力理論,不論是《民法典》第783或792條規定的代償利益還是第326條規定的權利濫用,均不適用於本案情況: 對於前者,承批人沒有從被告中獲得任何利益以致上訴人可代替承批人要求被告作出給付。
G. 對於後者,按照《民法典》第326條規定的權利濫用的條件,首先,被上訴人並沒有行使任何主觀權利,而是有關行政當局,按照法律賦予其職責行使職權下作出一系列行政活動(包括要求提供及審批有關環評報告及相關的建築工程計劃),亦無針對上訴人作出明顯違反善意、善良風俗又或所謂的權利所具之社會或經濟目的而產生之限制的行為。
H. 而即使依據債權對外效力理論,被上訴人根本不知悉存在上訴人與承批人之間的債權債務關係,事實上,承批人僅提供每月的樓花銷售總量數目,並無具體及明確指出上訴人的身份資料、買賣價金、預約買賣標的物(即相應的單位識別)以及上訴人已支付的訂金等資料。
I. 再者,按照起訴狀所主張,上訴人並沒有陳述被上訴人如何存在故意或蓄意損害上訴人債權的具體事實,此外,不論環保局還是土地工務運輸局,就研究分析及審批環評告和有關建築工程計劃,以及發出有關的工程准照,乃是基於與承批人之間的土地批給合同關係,應其所提出的建築工程計劃申請而履行職責,換言之,根本不存在被上訴人主動地故意損害上訴人所聲稱的債權,更何況,上訴人所訂立的預約買賣合同乃後於承批人提交有關環評報告、且更後於行政當局對有關環評報告進行審查,可見,從邏輯及常理上,行政當局根本不能預知上訴人的存在,更不可能“預先”地存在故意或蓄意損害彼等債權的意圖。
J. 可見,不論基於傳統債權相對性論還是較激進的債權對外效力論,上訴人所主張的訴因根本不能使被上訴人承擔前者與承批人之間的合同關係而遭受的損害,要求作為第三人的被上訴人承擔。
K. 綜上所述,上訴人主張原審法院存在法律適用錯誤亦不能成立。
綜上所述,請求尊敬的法官 閣下裁定上訴理由明顯不成立,駁回上訴。”
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
Está em causa a seguinte decisão:
“I. Relatório
Autoras A (名瑞控股有限公司), B (冠熙有限公司), C, D (和暉有限公司), E (譽豐有限公司), F, G (超宏國際有限公司), H (易域有限公司), I, J (保和有限公司), K (百源控股有限公司) e L, melhor id. nos autos,
vêm intentar a presente
Acção para Efectivação da Responsabilidade Civil Extracontratual
Contra
Ré Região Administrativa Especial de Macau
com os fundamentos constantes da p.i. de fls. 2 a 55 dos autos,
Concluem pedindo que:
- seja a Ré condenada a pagar às Autoras as quantias indemnizatórias, como correspondentes à perda dos lucros derivados das potenciais revendas das fracções autónomas prometidas comprar, ou ao dobro do sinal que foram pago, a que acrescem as despesas incorridas a título de pagamento dos impostos de selo e das despesas registais, acrescidas de juros legais, vencidos e vincendos até o seu efectivo pagamento, quantias essas se discriminam pela seguinte forma:
A (名瑞控股有限公司),
-MOP$2,920,180.00, ou subsidiariamente, MOP$8,698,704.00, ou subsidiariamente, MOP$2,097,302.00;
B (冠熙有限公司),
-MOP$2,717,211.00, ou subsidiariamente, MOP$6,477,588.00, ou subsidiariamente, MOP$1,188,842.00;
C,
-MOP$2,721,981.00, ou subsidiariamente, MOP$8,655,381.00, ou subsidiariamente, MOP$2,206,688.00;
D (和暉有限公司),
-MOP$2,890,207.00, ou subsidiariamente, MOP$8,668,731.00, ou subsidiariamente, MOP$2,102,864.00;
E (譽豐有限公司),
-MOP$2,677,247.00, ou subsidiariamente, MOP$6,437,624.00, ou subsidiariamente, MOP$1,196,258.00;
F,
-MOP$2,692,008.00, ou subsidiariamente, MOP$8,625,408.00, ou subsidiariamente, MOP$2,212,250.00;
G (超宏國際有限公司),
-MOP$2,860,234.00, ou subsidiariamente, MOP$8,638,758.00, ou subsidiariamente, MOP$2,108,426.00;
H (易域有限公司),
-MOP$2,637,283.00, ou subsidiariamente, MOP$6,397,660.00, ou subsidiariamente, MOP$1,203,674.00;
I,
-MOP$2,662,035.00, ou subsidiariamente, MOP$8,595,435.00, ou subsidiariamente, MOP$2,217,812.00;
J (保和有限公司),
-MOP$2,830,261.00, ou subsidiariamente, MOP$8,608,785.00, ou subsidiariamente, MOP$2,113,988.00;
K (百源控股有限公司),
-MOP$2,597,319.00, ou subsidiariamente, MOP$6,357,696.00, ou subsidiariamente, MOP$1,211,090.00; e
L,
-MOP$2,632,062.00, ou subsidiariamente, MOP$8,565,462.00, ou subsidiariamente, MOP$2,223,374.00.
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A Ré contesta a acção com os fundamentos de fls. 1393 a 1425 dos autos, concluiu pedindo que sejam julgadas procedentes as excepções de prescrição e de manifesta improcedência do pedido com fundamento na irresponsabilidade de terceiro por lesão do direito de crédito, ou que seja improcedente a acção e absolvida a Ré dos pedidos.
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As Autoras apresentam a sua réplica com os fundamentos de fls. 1473 a 1479v dos autos.
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II. Saneamento
Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade “ad causam”.
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, excepções dilatórias, ou questões prévias que obstem a apreciação “de meritis”.
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O Tribunal considera que a decisão conscienciosa para o caso concreto depende só da solução da questão meramente jurídica, que não se considera impedida pelo conhecimento prévio da excepção de prescrição, motivo pelo qual despicienda a precisão do apuramento fáctico, passa a conhecer imediatamente dos pedidos das Autoras, como se seguem.
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III. Fundamentos:
Pedem as Autoras que sejam ressarcidas dos prejuízos resultantes da impossibilidade do cumprimento dos contratos-promessa para a aquisição das fracções autónomas do edifício denominado “N” em construção, alegadamente imputável à actuação da Ré através dos seus serviços, com fundamento na sua responsabilidade por acto ilícito pela culpa do serviço.
Pese embora assim ser a relação jurídica material configurada pelas Autoras com sua ênfase na actuação ilícita, culposa e lesiva da Ré, considero importante antes saber melhor que tipo do direito subjectivo que se considerou lesado, e determinar depois, se a sua violação, ainda que fosse inteiramente comprovada, é ou não susceptível de provocar os efeitos indemnizatórios naquele alcance almejado, no sentido de fazer responsabilizar a Ré pelas lesões provocadas.
1. Logo à partida, as Autoras alegam ser promitentes-compradoras nos contratos-promessa celebrados com a Sociedade de Importação e Exportação M Limitada (doravante designada por “M”), em que aquelas declararam prometer adquirir as fracções autónomas do edifício em construção, situado no terreno de que esta era concessionária.
Mais alegam que foram liquidados os impostos do selo e procedidos aos registos da inscrição da aquisição na Conservatória do Registo Predial.
Além do mais, anos depois da celebração dos contratos-promessa, a supra-referida concessão do terreno veio a ser declarada caduca pelo despacho de Chefe do Executivo da RAEM de 26 de Janeiro de 2016 e que a construção projectada nunca chegou a ser executada.
Face a esse enquadramento fáctico suposto, parece-nos ser patente que as Autoras nunca adquiriram o direito de propriedade das ditas fracções autónomas em construção, por consequência, não se podem arrogar titularidade de qualquer tipo de direito real em relação às mesmas fracções, uma vez que os referidos contratos-promessa carecem da eficácia real que as partes poderiam atribuir mediante declaração expressa e inscrição no registo, de acordo com o preceituado no art.º 407.º do CCM.
Não sendo com eficácia real, revestem-se os contratos em causa de uma natureza meramente obrigacional, que apenas confiram aos seus outorgantes o direito de crédito ou obrigacional.
Tal como parece também ser afirmado pelas próprias Autoras, o que está em causa são os direitos de crédito resultantes dos contratos-promessa celebrados por estas, que se consideram frustrados pela actuação da Ré, nos termos alegados nos artigos 309.º a 328.º da petição inicial.
Além do mais, as Autoras parecem ter reconhecido que a Ré é o terceiro estranho às relações creditícias entre aquelas e M, quando afirmaram ser manifesta a sua “ingerência” nas respectivas relações.
2. A questão passa por saber se a Ré pode ser responsabilizada como terceiro pela alegada “ingerência” nos direitos de crédito reclamados pelas Autoras.
2.1. Como se sabe, tradicionalmente se defendia a tese da relatividade do direito de crédito, não seria de reconhecer ao crédito um efeito externo que permitisse a sua protecção em relação a terceiros e a responsabilização destes pela lesão do crédito.
Pois, do que se trata é do direito de crédito ou obrigacional que vale apenas inter partes e que só pode ser ofendido pelo devedor, o qual se contrapõe ao direito absoluto de propriedade, ou erga omnes, que é susceptível de lesão por qualquer pessoa.
Nesta linha de consideração, a aceitação dos efeitos externos da obrigação estaria a atribuir um carácter absoluto à relação creditícia, transformando as obrigações em direitos absolutos equiparáveis aos direitos reais, contrariando o disposto do art.º 1230.º do CCM, que considera ter natureza obrigacional e não real todas as restrições ao direito de propriedade.
O mesmo se deve concluir perante o disposto do art.º 400.º, n.º 2 do CCM, “em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos especialmente previstos na lei”.
Em consonância com o disposto da supradita norma, os efeitos externos do crédito apenas surgem indirecta e excepcionalmente, por exemplo, quando se atribui a eficácia real ao contrato-promessa e ao pacto de preferência (art.º s 407.º e 415.º do CCM) e quando se prevê que se converta a obrigação natural de alimentos do lesado, ex lege, em obrigação civil de alimentos do lesante em favor do alimentado pelo lesado que deixa de os poder prestar, nos termos do art.º 488.º, n.º 3 do CCM, ou ainda mais, nos casos da verificação de commodum representationis nos termos do art.º 783.º do CCM.
Resumindo, a responsabilização de terceiro por lesão do crédito não é regra, mas sim excepção quando a lei especialmente o prevê.
2.2 Por outro lado, os efeitos externos da obrigação defender-se-iam apenas ao nível de jure constituendo, segundo a qual se deveria admitir que os direitos de crédito deveriam ser respeitados por terceiros sob pena de responsabilidade, desde que estejamos perante uma situação em que o terceiro conhece a relação especial entre o credor e o devedor e se trate de actuação especialmente censurável, e em particular que esse efeito de responsabilização devem ser assegurados em caso de ataque directo ao crédito e em caso de ataque a um elemento do substrato do crédito, e que se deveria aceitar sempre que se estivesse perante situações de abuso de direito.
Mesmo para os mais influentes oponentes à tese clássica da relatividade do direito de crédito, como por exemplo, o Professor PESSOA JORGE, que entende que “nada impede que a prestação, como um bem a que o credor tem direito, se torne impossível por acto de terceiro, que, dessa forma, lesa um direito subjective alheio, o direito de crédito”, diz no entanto que “É necessário, no entanto, que a sua actuação seja dolosa, ou o terceiro saiba que a obrigação existe e que vai causar um prejuízo ao credor, por impedir que o devedor cumpra, não parecendo, contudo, suficiente uma actuação meramente negligente”.
E por sua vez, no entendimento do Professor MENEZES CORDEIRO, a responsabilidade de terceiro por lesão do crédito, colocar-se-ia em sede do que chama de oponibilidade média. Nesta se colocariam os casos de acção de terceiro que provocasse a morte do devedor, que se traduzisse na destruição de documentos ou de outros elementos instrumentais destinados a atestar ou garantir os créditos e o problema conhecido como o da responsabilidade do terceiro-cúmplice (no incumprimento).
Como é fácil de ver, mesmo para as posições mais radicais, a tese dos efeitos externos da obrigação não se admitiria sem reserva, ou seja, não é qualquer actuação do terceiro releva para a sua responsabilização perante o credor lesado – é sempre necessário que a sua actuação seja especialmente censurável e idónea a trazer uma consequência chocante e insuportável pela exigência de boa-fé e de bom costume, como sucede nos casos de abuso de direito, ou do terceiro-cúmplice no incumprimento.
2.3 Mais ainda, consideramos necessário ter em conta que no elenco das jurisprudências conhecidas, é sempre escassa aquela que aceitou sem reserva a tese da eficácia externa das obrigações.
Assim como na RAEM, a posição que tem sido seguida é a de eficácia relativa da obrigação mitigada com o reconhecimento limitado da sua eficácia externa no caso de abuso de direito pelo terceiro, pela jurisprudência do TUI, no acórdão n.º 2/2002, proferido em 19 de Julho de 2002, onde tratava precisamente a questão da responsabilidade do terceiro pelo incumprimento do promitente-vendedor:
“…Torna-se necessário apurar se o terceiro que contribuiu para frustrar a satisfação do direito do credor, neste caso, o promitente-comprador, deve ser responsabilizado civilmente pelo incumprimento do promitente vendedor, a título de cumplicidade com este. Tem sido discutido o problema da responsabilidade do terceiro na doutrina e há fundamentalmente duas correntes.
Tradicionalmente, entende-se que não admite, em princípio, o efeito externo das obrigações. No caso de incumprimento das obrigações, mesmo com a concorrência de culpa por parte do terceiro, só o devedor incorre em responsabilidade para com o credor. Mas se a conduta do terceiro se mostra particularmente chocante e censurável, este pode responder perante o credor por ter agido com abuso do direito. Portanto, a responsabilidade do terceiro só pode ser constituída com base no abuso do direito, quando se verificarem os respectivos pressupostos.
Diversamente, há autores que defendem a doutrina do efeito externo dos direitos de crédito, considerando que estes também produzem efeitos erga omnes em determinada medida e o regime do desrespeito do direito de crédito por terceiros reconduz-se ao art.º 483.º do CC de 1966 que dispõe sobre a responsabilidade extracontratual. Entende-se que esta norma deve ser aplicável a todos os direitos subjectivos, como o são os direitos de crédito…”
E além do mais:
“…Para Ferrer Correia, sem excluir a relevância de eficácia externa dos direitos de crédito, admite-se o abuso do direito sempre que o terceiro tivesse conhecimento da existência da obrigação.
Não reconhecendo efeito externo da obrigação, Antunes Varela entende que só através doutros institutos, como o abuso do direito, será possível reagir contra a conduta reprovável do terceiro. Então, para que haja abuso do direito por parte do terceiro que viola o direito do credor, “não basta que ele tenha conhecimento desse direito, é preciso que, ao exercer a sua liberdade de contratar, ele exceda manifestamente, por força do disposto no art.º 334.º, os limites impostos pela boa fé.”
Mais razoável será a posição ecléctica sustentada por Vaz Serra. Segundo este autor, para responsabilizar o terceiro por abuso do direito, não basta a cooperação consciente na violação do contrato. Até pode não haver abuso se o terceiro, movido com interesse próprio, tenha apenas a consciência da existência da obrigação e de causar prejuízo a outra parte. “É perfeitamente admissível que esse terceiro tenha um interesse legítimo em comprar, talvez mais legítimo até que o do promitente-comprador.”
Considera que, para haver abuso do direito, não se afigura bastar, porém, que o terceiro conheça, ao contratar, a existência do direito do credor, sendo preciso que tenha agido manifestamente contra a boa fé ou os bons costumes, isto é, que o seu procedimento seja acompanhado de circunstâncias especiais que manifestamente ofendam a consciência social, que denunciem a sua particular censurabilidade, como se o terceiro compra só para prejudicar o credor, e não porque a coisa lhe convém, ou quando o terceiro sabe que o outro contraente não indemnizará o credor lesado com o contrato.
Com esta posição, por um lado, atende-se aos fins visados pelo instituto, de ultrapassagem dos tradicionais quadros e molduras formalistas do conceitualismo, impregnando a Ordem Jurídica dos valores jurídicos de carácter social. Mas por outro, reconhece-se que a abertura demasiada do instituto, tal como o reconhecimento ilimitado da eficácia externa das obrigações, é susceptível de entravar significativamente o tráfico e a segurança jurídicos.” (sublinhado nosso).
2.4 Mutatis mutantis, julgamos que ao caso vertente deve ser esta a posição que merece nossa adesão, repugnando por um lado a aceitação geral e incondicional da tese da eficácia externa do direito de crédito pelo seu radicalismo, em virtude dos argumentos conhecidos a favor da teoria clássica da relatividade dos direitos de crédito, como inoponibilidade do mesmo a terceiros pela falta de publicidade da constituição do direito, impossibilidade lógico-conceitual da violação do crédito por terceiros, risco de grave enfraquecimento do comércio jurídico no caso de aceitar a responsabilização do terceiro por lesão do crédito.
Por outro lado, reconhecemos limitadamente a responsabilização dos terceiros que não se tenham interferido na relação jurídica creditícia, somente quando demonstrada a existência comprovada do abuso de direito por parte dos terceiros ou verificado o terceiro-cúmplice que com a sua actuação dolosa venha a frustrar o direito dos credores.
2.5 Voltemos ao nosso caso concreto.
Recapitulando o acima exposto, o que está em causa é o direito de crédito cuja lesão foi imputada à actuação da Ré e este direito tem como única fonte os contratos-promessa de compra e venda. Ao contrário do que parecem entender as Autoras, da celebração do contrato de concessão bem como os actos inerentes à sua execução (ex. aprovação do projecto da arquitectura), não poderá resultar nenhum direito subjectivo ou interesse legalmente protegidos para os promitentes-compradores, reivindicáveis perante a Administração Pública.
Ocupando a Ré a posição jurídica de terceiro alheio face à existência de uma relação creditícia emergente dos contratos-promessa, de raiz civilística, o facto de ser esta sujeito público não tornaria diferente esta posição e portanto, a Ré não passaria, só por este motivo, a ser um maior responsável do que qualquer sujeito particular pelas lesões que se provocaria ao direito de crédito.
Agora, em conformidade com a tese clássica da relatividade de crédito, não estando o caso abrangido por nenhuma excepção legal, bastaria o aludido para afastar a responsabilidade da Ré pelos danos reclamados. Não obstante, veremos se se verifica uma situação de abuso de direito ou uma actuação intencional e lesiva da Ré que poderia ainda justificar a sua responsabilização nos termos limitados.
Das alegações das Autoras resulta que se integram nas causas de pedir da presente acção os factos reportados a uma séria de condutas da Ré, alegadamente ilícitas e impeditivas da conclusão da construção e do aproveitamento do respectivo terreno por parte da M, resumidamente, a colocação de um conjunto de novas exigências legalmente não previstas para o estudo de impacto ambiental, a demora injustificada na respectiva apreciação ou aprovação, e além disso, a simples declaração de caducidade do terreno sem o cumprimento do dever de reconcessão do mesmo.
E segundo o que se alega, trata-se de condutas que conduziram à declaração de caducidade da concessão por não aproveitamento e que inviabilizaram por conseguinte o cumprimento dos contratos-promessa por parte da M face às promitentes-compradoras.
Porém, salvo a melhor opinião em contrário, afigura-se-me ser legítimo afirmar que as imputadas condutas, mesmo que fossem verdadeiras, não seriam aptas a indiciar a existência de uma actuação culposa da Ré para com as Autoras, porque nunca aquela se intrometeu directamente na esfera jurídica destas.
Pois, uma coisa é saber se a Ré tinha culpa no decurso da execução do contrato de concessão para com a M, coisa diversa é se a mesma agia culposamente perante os promitentes-compradores, com que não se deve confundir.
Muito menos qualquer situação de abuso de direito que daí se poderia vislumbrar.
Como é estabelecido na norma do art.º 326.º do CCM: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” (sublinhado nosso).
Reiterando a jurisprudência que já citámos assente na posição ecléctica quanto ao instituto de abuso de direito, a censurabilidade do abuso de direito de terceiro depende do seu conhecimento da existência do direito do credor, e o mais importante, da sua actuação que vai manifestamente para além dos limites suportáveis da boa-fé ou dos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Isto quer dizer que o conhecimento pelo terceiro da existência do direito do credor por si só é insuficiente para sustentar a responsabilização do terceiro.
No caso vertente, foi alegado o conhecimento da Ré da existência dos contratos-promessa já celebrados pelas Autoras e a sua consciência da provável lesão do crédito destas pela respectiva actuação que é qualificada como “diletante, negligente e mesmo culposa dos serviços da RAEM.” (conforme se alega no art.º 161.º da p.i.).
Porém, julgamos que esta qualificação é muito diferente de a Ré ter actuado manifestamente contra a regra de boa-fé, com intenção de as prejudicar.
Na nossa óptica, não pode a Ré ter violado qualquer dever de boa-fé para com os promitentes-compradores, mesmo entendendo que aquela aquando da imposição das sucessivas exigências à M tivesse alguns comportamentos faltosos, esta falta terá apenas consequência directa na sua relação com a M, mas sem a repercussão para fora.
Porque a boa-fé só se aplica no âmbito limitado às situações de relacionamento específico entre os sujeitos. Não se pode exigir a um terceiro para as pessoas com quem não mantém qualquer relação, condutas positivas segundo os ditames da boa-fé, o que se distingue da exigência do dever de respeitar o direito alheio não fundado numa relação obrigacional.
E no âmbito do direito administrativo, a exigência da boa-fé não é algo diferente, que é apenas imposta no relacionamento entre a Administração Pública e os administrados, criado no exercício das suas actividades administrativas nos termos do art.º 8.º, n.º 1 do CPA. Tal relacionamento no caso vertente, ao que nos parece, não chegou a ocorrer.
Também não existe a violação de bons costumes por parte da Ré.
A actuação alegadamente ilícita da Ré era simplesmente limitada ao exercício dos direitos conferidos pelo seu estatuto de concedente no âmbito do contrato de concessão, ou dos poderes autoritários inerentes ao respectivo procedimento administrativo na sua relação com a mesma concessionária.
Por outras palavras, dos factos alegados não se conheceria outra intenção da Ré para além daquela que tem sempre acompanhado e dominado a sua actuação administrativa, no exercício das suas funções legalmente atribuídas.
Além disso, convém não esquecer que o acto da declaração da caducidade da concessão de terreno em causa, pelo qual se tornaram efectivas as lesões alegadas pelas Autoras, é legalmente vinculado, cuja legalidade já não se discutiria, como foi decidido pelo Acórdão do TUI processo n.º 7/2018, proferido em 23 de Maio de 2018, “Decorrido o prazo de 25 anos da concessão provisória (se outro prazo não estiver fixado no contrato) o Chefe do Executivo deve declarar a caducidade do contrato se considerar que, no mencionado prazo, não foram cumpridas as cláusulas de aproveitamento previamente estabelecidas”.
Como é natural, se a Ré se limitava a dar cumprimento a um comando imposto pela lei vigente na declaração da caducidade da concessão dos terrenos referidos, dificilmente se poderia concluir que exista o direito para ser abusado, ou que exista qualquer intenção por parte dela de prejudicar os interesses das promitentes-compradoras, contrária à exigência das regras de bom costume ou de ordem moral.
Ademais, tendo sido confirmada a legalidade da declaração da caducidade da concessão do terreno, já não se levantaria a questão de reconceder o terreno com sua opção alternativa para permitir a conclusão do aproveitamento do mesmo terreno.
E não se descortina nenhuma vinculação legal da entidade administrativa no sentido de reconceder o terreno na sequência daquela caducidade declarada, assim como não se verifica a imputada omissão do dever de reconceder, certo é que as Autoras não conseguem demonstrar fontes válidas normativas que o imponham como dever legal da Administração, e que funcionem como padrão a ser respeitado na actuação administrativa.
Inexiste tal omissão no caso vertente, nem sequer é possível daí extrair consequências desejadas pelas Autoras.
Também não parece que a conduta alegada da Ré exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico do direito. Como acima referido, daí, não se conhece nenhum desvio da funcionalidade no exercício dos direitos por parte da Ré, quer como concedente do terreno em causa, quer como autoridade administrativa.
Assim sendo, no quadro legal acima analisado, não se deve concluir que a Ré seja responsabilizada pela ingerência no crédito das Autoras, no âmbito de abuso de direito, enquanto que a tese da culpa de serviço elegida naturalmente não nos convence, pelas razões que se passa a expor:
Como é sabido, constitui a culpa de serviço ou a responsabilidade pelo funcionamento anormal do serviço, uma nova modalidade de responsabilidade de importação jurisprudencial, assente na responsabilização da Administração enquanto tal, pela sua própria conduta lesiva, sem necessidade da demonstração de que um determinado agente actuou com culpa, mas apenas de que o serviço no seu conjunto funcionou de modo anormal.
Contudo parece-nos ser uma tese que vai longe demais para chamar a Ré à responsabilização. Pois, a aplicação deste regime só terá lugar em relação aos danos que devam ser atribuídos ao funcionamento do serviço público e servirá para caracterizar a falta anónima ou colectiva ocorrida na actuação administrativa. Mas como acima referido, pela existência da relação creditícia emergente dos contratos-promessa no caso concreto, a actuação da Ré enquanto terceiro, seja faltosa ou não, não é susceptível de lesar, em abstracto, os direitos das Autoras.
Aliás, sempre se diga que a culpa funcional se reporta às situações em que o facto ilícito “não se revela susceptível de ser apontado como emergente da conduta ético-juridicamente censurável de um agente determinado, mas resulta de um deficiente funcionamento dos serviços – caso em que se imputa subjectivamente o facto danoso não ao agente ou funcionário, mas tão-só à pessoa colectiva pública responsável pelo funcionamento” (cfr. Acórdão do TUI no processo n.º 23/2005, proferido em 18 de Janeiro de 2006).
Daí que as situações típicas da culpa funcional mesmo demonstradas, naturalmente, não se compatibilizam com a exigência de uma actuação especialmente censurável e chocante da Ré fundada no abuso de direito de terceiro como pressuposto da sua responsabilização pelas lesões do direito de crédito.
Portanto, é evidente que a referida tese não sustenta o respectivo pedido indemnizatório.
Concluindo, inexiste nenhum título idóneo para fazer responsabilizar a Ré no caso concreto, é manifesto que os pedidos das Autoras devem ser julgados improcedentes.
IV. Decisão:
Assim, pelo exposto, decide-se:
Julgar improcedente a acção e em consequência, absolver a Ré Região Administrativa Especial de Macau dos pedidos formulados pelos Autoras.
*
Custas pelos Autoras.
*
Registe e notifique.”
Analisada a douta sentença de primeira instância que antecede, louvamos a acertada decisão com a qual concordamos e que nela foi dada a melhor solução ao caso, pelo que, considerando a fundamentação de direito aí exposta, cuja explanação sufragamos inteiramente, remetemos para os seus precisos termos ao abrigo do disposto o artigo 631.º, n.º 5 do CPC, aplicável subsidiariamente.
Apenas mais umas achegas.
É verdade que a lei manda prosseguir os autos se a acção tiver sido contestada, e proceder-se à selecção da matéria de facto relevante segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, conforme previsto no n.º 1 do artigo 430.º do CPC.
Mas não podemos deixar de ter em consideração o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 429.º do mesmo Código, em que prevê a possibilidade de o juiz conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial do pedido ou dos pedidos deduzidos pelo autor.
Ora bem, salvo o devido respeito por opinião contrária, se no momento em que deve ser proferido o despacho saneador, já há condições para conhecer do mérito da causa, nomeadamente se chegar à conclusão de que, face à matéria alegada pelo autor, a acção terá mesmo que improceder, por que motivo terá que ordenar o prosseguimento dos autos e a consequente selecção da matéria de facto se, ao fim e ao cabo, vai dar o mesmo resultado, isto é, a improcedência da acção? Em nossa opinião, trata-se de um acto inútil.
Ademais, se da decisão de improcedência for interposto recurso e se o tribunal ad quem também vem entender que, atenta a matéria alegada pelas autoras, a acção não deixará de improceder, não vejamos razão para não confirmar a decisão recorrida.
A nosso modesto ver, entendemos que só terá necessidade de mandar prosseguir os autos e proceder-se à selecção da matéria de facto relevante para decisão da causa se o tribunal entender que a acção intentada pelo autor é realmente viável. Neste caso haverá necessidade de produzir a prova uma vez que ainda não reúnem condições para apreciar o pedido do autor.
No fundo, o que está em causa é evitar a prática de actos inúteis, em prol do princípio da economia processual previsto no artigo 87.º do CPC.
Efectivamente, se a lei permite que a petição deva ser indeferida liminarmente com fundamento na manifesta improcedência da acção com respeito pelo princípio da economia processual, por maioria de razão, não vemos obstáculo à apreciação do pedido no saneador, se entender que a pretensão do autor não vai proceder.
No mesmo sentido, defende Paulo Ramos de Faria1 que “O juiz pode indeferir in limine a petição inicial quando for manifesta a inviabilidade da pretensão do autor(…), [pelo que] não se compreendia que lhe fosse vedado conhecer desse mesmo aspecto numa fase mais adiantada do processo, no despacho saneador, quando já dispunha de maiores e melhores elementos de informação.(…) A desnecessidade de mais provas para o imediato conhecimento do pedido não equivale a ausência de controvérsia sobre a questão de facto apresentada pelo autor. Pode esta subsistir e, não obstante, ser possível o conhecimento do mérito da causa. Assim ocorrerá, desde logo, nos casos em que deve ser formulado um juízo de manifesta inviabilidade da acção. Este juízo pode evoluir e reforçar-se entre a apreciação liminar e a fase do saneamento processual, levando à decisão de improcedência nesta ocasião.(…) Reunidos os pressupostos da sua admissibilidade, a realização do julgamento imediato da causa não é apenas um poder do tribunal de primeira instância. É um dever tributário do princípio da economia processual.”
Ora bem, entre a ré e a Sociedade de Importação e Exportação M Limitada foi celebrado um contrato de concessão de terreno, daí que, se existir alguma responsabilidade por danos decorrente de actos praticados pela ré durante a execução do contrato de concessão, cabe à própria concessionária, e não a uma pessoa terceira, accionar junto da entidade concedente.
Conforme se decidiu na sentença recorrida, atentos os factos alegados pelas autoras ora recorrentes, não se verifica que a ré, enquanto terceiro na relação estabelecida entre as promitentes-compradoras e a promitente-vendedora no contrato-promessa de compra e venda de fracções autónomas, tenha actuado culposamente e com intenção de prejudicar as recorrentes, nem que tenha agido com violação do dever de boa fé para com as mesmas, e muito menos actuado com abuso de direito, pelo que andou bem a sentença recorrida, devendo negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto por A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K e L, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelas recorrentes.
Registe e notifique.
***
RAEM, 2 de Abril de 2020
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
(com declaração de voto vencido)
Processo nº 1175/2019 (acção de responsabilidade civil por prejuízos decorrentes de actos da gestão pública)
Recorrentes/Autores : Os identificados nos autos.
Recorrida/Ré : RAEM
Declaração de voto vencido
Relativamente às questões suscitadas neste processo, mantenho a minha posição constante dos acórdãos proferidos por este TSI nos processos nºs 1144, 1152, 1155, 1176, 1199, todos de 27/02/2019, sendo reproduzidos aqui os argumentos aí tecidos e consignados, e como tal, salvo o melhor respeito, deveria conceder-se provimento ao recurso jurisdicional, declarando nula a sentença recorrida por vícios acima apontados, e mandar baixar os autos ao TA para fixar os factos considerados provados com interesse para a resolução das questões suscitadas e consequentemente proferir a respectiva decisão em conformidade e/ou para, caso inexista obstáculo legal, elaborar o respectivo saneador e seguir a tramitação subsequente nos termos da lei processual aplicável.
RAEM, aos 02 de Abril de 2020.
* * *
Segundo Juiz-Adjunto
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Fong Man Chong
1 Juiz de Direito, “Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito”, in Julgar Online, http://julgar.pt/relevancia-das-outras-solucoes-plausiveis-da-questao-de-direito
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Recurso Jurisdicional 1175/2019 Página 34