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Processo n.º 107/2019
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para a Segurança
Data da conferência: 29 de Novembro de 2019
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Processo disciplinar
- Inviabilidade da manutenção da relação funcional
- Pena de demissão

SUMÁRIO
1. A inviabilidade de manutenção da relação funcional, como um conceito indeterminado, é uma conclusão a extrair dos factos imputados ao arguido e que conduz à aplicação de uma pena expulsiva, sendo uma cláusula geral e não um facto que tenha de ser objecto de prova.
2. O preenchimento dessa cláusula constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose assentes na factualidade apurada, a que há que reconhecer uma ampla margem de decisão.
3. A Administração não está obrigado a punir o militarizado com a pena de aposentação compulsiva se forem aplicáveis à infracção as penas de aposentação compulsiva ou demissão, mesmo que já com o tempo de serviço superior a 15 anos. O que não se pode é aplicar a pena de aposentação compulsiva a um militarizado que não tenha 15 anos de serviço.
4. Quanto às penas disciplinares, a sua aplicação, graduação e escolha da medida concreta cabem na discricionariedade da Administração.
5. E só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável – art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC.
6. Daí que a intervenção do juiz fica reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida pelo agente.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A, guarda do Corpo de Polícia de Segurança Pública, interpôs recurso contencioso do despacho punitivo proferido pelo Senhor Secretário para a Segurança em 15 de Março de 2017, que lhe aplicou a pena de demissão.
Por Acórdão proferido em 20 de Junho de 2019, o Tribunal de Segunda Instância julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão punitiva impugnada.
Inconformado com a decisão, vem A recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
- Da violação do princípio da legalidade
1. O Tribunal a quo entende que o acto administrativo recorrido não viola o disposto no art.º 263.º, n.º 1 do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), aprovado pelo D.L. n.º 66/94/M.
2. Salvo o devido respeito, o recorrente não se conforma com o entendimento acima indicado.
3. De acordo com os elementos constantes dos presentes autos, no momento em que o instrutor da presente causa deduziu uma acusação em processo disciplinar, o recorrente foi denunciado criminalmente por ser suspeito da prática de crime de concussão e estava na fase de inquérito. Naquela altura, o Ministério Público estava a realizar o inquérito criminal nos Autos de Inquérito n.º 8916/2016 e, ainda não existia uma condenação definitiva do recorrente.
4. Nos termos do disposto no art.º 263.º, n.º 1 do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo D.L. n.º 66/94/M, há-de entender-se que, antes de ter o resultado da acção criminal (ou seja, a sentença criminal com trânsito em julgado), não se deve proferir decisão final do processo disciplinar para o interessado.
5. Sendo assim, é contrário à consideração do Tribunal a quo que, só são diferentes os critérios de ponderação das provas entre o processo criminal e o processo disciplinar, razão pela qual pode-se proferir decisão final com base nas provas recolhidas no processo disciplinar.
6. Antes de proferida a sentença com trânsito em julgado no processo penal em questão, a entidade recorrida já decidiu aplicar ao recorrente a pena de “demissão”, o que viola o disposto no n.º 1 do art.º 263.º acima referido e, em consequência, incorre em vício de violação do princípio da legalidade previsto no art.º 3.º do Código do Procedimento Administrativo, pelo que o acto recorrido deve ser anulado à luz do disposto no art.º 124.º do mesmo Código.
7. Por outro lado, transcreve-se o seguinte teor do despacho constante de fls.103 e 104 dos autos: 5. O arguido recebeu pelo homem acima indicado uma ficha de HKD$10.000,00, suspeito da prática de infracção e de falta disciplinar (concussão), relevando a indignidade para exercer o seu cargo e implicando a perda da confiança geral necessária ao exercício da sua função, o que já constitui violação do “dever de aprumo” previsto no art.º 12.º, n.º 2, al. f) do EMFSM; e, ao abrigo do disposto no art.º 238.º, n.º 1 e n.º 2, al. n) do mesmo Estatuto, deve aplicar-lhe a sanação disciplinar de “demissão”.
8. Relativamente ao acto acusado (aceitação de uma ficha de HKD$10.000,00), foi descrito que este acto tinha sido praticado durante o patrulhamento, em vez de fora do exercício das suas funções, pelo que o art.º 238.º, n.º 1 e n.º 2, al. n) acima referido não deve ser aplicável à infracção de que vem acusado o recorrente, caso contrário, incorre em aplicação errada da lei.
9. Para além disso, o recorrente foi julgado e absolvido, no âmbito do processo do TJB n.º CR5-17-0323-PCC, da prática de um “crime de corrupção passiva para acto ilícito” previsto pelo art.º 337.º, n.º 1 do Código Penal de Macau. (a certidão deste acórdão foi junta aos presentes autos)
10. Dado que o recorrente foi absolvido e o facto de B ter entregue ao recorrente a ficha de HKD$10.000,00, facto este foi dado como não provado na sentença criminal acima referida, nos termos do disposto no art.º 263.º, n.º 3 do EMFSM, aprovado pelo D.L. n.º 66/94/M, deve presumir-se a inexistência da infracção.
11. Para tal, a autoridade recorrida não apresentou prova para ilidir a presunção acima indicada, assim, na perspectiva factual, deve considerar-se que o recorrente não praticou infracção. Enquanto a autoridade recorrida manteve a pena de demissão aplicada ao recorrente, já constitui erro no reconhecimento de factos e, em consequência, padece do vício da violação do princípio da legalidade previsto no art.º 3.º do Código do Procedimento Administrativo de Macau. Nos termos do disposto no art.º 124.º do mesmo Código, o acto recorrido deve ser anulado.
- Da violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação
12. Caso o Mm.º Juiz não concorde com o supra entendimento, para uma defesa completa, vem continuamente apresentar outros fundamentos.
13. In casu, foi B quem por sua iniciativa e voluntariamente deu a ficha de HKD$10.000,00 em questão ao recorrente, para servir de despesa da conciliação feita pelo recorrente com sucesso, mas isto não foi exigido pelo recorrente. (vide o Auto de Notícia constante de fls. 3v. dos autos)
14. Posteriormente, o recorrente, por sua iniciativa, chegou a contactar com B para restituir a supracitada ficha de HKD$10.000,00, mas foi recusado por B. (vide o Auto de Notícia constante de fls. 3v. e 4 dos autos)
15. Pelos factos acima indicados, pode-se mostrar que o valor em questão não é elevado, também não é um valor elevado o prejuízo patrimonial causado à parte (caso B aceitasse retomar a dita ficha de HKD$10.000,00, em princípio, não sofreria qualquer prejuízo patrimonial); e, isto também mostra que o recorrente teve conhecimento de que o seu acto era ilegal e tentou repará-lo com esforço, mas finalmente não obteve sucesso.
16. Na sua contestação, o recorrente confessou os factos relevantes (constantes de fls. 61 e 62 dos autos) e, manifestou intenção de se corrigir e de não voltar a cometer infracções.
17. Excepto o presente caso, o recorrente, enquanto exerceu funções de guarda policial, desempenhou fielmente as funções em que ficava investido e nunca antes foi sujeito a qualquer sanção disciplinar.
18. Isto pode demonstrar que o recorrente ainda é capaz de exercer funções como guarda policial, e a partir do ponto de vista de terceiros, também não perde a confiança geral necessária ao exercício das suas funções como guarda policial.
19. Para além disso, no acto recorrido, não há prova concreta a indicar como o acto do recorrente prejudicou a confiança do público na autoridade policial, mas sim só indicou de forma vazia. O acto ora recorrido é o acto administrativo que causa prejuízo para os interesses do interessado, portanto, nos termos do disposto no art.º 86.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo de Macau, a autoridade recorrida tem de fazer prova de qual nível de prejuízo causado pelo acto do recorrente para a reputação da autoridade policial, pela razão de que este facto não é auto-evidente. Assim, põe manifestamente em causa que, o acto do recorrente causou ou não prejuízo tão grave para a reputação da autoridade policial e, até que deveria aplicar-lhe a pena de demissão.
20. No fim, como acima ficou dito, o recorrente foi julgado no processo do Tribunal Judicial de Base de Macau n.º CR5-17-0323-PCC e, absolvido da prática de um “crime de corrupção passiva para acto ilícito” previsto pelo art.º 337.º, n.º 1 do Código Penal de Macau. (a certidão deste acórdão foi junta aos presentes autos)
21. No fim, como acima ficou dito, o recorrente foi julgado no processo do Tribunal Judicial de Base de Macau n.º CR5-17-0323-PCC e, absolvido da prática de um “crime de corrupção passiva para acto ilícito” previsto pelo art.º 337.º, n.º 1 do Código Penal de Macau. (a certidão deste acórdão foi junta aos presentes autos) (sic.)
22. Dado que o recorrente foi absolvido, permite-nos razoavelmente acreditar que podem ser diminuídos os prejuízos resultantes do seu acto para a reputação da polícia.
23. Pelo exposto, uma vez que o recorrente não preenche as situações previstas no art.º 238.º, n.º 2, al. n) do EMFSM, aprovado pelo D.L. n.º 66/94/M, não deve aplicar-lhe a sanção disciplinar de “demissão”; caso contrário, viola os princípios da legalidade, da proporcionalidade e da adequação, então, nos termos do disposto no art.º 124.º do mesmo Código, o acto recorrido deve ser anulado.
Contra-alegou a entidade recorrida, pugnando pelo não provimento do recurso jurisdicional.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, pronunciando-se pela improcedência do recurso jurisdicional.

2. Factos Provados
Nos autos foram dados como assentes os seguintes factos pertinentes com interesse para a decisão da causa:
- O Recorrente, guarda da PSP, foi disciplinadamente punido na pena de demissão pelo Secretário para a Segurança mediante o seguinte despacho:
Despacho N.º XX/SS/2011
Processo Disciplinar n.º XXX/2016 do CPSP
Arguido: Guarda n.º XXXXXX A
Nos presentes autos de processo disciplinar vem suficientemente provado que o arguido, guarda n.º XXXXXX, A, do Corpo de Polícia de Segurança Pública, nas circunstâncias de facto que melhor constam da acusação, e que aqui se dá por inteiramente reproduzida, no dia 1 de Agosto de 2016, pelas 22h40, interveio numa contenda entre duas pessoas, motivada por questões relacionadas com um empréstimo, cuja devolução era reclamada por uma cidadã do sexo feminino perante um cidadão do sexo masculino.
O arguido, a pretexto da resolução pacífica do problema entre aqueles cidadãos acabaria por aceitar do credor uma ficha de HKD 10,000.00, o que confessou quando, no dia seguinte, os factos acabariam por ser objecto de denúncia junto de outro agente da autoridade. Mais consta provado nos autos que ao início da madrugada do dia seguinte, o arguido trocou a referida ficha pelo valor correspondente em numerário, o qual veio a perder na totalidade, jogando-o numa mesa de black Jack.
O arguido não fez constar do seu relatório de serviço a intervenção no incidente acima descrito.
Com esta conduta o arguido violou o dever de aprumo, na formulação que lhe faz a alínea f) do n.º 2 do artigo 12.º, com referência, ainda, ao seu n.º 1 e, bem assim, o dever de zelo na formulação que lhe faz a alínea b) do n.º 2 do artigo 8.º, com referência, ainda ao seu n.º 1, ambos os normativos do Estatuto dos Militarizados (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro. O arguido violou, igualmente, o disposto na alínea 4) do n.º 1 d e no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 10/2012 (proibição de entrada em casinos a funcionários públicos).
O arguido, beneficiando, embora, da atenuante da alínea i) do n.º 2 do artigo 200.º daquele estatuto, vê a conduta descrita ser-lhe agravada pela concorrência das circunstâncias agravantes das alíneas b) - infracção cometida em acto de serviço d) - conduta comprometedora do brio e decoro da corporação e m) - acumulação de infracções, todas do artigo 201.º do citado diploma estatutário.
A conduta infractora plúrima do arguido, tanto a consubstanciada em actos praticados no âmbito do exercício de funções, como a consubstanciada em actos praticados fora do âmbito das mesmas, é susceptível de comprometer definitivamente a manutenção do seu vínculo funcional ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, pela indignidade e desprestígio que para esta corporação representa um comportamento tão gravemente censurável de um seu agente policial, susceptível de afectar a confiança geral que é suposto o cidadão comum projectar nas forças de segurança que o servem, bem como nos respectivos agentes.
Foi ouvido o Conselho de Justiça e Disciplina.
Assim, ponderadas a gravidade da falta, a culpa e a responsabilidade do arguido, Guarda n.º XXXXXX A, do Corpo de Polícia de Segurança Pública, o Secretário para a Segurança, no uso da competência que lhe advém do disposto no Anexo G ao artigo 211.º do EMFSM e, bem assim, da Ordem Executiva n.º XXX/2014, pune-o com a pena de DEMISSÃO, a que se referem os artigos 219.º al g) e 224.º daquele mesmo diploma, o que faz nos termos das alíneas n) do n.º 2 do seu artigo 238.º.
Notifique-se o presente despacho nos termos do artigo 285.º do EMFSM e, bem assim, de que do mesmo cabe recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância.
Gabinete do Secretário para a Segurança, aos 15 de Março de 2017
O Secretário para a Segurança
Wong Sio Chak
- Inconformado com o despacho, mediante requerimentos que deram entrada na Secretaria do TSI em 19ABR2017, o requerente interpôs dele recurso contencioso de anulação e pediu a suspensão da sua eficácia;
- Em 19/11/2018 foi junto aos autos o acórdão (já transitada em julgado) proferido no processo CR5-17-1323-PCC, em que o arguido/Recorrente foi absolvido do crime de corrupção passiva para prática de actos ilícitos (fls. 38 a 44).

3. Direito
Imputa o recorrente a violação dos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da adequação.
Vejamos.

3.1. Da violação do princípio da legalidade
Na tese do recorrente, o acórdão viola o disposto no n.ºs 1 e 3 do art.º 263.º do EMFSM e incorre no erro de aplicação do art.º 238.º n.º 1 e n.º 2, al. n) do EMFSM.
O art.º 263.º do EMFSM tem como epígrafo “Acção disciplinar e acção criminal”, cujo n.º 1 prevê que “a acção disciplinar é exercida independentemente da criminal. Porém, quando o ilícito criminal de que resultou a acção disciplinar tenha sido participado ao tribunal competente para apuramento e aplicação das respectivas sanções penais, a decisão final do processo disciplinar poderá aguardar tal resultado”.
Alega o recorrente que a norma contida no n.º 1 do art.º 263.º deve ser entendida no sentido de, antes de ter o resultado da acção criminal (ou seja, a sentença criminal com trânsito em julgado), não se dever proferir decisão final do processo disciplinar, pelo que, ao decidir aplicar-lhe a pena de demissão antes da prolação da sentença com trânsito em julgado no processo penal, a entidade recorrida viola a norma em causa e, em consequência, incorre em vício de violação do princípio da legalidade previsto no art.º 3.º do CPA.
Evidentemente sem razão.
Desde logo, não resulta da citada norma que a lei impunha à Administração o dever ou obrigação de não aplicar a pena disciplinar antes da condenação penal, pois “a decisão final do processo disciplinar poderá aguardar tal resultado” da acção criminal (sublinhado nosso).
Por outras palavras, ao órgão administrativo competente é conferido o “poder” de decidir se pratica imediatamente o acto punitivo ou aguarde o resultado da acção criminal, consoante o circunstancialismo do caso concreto.
Nos presentes autos, constata-se no processo administrativo instrutor que na audiência administrativa o recorrente confessou a prática dos factos imputados e subsistindo os elementos demonstrativos do envolvimento o recorrente nos factos imputados, tal como afirma o Tribunal recorrido no seu acórdão.
Nas suas alegações do recurso pode-se ler que “na sua contestação, o recorrente confessou os factos relevantes”.
Neste circunstancialismo, nada impede que a entidade recorrida tome já a medida punitiva, sem necessidade de aguardar a sentença penal.
Assim sendo, não se nos afigura merecer censura a decisão punitiva proferida, que não aguardou o resultado da acção criminal.
Não se vislumbra a alegada violação do disposto no n.º 1 do art.º 263.º do EMFSM.

Sustenta ainda o recorrente que, como o acto acusado (aceitação de uma ficha de HKD$10.000,00) foi praticado durante o patrulhamento, e não fora do exercício das suas funções, não se deve aplicar o disposto no art.º 238.º n.º 1 e n.º 2, al. n) do EMFSM, sob pena de incorrer em aplicação errada da lei.
Ora, ao abrigo do art.º 238.º n.º 1 e n.º 2, al. n), as penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infracções disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional e são aplicáveis ao militarizado que “praticar, ainda que fora do exercício das suas funções, acto revelador de ser o seu autor incapaz ou indigno de exercer o cargo ou que implique a perda da confiança geral necessária ao exercício da função”.
Invoca o recorrente a prática do acto durante o patrulhamento, em vez de fora do exercício das suas funções, para afastar a aplicação da norma em causa, mas sem nenhuma razão.
Na realidade, é indiferente a prática do acto no exercício das funções ou fora delas, sendo que, evidentemente, a expressão “ainda que fora do exercício das suas funções” significa que não é exigível a prática do acto no exercício das funções.

No que respeita à violação do disposto no art.º 263.º n.º 3 do EMFSM, alega o recorrente que a sua absolvição na sentença penal faz presumir a inexistência dos factos imputados, pelo que, na falta de prova para ilidir tal presunção, deve considerar-se que ele não praticou infracção.
Nos termos do n.º 3 do art.º 263.º, “a sentença criminal absolutória com trânsito em julgado constitui, em processo disciplinar, simples presunção legal, ilidível por prova em contrário, da inexistência dos factos que constituem a infracção ou de que os arguidos a não praticarem, conforme o que haja sido julgado”.
Desde logo, suscita-se dúvida quanto à aplicação da norma ao presente caso, em que a Administração decidir tomar decisão punitiva antes do resultado da acção criminal.
Ora, é ilógico aplicar-se a norma nos casos em que a Administração não aguarda a sentença penal, até porque não se encontra norma legal que preveja a tramitação segundo a qual se deve fazer prova em contrário, pois a decisão punitiva já foi tomada e não parece o recurso contencioso a sede própria para o efeito, em que já passou a fase de produção de prova, como é o nosso caso concreto.
Por outro lado, e tal como afirma o acórdão recorrido, estão em causa duas realidades diferentes: juízo de culpa jurídico-administrativo e juízo de culpa jurídico-penal, ambos assentes em axiologia diferente e pressupostos diferenciados, sendo a finalidade de aplicação de uma ou de outra sanções também é diferente.
Nos presentes autos, decorre da sentença criminal absolutória que a absolvição do recorrente se deveu à falta ou insuficiência de prova, face ao silencia do ora recorrente em audiência de julgamento, à revelia do 2.º arguido B, à não comparência da testemunha presencial C, etc., enquanto no processo administrativo o próprio recorrente confessou a prática dos factos imputados e as testemunhas prestaram declarações.
Concluindo, não há violação do disposto no art.º 263.º n.º 3 do EMFSM.

3.2. Da violação do princípio da proporcionalidade e da adequação
Alega o recorrente que a sua conduta não se integra na situação prevista no art.º 238.º n.º 2, al. n) do EMFSM, pelo que não deve aplicar-lhe a sanção disciplinar de demissão, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade e da adequação.
Na óptica do recorrente, o valor envolvido nos factos imputados não é elevado nem o é o prejuízo patrimonial causado à parte; o recorrente confessou os factos relevantes e manifestou intenção de se corrigir e de não voltar a cometer infracções; enquanto exerceu funções de guarda policial, o recorrente desempenhou fielmente as funções em que ficava investido e nunca antes foi sujeito a qualquer sanção disciplinar; do ponto de vista de terceiros, também não se perde a confiança geral necessária ao exercício das suas funções como guarda policial; e a sua absolvição permite razoavelmente acreditar que podem ser diminuídos os prejuízos resultantes do seu acto para a reputação da polícia.
Ora, a entidade recorrida decidiu aplicar a pena de demissão, ao abrigo da al. n) do n.º 2 do art.º 238.º do EMFSM.
Tal como se constata no despacho punitivo, o recorrente, a pretexto da resolução pacífica do problema entre os cidadãos, acabou por aceitar uma ficha de HKD 10,000.00, que veio a ser perdida no dia seguinte quando o recorrente foi jogar no casino, e o recorrente não fez constar do seu relatório de serviço a intervenção no referido incidente, pelo que violou os deveres de aprumo e de zelo bem como o disposto na al. 4) do n.º 1 e no n.º 2 do art.º 2.º da Lei n.º 10/2012 (proibição de entrada em casinos a funcionários públicos).
Merece a nossa concordância a consideração da entidade, no sentido de que a conduta infractora plúrima do recorrente, consubstanciada em actos praticados tanto no exercício de funções como fora delas, é susceptível de comprometer definitivamente a manutenção do seu vínculo funcional ao CPSP, pela indignidade e desprestígio que para esta corporação representa um comportamento tão gravemente censurável de um seu agente policial, susceptível de afectar a confiança geral que é suposto o cidadão comum projectar nas forças de segurança que o servem, bem como nos respectivos agentes.
Na realidade, o que se releva no presente caso não é o valor da ficha que o recorrente aceitou nem o prejuízo patrimonial causado a terceiro, mas sim a gravidade dos factos ilícitos praticados pelo recorrente que, enquanto agente policial com dever de resolver conflitos e problemas entre os cidadãos e dever especial de não praticar actos ilícitos, decidiu aceitar vantagem patrimonial de outrem, o que levou o Ministério público a deduzir acusação contra o recorrente, pelo crime de corrupção passiva para acto ilícito.
Não obstante a absolvição do recorrente na acção criminal, motivada por falta ou insuficiência de prova, certo é que os efeitos negativos produzidos pela sua conduta e seu comportamento não se extinguem com tal absolvição, continuando a afectar a confiança geral que é depositado nas forças de segurança e nos seus agentes.
E consta do despacho punitivo que a entidade tomou em consideração a circunstância atenuante prevista na al. i) do n.º 2 do art.º 200.º do EMFSM, que se refere à “boa informação dos superiores de quem depende” o recorrente.
Quanto à inviabilidade de manutenção da relação funcional, exigida no n.º 1 do art.º 238.º do EMFSM, considerada como um conceito indeterminado, é uma conclusão a extrair dos factos imputados ao arguido e que conduz à aplicação de uma pena expulsiva, sendo uma cláusula geral e não um facto que tenha de ser objecto de prova.
Tem-se entendido que o preenchimento dessa cláusula constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose assentes na factualidade apurada, a que há que reconhecer uma ampla margem de decisão.1
E entre as penas de demissão e de aposentação compulsiva, cabe à Administração escolher livremente a pena que achar mais adequada, excepto quando o militarizado não reúna os 15 anos de serviço contados para efeitos de aposentação, caso em que se aplica obrigatoriamente a pena de demissão.2
De modo geral, e no que concerne à pena disciplinar, afirma-se que a sua aplicação, graduação e escolha da medida concreta cabem na discricionariedade da Administração.
E só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável – art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC.
Daí que a intervenção do juiz fica reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas situações em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida pelo agente.
E este Tribunal de Última Instância tem entendido que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.3
Para Ana Fernanda Neves, “O poder de acertamento da sanção é um poder discricionário da Administração, cujo controlo judicial do seu exercício já não é questionável, nem reduzido ao (inoperativo) desvio de poder e ao erro manifesto de apreciação, entendido que está hoje, aos seus limites intrínsecos, os princípios gerais da actividade administrativa, como os princípios da igualdade, da justiça, da imparcialidade e da proporcionalidade”.4
No caso vertente, não se nos afigura existir erro manifesto ou grosseiro da Administração ao considerar inviabilizada a relação funcional com o recorrente para a aplicação da sanção disciplinar nem manifestamente desproporcional a pena de demissão concretamente aplicada.
Não se vê violado o princípio da proporcionalidade e da adequação.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 6 UC.

Macau, 29 de Novembro de 2019

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Joaquim Teixeira de Sousa


1 Ac.s do Tribunal de Última Instância, de 15 de Outubro de 2003, Proc. n.º 26/2003 e de 29 de Junho de 2005, Proc. n.º 15/2005.
2 Neste sentido, cfr. Ac. do Tribunal de Última Instância, de 28 de Julho de 2004, Proc. n.º 22/2004.
3 Ac. do Tribunal de Última Instância, de 15 de Outubro de 2003, Proc. n.º 26/2003.
4 Ana Fernanda Neves, O princípio da tipicidade no direito disciplinar da função pública, em Caderno de Justiça Administrativa, n.º 32, pág. 27, em anotação ao acórdão de 19 de Março de 1999 do Supremo Tribunal Administrativo.
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Processo n.º 107/2019