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Recurso Contencioso nº 147/2018
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 26 de Março de 2020
Descritores:
- Acto nulo
- Falsas declarações
- Paternidade
- Competências implícitas

SUMÁRIO:

I - Padece de invalidade absoluta o acto que autoriza a emissão do BIRM pela primeira vez assente no facto criminoso de ser prestada declaração falsa acerca da paternidade do recorrente por parte da mãe e de A.

II - O próprio acto de registo também ele é nulo, face ao disposto no art. 66º, al. a) e 67º, al. b), ambos do Código de Registo Civil (falsidade do registo por ter sido obtido em erro acerca da identidade das partes).

III - Se a emissão do BIRM compete expressamente à Direcção dos Serviços de Identificação (DSI), nos termos do arts. 1º, 2º, al. b), DL nº 31/94/M, de 20/06, alterado pelo DL nº 39/98/M, de 7/09, e art. 1º e 2º, alínea 2), do Regulamento Administrativo nº 29/2017, bem como do art. 2º, nº3, da Lei nº 8/2002, a ela compete implicitamente a competência para a denegar e, sempre que for o caso, cancelar o BIRM já emitido.

IV - Da mesma maneira que os actos praticados pelo funcionário nomeado ilegalmente (através de acto nulo), podem ser salvos pela via da putatividade do nº3, do art. 123º do CPA, como salva pode ficar a sua qualidade de funcionário, assim também, com fundamento no mesmo normativo, pode eventualmente vir a ser merecedor do estatuto de residente permanente quem sempre o teve, ainda que ao abrigo de um acto originariamente nulo, ao qual ele sempre foi, e é estranho.







Proc. nº 147/2018

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I - RELATÓRIO
A, do sexo masculino, solteiro, de nacionalidade chinesa, titular do BIRM n.º XXX, com os demais sinais dos autos do processo administrativo ----
Recorre contenciosamente junto deste TSI-----
Do despacho proferido pela Secretária para a Administração e Justiça em 4 de Janeiro de 2018 -----
Que lhe cancelou o Bilhete de Identificação de Residente Permanente de Macau.
Na petição inicial o recorrente formulou as seguintes conclusões:
“1. Em 23 de Outubro de 2017, o recorrente recebeu a notificação emitida pelo director da DSI que decidiu cancelar o BIRPM do recorrente.
2. Por não ter conformado com a decisão, o recorrente apresentou oportunamente a audiência escrita ao director da DSI em 23 de Outubro de 2017.
3. Posteriormente, em 6 de Novembro de 2017, o recorrente recebeu a notificação da DSI que decidiu o cancelamento do BIRPM n.º XXX do recorrente.
4. Portanto, o recorrente interpôs oportunamente o recurso hierárquico necessário ao Secretário para a Administração e Justiça.
5. Por fim, em 22 de Janeiro de 2018, o recorrente recebeu a notificação da DSI de que o Secretário para a Administração e Justiça concordou com o teor do parecer n.º 90/DAG/2017 e rejeitou o recurso hierárquico do recorrente. (Doc. 1, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
6. Da notificação supracitada não consta o despacho do Secretário para a Administração e Justiça.
7. O recorrente entende que o acto recorrido violou as normas jurídicas, o princípio da legalidade e os direitos fundamentais, com os seguintes fundamentos:
Erro nos pressupostos de facto – o acto já transitou em definitivo e é válido
8. Está em causa uma decisão da Administração do cancelamento do BIRPM do recorrente.
9. A decisão foi tomada com os seguintes fundamentos:
10. A Administração entendeu erradamente que o pai do recorrente era residente de Macau quando o recorrente nasceu em Macau, portanto emitiu o BIRM n.º XXX ao recorrente.
11. Dado que do registo de nascimento do recorrente não consta o nome do pai e a sua mãe não é residente de Macau, a Administração entende que o recorrente não deve possuir a identidade de residente de Macau e decidiu cancelar o seu BIRPM.
12. A Administração reconheceu que o acto de emissão do BIRM n.º XXX e da substituição e renovação do BIRPM n.º XXX ao recorrente é causado por erro no pressuposto de facto.
13. O vício de anulabilidade do acto da Administração da emissão do BIRM n.º XXX ao recorrente ficou sanado uma vez que ninguém apresentou impugnação no prazo legal.
14. Com efeito, a Administração tentou a invocar a nulidade do acto da emissão do BIRM n.º XXX ao recorrente, com fundamento de que o acto da Administração de emissão do BIRM provém do facto criminoso.
15. Mas, os pais do recorrente foram absolvidos do crime por insuficiência de prova no processo penal da primeira instância (n.º CR3-16-0135-PCC), o MP interpôs recurso do presente processo, mas o caso ainda estava pendente. (Doc. n.º 2, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
16. Portanto, a Administração entendeu erradamente a lei, considerando erradamente que o acto da emissão do BIRM n.º XXX ao recorrente é nulo, assim, o acto recorrido ofendeu o acto válido já transito em definitivo, violando o disposto no art.º 124.º do Código do Procedimento Administrativo, logo, o acto recorrido padeceu do vício de violação da norma jurídica e é anulável, devendo ser anulado o acto recorrido.
17. Caso os MM.ºs Juízes considerem que o acto administrativo proveniente do facto criminoso dá lugar à nulidade, já que o respectivo processo penal estava pendente, solicita-se que acordem em sobrestar na decisão até que o tribunal se pronuncie sobre o processo penal nos termos do art.º 14.º n.º 1 do Código do Processo Administrativo Contencioso, uma vez que o julgamento do presente caso depende da decisão do recurso do processo penal.
Mesmo que os MM.ºs Juízes não acolhem a opinião supracitada, há ainda os seguintes fundamentos:
Cancelamento do BIR – violação do princípio da legalidade
18. O BIR traduz-se meramente num documento legal comprovativo, destinado a provar a identidade do titular e a sua permanência em Macau.
19. Não é um documento comprovativo constitutivo, o portador não perderá o seu identidade de residente de Macau se perder este documento.
20. Tendo em conta as normas jurídicas relativas à BIR antes e depois de transição da soberania (D.L. n.º 6/92/M, D.L. nº 37/92/M, D.L. n.º 63/95/M, D.L. n.º 19/99/M, Lei n.º 8/2002, Regulamento Administrativo n.º 23/2002), é bastante afirmar que o BIRM não é um documento comprovativo constitutivo e a emissão do documento de residência pressupõe que a parte possui autorização de residência ou prova de residência.
21. Nas legislações supracitadas, não se verifica o regime ou norma de cancelamento do documento de identidade de residente.
22. Ao invés, apenas se verifica o regime de retenção, nulidade e destruição do BIR.
23. O fundamento impugnado pela Administração contra o recorrente não se enquadra em nenhuma circunstância supracitada, pelo que o seu BIR não deve ser retido e cancelado pela Administração.
24. A lei não prevê expressamente que a Administração tem poder de cancelar o BIRPM, assim, a Administração não pode fazer isso, sob pena de violação do princípio mais fundamental do processo administrativo – princípio da legalidade.
25. Portanto, o acto recorrido violou o disposto no art.º 3.º do Código do Procedimento Administrativo, enfermando do vício da violação do princípio da legalidade, devendo ser anulado por força do art.º 124.º do Código do Procedimento Administrativo.
Mesmo que os MM.ºs Juízes não acolham a opinião supracitada, há ainda os seguintes fundamentos:
Violação do teor essencial do direito fundamental – nulidade
26. O recorrente obteve o BIRM n.º XXX emitido pela DSI em 1 de Julho de 1996 pela primeira vez.
27. Mesmo que o recorrente já adquirisse o BIRM antes de transição da soberania.
28. O recorrente é considerado como residente permanente da RAEM por ser cidadão chinês titular do BIR emitido antes de 20 de Dezembro de 1999 e nasceu em Macau.
29. Presume-se que o recorrente, titular do BIR n.º XXX emitida pela DSI em 1 de Julho de 1996, residia habitualmente em Macau.
30. Presume-se que o recorrente residia habitualmente em Macau a partir de obtenção do BIRM até à obtenção do BIRPM, e residia habitualmente pelo sete anos consecutivos.
31. A Administração não pôs em causa a residência habitual do recorrente.
32. De acordo com os fundamentos supracitados, o recorrente corresponde aos pressupostos de residente permanente da RAEM, então tem direito à emissão do BIR.
33. Cada residente permanente de Macau tem direito à emissão do BIR. Trata-se de um direito fundamental protegido pela Lei Básica e de um direito núcleo de cada residente de Macau que.
34. O recorrente corresponde aos pressupostos de residente permanente de Macau, pelo que o referido direito fundamental deve ser protegido, não podendo ser violado de forma arbitrária pela Administração.
35. Portanto, o acto recorrido violou o disposto nos art.º 24.º da Lei Básica, art.º 9.º n.º 2 al. 1) da Lei sobre Residente Permanente e Direito de Residência da RAEM, no art.º 3.º n.º 1 da Lei n.º 8/2002, ora Regime do Bilhete de Identidade de Residente da RAEM e no art.º 122.º n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo, o acto recorrido é nulo por ter ofendido o direito fundamental do recorrente à emissão do BIRPM, devendo ser anulado (sic.).
Pedidos:
Com base nos fundamentos de facto e de direito supracitados, solicita-se aos MM.ºs Juízes que acordem em:
1. admitir o presente recurso contencioso e todos os anexos; e
2. citar a entidade recorrida para efeito de contestação e juntar aos presente autos o original dos autos do processo administrativo e todos os demais documentos relacionados com o recorrente, independentemente da contestação ou não da entidade recorrida, for força do art.º 55.º do Código do Processo Administrativo Contencioso; e
3. declarar que o acto recorrido ofendeu o acto já transito em definitivo no ordenamento jurídico e violou o disposto no art.º 124.º do Código do Procedimento Administrativo, devendo ser anulado; ou
4. declarar que o acto recorrido violou o princípio da legalidade nos termos do art.º 3.º do Código do Procedimento Administrativo, devendo ser anulado; ou
5. declarar que o acto recorrido violou o disposto nos art.º 24.º da Lei Básica, art.º 9.º n.º 2 al. 1) da Lei sobre Residente Permanente e Direito de Residência da RAEM, no art.º 3.º n.º 1 da Lei n.º 8/2002, ora Regime do Bilhete de Identidade de Residente da RAEM, constituiu a nulidade prevista no art.º 122.º n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo, devendo ser anulado (sic.).”
*
A recorrida apresentou contestação, concluindo o articulado da seguinte maneira:
“1. O recorrente contencioso A nasceu em Macau aos 25 de Junho de 1996, portador do registo de nascimento n.º 2748 emitido pela Conservatória do Registo de Nascimento, do qual consta que é filho do residente de Macau B e da residente do Interior da China C.
2. Nos termos do art.º 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, vigente no momento do nascimento do recorrente contencioso, a DSI, emitiu em 1 de Julho de 1996 e pela primeira vez, o BIRM n.º XXX ao recorrente contencioso.
3. Mais tarde, nos termos do art.º 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 8/1999 e nos termos do art.º 2.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 8/2002, a DSI emitiu ao recorrente contencioso por substituição e renovou-lhe o BIRM permanente n.º XXX.
4. No entanto, como o relatório pericial de filiação provou que B não era o pai biológico do recorrente contencioso, o Juízo de Família e de Menores mandou cancelar o registo de B ser o pai biológico do recorrente contencioso e o registo das informações dos avós no registo de nascimento do recorrente contencioso.
5. Com base nisto, a DSI já rectificou a certidão de narrativa do registo de nascimento n.º 2748/1996/CR do recorrente contencioso; do qual não consta o nome do pai, e só consta que a mãe é a residente do Interior da China C.
6. O Juízo Criminal do TJB absolveu C e B do “crime de falsificação de documento”, por não ter sido provada a prática do crime, devido à insuficiência das provas (o processo já foi reenviado ao TJB para novo julgamento); no entanto, isto não significa que o recorrente contencioso possa obter a identidade de residente de Macau. O recorrente contencioso deve preencher os requisitos previstos pela lei para ter a identidade de residente de Macau e para lhe ser emitido BIRM.
7. O MP recorreu da decisão absolutória preferida pelo TJB, que absolveu B e C do “crime de falsificação de documento”. O TJB já fixou a data de 20 de Junho de 2018 para o novo julgamento do processo.
8. Merecer indicar que se o novo julgamento decidir finalmente condenar B e C pelo “crime de falsificação de documento”, será sempre nulo o acto da DSI de emitir o BIRM ao recorrente contencioso, nos termos do art.º 122.º, n.º 2, alínea c) do CPA.
9. No presente caso, nos termos do art.º 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, o recorrente contencioso obteve o BIRM. Mais tarde, nos termos do art.º 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 8/1999, e os termos do art.º 2.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 8/2002, foi-lhe emitido por substituição e renovado o BIRM permanente.
10. Nos termos do art.º 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, o legislador confere ao menor a qualidade de residente com base na qualidade de residente dos pais biológicos. Portanto, o facto de que o menor tem a relação de filiação com os pais é o elemento essencial do artigo acima mencionado.
11. A filiação não pode ser sanada por prescrição. A filiação não verdadeira, por muitos anos que passem, não se muda. Nem é possível nem deve ficar a ser considerada como verdadeira com o decurso de tempo; senão seria completamente contrário ao sentido original da legislação.
12. No presente caso particular, o recorrente contencioso não satisfaz de nenhuma maneira as disposições legais acima mencionadas. O registo de nascimento fornecido pelo recorrente contencioso que não correspondia à verdade fez com que a DSI julgasse erradamente que o recorrente contencioso e B tivessem relação de filiação, e então foi-lhe emitido o BIRM. Isto fez com que o acto da DSI tivesse o vício de nulidade pela falta de elementos essenciais.
13. Por este motivo, no presente caso, os actos praticados pela DSI, de emitir o BIRM ao recorrente contencioso, de emitir-lhe o BIRM permanente por substituição, e de renovar-lhe o BIRM permanente, nos termos do art.º 122.º, n.º 1 e n.º 2, alínea i) do CPA, foram todos actos nulos.
14. Nos termos do art.º 1.º, do art.º 2.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 31/94/M, de 20 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 39/98/M, de 7 de Setembro, do art.º 1.º, do art.º 2.º, alínea 2) do Regulamento Administrativo n.º 29/2017, a Direcção dos Serviços de Identificação é responsável pelas áreas de identificação civil e criminal e de documentos de viagem da autoridade administrativa da RAEM; é uma das competências da DSI emitir bilhetes de identidade de residente e certificados de registo criminal, com garantia de exactidão dos elementos que inserem.
15. Nos termos do art.º 2.º, n.º 3 da Lei n.º 8/2002, “A Direcção dos Serviços de Identificação, adiante designada por DSI, é responsável pela emissão dos BIR.” A DSI, enquanto o órgão competente para a emissão dos documentos, tem a competência e a atribuição da garantia de veracidade e exactidão das informações de identificação registadas e constantes. E tem a competência para apreciar rigorosamente todos os pedidos, emitir o BIR aos indivíduos qualificados e cancelar os BIRM que não satisfaçam as disposições legais.
16. O BIRM é documento de identificação com fé pública. A DSI, segundo as informações no arquivo da parte, regista o estado civil desta, com força probatória tanto nos órgãos judiciais quanto nos órgãos administrativos.
17. A emissão do BIRM aos residentes de Macau realizada pela DSI é um acto vinculado, a lei prevê directamente o conteúdo do acto, não tendo a DSI qualquer poder de escolha quanto ao conteúdo do acto. Por isso, nisto não existem qualquer margem para discricionariedade e liberdade para deliberação.
18. A DSI não pode emitir o BIRM a indivíduos não qualificados, quando faltam fundamentos de facto; senão o acto será ilegal.
19. No presente caso, como o recorrente contencioso não satisfaz as disposições legais e não é residente permanente de Macau, a DSI deve declarar nos termos legais que foi nulo o acto de emitir ao recorrente contencioso o BIRM permanente, e cancelar o BIRM permanente portado pelo recorrente contencioso. Por isso, não existiu violação dos princípios tais como o de legalidade previstos pelo CPA, nem tem o vício de violação de lei.
20. No presente caso, os actos praticados pela DSI, de emitir o BIRM ao recorrente contencioso, de emitir-lhe o BIRM permanente por substituição, e de renovar-lhe o BIRM permanente, nos termos do art.º 122.º, n.º 1 e n.º 2, alínea i) do CPA, foram todos actos nulos.
21. Nos termos do art.º 123.º, n.º 1 do CPA, o acto nulo não produz quaisquer efeitos, mesmo desde o princípio. Por outras palavras, o período no qual o recorrente contencioso residiu em Macau não foi o caso de residência legal em Macau. Mesmo que o recorrente contencioso tenha residido em Macau por 7 anos, isto não conta para o período de residência habitual. Portanto, ele não satisfaz o previsto pelo art.º 1.º, n.º 1, alínea 2) da Lei n.º 8/1999, e não é residente permanente de Macau. Além disso, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, o recorrente contencioso não satisfaz os princípios gerais jurídicos, e não lhe é aplicável o efeito jurídico conferido pelo número.
22. Na realidade, a DSI já rectificou a certidão de narrativa do registo de nascimento do recorrente contencioso; do qual não consta o nome do pai, e só consta que a mãe é a residente do Interior da China C. E o recorrente contencioso não conseguiu provar que ao nascer em Macau, o pai ou a mãe fosse residente de Macau ou residisse em Macau legalmente. Portanto, pode-se ver que o recorrente contencioso já perdeu o fundamento pelo qual é qualificado para ser residente de Macau. E a consequência da perda do fundamento é que não é admitido que ele seja residente de Macau.
23. Se um indivíduo obteve BIRM enganosamente por modos ilegais, passado algum tempo, nos termos do art.º 1.º, n.º 1, alínea 2) da Lei n.º 8/1999, a autoridade administrativa admite que por ter residido habitualmente em Macau por 7 anos consecutivos, é residente permanente de Macau. Isto equivaleria a que a autoridade administrativa encorajasse a prática do crime e ajudasse o criminoso a obter o BIRM enganosamente por modos ilegais. Isso não é absolutamente a intenção original da legislação do artigo acima citado. E seria uma violação da ordem pública.
24. Nestes termos, como o recorrente contencioso não satisfaz o disposto no art.º 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, o art.º 24.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, o art.º 1.º, n.º 1, alíneas 1) e 2), art.º 5.º, art.º 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 8/1999, o art.º 2.º, n.º 2, art.º 3.º, n.º 1 da Lei n.º 8/2002, o recorrente contencioso não é residente de Macau e não tem o direito de obter o BIRM. Portanto, é infundamentada a afirmação do mandatário judicial, que disse que a entidade recorrida tinha violado o direito básico do recorrente contencioso, de obter o BIRM permanente.
Nestes termos, pede-se ao Mm.º Juiz decidir não dar procedência ao presente recurso contencioso e sustentar o acto administrativo da entidade recorrida. Pede-se justiça ao Mm.º Juiz.”
*
Nenhuma das partes apresentou alegações “facultativas”.
*
O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
“É exacto, tal como sustenta o recorrente, que o erro nos pressupostos de facto conduz à mera anulabilidade do acto, convalidando-se este com o esgotamento do prazo da respectiva impugnação. Se fosse isso que estivesse em causa, seria óbvia a conclusão de que o acto agora impugnado não poderia ter concluído pela nulidade da atribuição de BIR ao recorrente, em 1996, e dos actos que posteriormente converteram aquele documento em BIRP, em 2003, e o renovaram em 2008 e 2013. Mas, salvo melhor opinião, o fundamento de nulidade invocado no acto não radica no aludido erro nos pressupostos, mas sim em falta de um elemento essencial. E esse elemento essencial - estamos a falar no acto de emissão do BIR, na sua conversão em BIRP e nas subsequentes renovações - cuja falta redundaria na nulidade do acto, traduzir-se-ia na verdade dos fundamentos imprescindíveis à emissão do BIR, ou seja, o nascimento em Macau e a condição de residente de um dos progenitores.
Temos dúvidas de que a inexactidão ou falsidade do fundamento ou pressuposto "residência de um dos progenitores" revista a gravidade necessária para acarretar a nulidade do acto de emissão do BIR fundada na falta de um elemento essencial, pois este documento não tem por finalidade atestar ou certificar a residência dos progenitores do seu titular.
Todavia, e independentemente da procedência deste argumento da nulidade baseada na falta de um elemento essencial, temos que considerar uma outra causa de nulidade, que o recorrente também aborda na sua petição de recurso, e que o levou a afirmar que só poderia invocar-se a nulidade do acto de emissão se viesse a demonstrar-se, em sede penal, que o facto decisivo para a emissão do BIR encerra a prática de um crime. Ora isso está agora comprovado, com o trânsito em julgado do acórdão condenatório de 14 de Setembro de 2018, confirmado pelo Tribunal de Segunda Instância, mediante acórdão de 20 de Junho de 2019 (cf. fls. 79 e seguintes), donde resulta que o iter conducente à prolação do acto de emissão contou com a prática de um crime que influenciou o sentido do acto, ou seja, a emissão do BIR. Pois bem, em face da doutrina mais avalizada, identificada, v.g., no acórdão de 30 de Maio de 2018, do Tribunal de Última Instância, e da interpretação extensiva que preconiza, estará preenchida a causa de nulidade prevista no artigo 122.º, n.º 2, alínea c), do Código do Procedimento Administrativo (acto cujo objecto constitua um crime).
Daí que se mostre insubsistente este primeiro fundamento do recurso.
Seguidamente, o recorrente afirma que o acto atenta contra o princípio da legalidade, pois nenhum normativo legal prevê o cancelamento do BIR.
A ordem de cancelamento ancora-se na declaração de nulidade da emissão do BIR, e constitui o corolário lógico dessa declaração de nulidade, traduzindo uma operação de execução do próprio acto recorrido. Como é sabido, os actos nulos não produzem efeitos jurídicos, impondo-se, no plano material, evitar a possível utilização de um título obtido mediante um acto nulo e assim declarado, o que justifica plenamente aquele cancelamento.
Nenhum atropelo à lei se divisa com a censurada actuação, pelo que improcede também este vício.
Por fim, o recorrente diz que o acto recorrido viola o seu direito fundamental à emissão do título de cidadão residente permanente de Macau, afrontando os artigos 24.º da Lei Básica, 9.º, n.º 2, alínea 1), da Lei 8/1999, e 3.º, n.º 1, da Lei 8/2002.
O raciocínio do recorrente apresenta-se falacioso, pois parte do princípio de que nenhum problema houve com a obtenção do seu primitivo BIR e com as renovações que se seguiram. Ora, como vimos, o BIR primitivo foi obtido através de acto nulo, que, por isso, não produz os efeitos de que o recorrente pretende prevalecer-se. E o certo é que nenhum dos preceitos agora invocados, que abordam a aquisição da condição de residente e a emissão do respectivo documento de identidade, afasta a nulidade do acto de emissão de BIR e as suas consequências.
Improcede, igualmente, este fundamento do recurso.
Questão não aflorada, quer pelo acto recorrido, quer pelo recorrente, é a da atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, mas consolidadas pelo decurso do tempo, o que aparece expressamente previsto no artigo 123.º do Código do Procedimento Administrativo, que prevê o regime das nulidades.
O caso do recorrente é paradigmático, nesse aspecto, dado tratar-se de cidadão que, desde que nasceu, há 23 anos, em Macau, sempre aqui foi pública e pacificamente tido como residente, sempre beneficiando do inerente estatuto, que o acto recorrido agora veio pôr em xeque.
O recorrente é, afinal, uma vítima, não tendo contribuído, remotamente que fosse, para a falsificação que desencadeou a situação em que agora se vê envolvido, o que, em tese, justificaria amplamente a atribuição de efeitos jurídicos, em matéria do direito de residência e de obtenção de BIRP, à sua situação de facto.
Crê-se, no entanto, que, sendo o recurso contencioso de mera legalidade, estará vedado ao tribunal, nestas circunstâncias, fazer uso da, prerrogativa prevista no artigo 123.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo, o que inviabiliza a atribuição daqueles efeitos por via judicial.
Ante quanto fica exposto, improcedem os vícios apontados ao acto, pelo que deverá negar-se provimento ao recurso. ”
*
Cumpre decidir.
***
II – OS FACTOS
1 - O recorrente contencioso, A, nasceu em Macau aos 25 de Junho de 1996, portador do registo de nascimento n.º XXX emitido pela Conservatória do Registo de Nascimento, do qual consta que é filho do residente de Macau B [portador do BIRM permanente n.º XXX] e da residente do Interior da China C.
2 - Em 1 de Julho de 1996, representando o recorrente contencioso, B pediu pela primeira vez BIRM à DSI. Conforme as informações constantes do registo de nascimento acima referido, como o pai do recorrente contencioso era residente de Macau, a DSI emitiu, pela 1.ª vez, o BIRM n.º XXX ao recorrente contencioso nos termos legais.
3 - Aos 22 de Agosto de 2003, a DSI emitiu ao recorrente contencioso o BIRM permanente n.º XXX por substituição. Em 21 de Julho de 2008 e em 12 de Julho de 2013, foi autorizada a renovação do BIR.
4 - Mais tarde, com o motivo de reunião do casal, B pediu a fixação de residência em Macau para o seu cônjuge do Interior da China D.
5 - B afirmou, ao elaborar auto na DSI em 9 de Agosto de 2010, “ A não é meu filho. Ele é filho de C com um outro. Porque a data de nascimento dele não corresponde à data quando tivemos relações. Não sei quem é o pai dele.”
6 - Face a esta afirmação, em 7 de Agosto de 2013, a DSI ouviu em auto de declaração C, que então afirmou “4 ou 5 anos depois do nascimento de A, descobri que A não é filho de B. Não tenho a certeza quem é o pai de A; mas julgo que seria E o pai dele.”
7 - Para confirmar a relação de filiação entre o recorrente contencioso e B, a DSI pediu à PJ a realização de teste de filiação por DNA.
8 - Em 25 de Novembro de 2013, a DSI recebeu da PJ o relatório pericial de filiação n.º BIO2013-298 do teste de filiação realizado ao recorrente contencioso, B e C. Na conclusão do relatório, foi indicado, “B não é o pai biológico de A”.
9 - Mais tarde, em 18 de Setembro de 2017, a DSI recebeu a decisão proferida pelo Juízo de Família e de Menores do TJB em 27 de Maio de 2015 e remetida pelo MP, que declarou que B não era o pai biológico do recorrente, e determinou o cancelamento do respectivo registo de nascimento no que se refere à paternidade e avoenga paterna.
10 - A DSI também já rectificou a certidão narrativa do registo de nascimento n.º 2748/1996/CR do recorrente, do qual já não consta o nome do pai, apenas mencionando o nome da mãe, C, residente do Interior da China.
11 - Em 13 de Outubro de 2017, a DSI comunicou ao recorrente contencioso a intenção de cancelar o seu BIRM permanente n.º XXX que tinha sido emitido pela 1.ª vez em 1 de Julho de 1996 (ofício n.º 619/GAD/2017).
12 - Aos 23 de Outubro de 2017, o recorrente contencioso pronunciou-se em audiência de interessados.
13 - Em 6/11/2017, a DSI decidiu cancelar o BIRM permanente n.º XXX portado pelo recorrente contencioso, e comunicou o recorrente contencioso no mesmo dia (ofício n.º 650/GAD/2017).
14 - Não conformado com a decisão da DSI, aos 30 de Novembro de 2017, o recorrente contencioso interpôs recurso hierárquico necessário.
15 - Em 18 de Dezembro de 2017, a DSI recebeu a sentença proferida pelo Juízo Criminal do TJB aos 10 de Novembro de 2017 (autos n.º CR3-16-0135-PCC).
16 - O tribunal declarou, devido à insuficiência das provas, que não estava provado que C e B tivessem cometido o “crime de falsificação de documento” e absolveu os dois arguidos.
17 - Da sentença absolutória acima mencionada, o MP recorreu. Aos 11 de Maio de 2018, o TJB comunicou à DSI, e foi fixada a data de 20 de Junho de 2018 para o novo julgamento do processo.
18 - Foi emitido o Parecer nº 90/DAG/2017, com o seguinte teor:
1. A parte A nasceu em Macau no dia 25 de Junho de 1996, titular do registo de nascimento n.º XXX emitido pela Conservatória do Registo de Nascimentos, filho de B (titular do BIRPM n.º XXX) e da mãe residente do Interior da China.
2. No dia 1 de Julho de 1996, B, em representação da parte, pediu o BIRM junto da DSI pela primeira vez. E a DSI, em conformidade com os elementos do registo de nascimento supracitado, emitiu, pela primeira vez, o BIRM n.º XXX à parte.
......
12. Dado que os pais não tinham identidade de residente de Macau nem residiam legalmente em Macau quando a parte nasceu em Macau, a parte não tinha identidade de residente de Macau.
......
15. o Juízo Criminal do TJB proferiu decisão em 10 de Novembro de 2017, condenando improcedente o crime de falsificação de documentos acusado contra C e B por insuficiência de provas.
17. Dado que o pai era residente de Macau quando a parte nasceu, a DSI emitiu, pela primeira vez, o BIRM n.º XXX à parte em 1 de Julho de 1996.
......
20. A Conservatória do Registo Civil já rectificou a certidão de narrativa de registo de nascimento n.º 2748/1996/CR da parte, dele não se consta o nome do pai, apenas o nome da mãe C.
......
23. Portanto, o acto da DSI da emissão do BIRM n.º XXX e da substituição e renovação do BIRPM n.º XXX da parte é nulo por falta de elementos essenciais nos termos do art.º 122.º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, e os actos consequentes de acto anteriormente nulo também são nulos for força do n.º 2 al. i) do mesmo artigo, pelo que a presente Direcção cancelou em 6 de Novembro de 2017, nos termos legais, o BIRPM n.º XXX da parte emitida, pela primeira vez, em 1 de Julho de 1996.
19 - A Secretária para a Administração e Justiça proferiu o seguinte despacho (a.a.):
“1. Nos termos do CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M, de 11 de Outubro, especialmente o art.º 11.º, os art.os 159.º a 162.º, conjugados com o n.º 1 da Ordem Executiva n.º 109/2014, a signatária concorda com a análise e os fundamentos no presente parecer; decide rejeitar o recurso hierárquico e sustentar a decisão original da DSI.
2. Entregue-se à DSI para a comunicação nos termos legais.
A Secretária para a Administração e Justiça
(ass.: vd. o original)
CHAN HOI FAN
Aos 4 de Janeiro de 2018”
20 - C, mãe do recorrente, e B, na sequência do relatado no facto 17, foram novamente julgados e, por sentença datada de 14/09/2018, condenados pela prática, em co-autoria material na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p.e p. pelo art. 11º, nº2, da Lei nº 2/90/M, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos (fls. 80-96 e 98 dos autos e 79 a 98 do apenso “traduções”).
21 - Esta sentença viria a ser confirmada em sede de recurso jurisdicional pelo Ac. do TSI, de 20/06/2019 (fls. 99 e sgs. do apenso “traduções”).
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IV – O DIREITO
1 - O caso
O recorrente foi registado em Junho de 1996 como sendo filho de B (pai) e de C (mãe), aquele residente permanente de Macau, esta residente no interior da RPC.
Nessa qualidade, obteve desde logo BIRPM, que lhe foi sendo sucessivamente renovado.
No entanto, o declarado pai, B, pretendendo obter a residência para a sua mulher D, afirmou em 2010 na DSI que o ora recorrente não era seu filho, mas de C e outro homem, o que foi confirmado pela mãe, entretanto chamada a prestar depoimento no âmbito deste caso, e também pelo teste de paternidade efectuado pela Polícia Judiciária.
Esta confirmação levou ao cancelamento no registo de nascimento da indicação acerca da paternidade e avoenga paterna e ao cancelamento do BIRM ao recorrente.
É contra esta última decisão que o recorrente agora se rebela.
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2 - Os Vícios
i) Violação de lei, por atentado contra um acto anulável já sanado com o mero decurso do tempo (art. 124º, do CPA);
ii) Violação de lei, por cancelamento do BIR, apesar de o recorrente, residir em Macau desde que nasceu, há 22 anos (logo há mais de sete anos, necessários para obtenção do título de residente permanente);
iii) Violação de lei, por ofensa ao conteúdo essencial de um “direito fundamental”, que é o de obter a emissão do BIRM a quem é residente (art. 24º da Lei Básica; art. 9º, nº2, al. 1), da Lei sobre Residentes Permanentes e Direito de Residência da RAEM; art. 3º, nº1, da Lei nº 8/2002 e 122º, nº2, do CPA).
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2.1 - Do 1º vício (Violação de lei)
Temos alguma dúvida em classificar convenientemente este vício, porque não foi claramente caracterizado.
Pensamos que o recorrente quer dizer o seguinte: Se o registo de nascimento foi feito com base num erro (nos pressupostos de facto, como diz, já que B se declarou ser seu pai era, o que não correspondia à verdade), ele (erro) nunca daria lugar a nulidade, mas a anulação do acto que mandou emitir o BIRM. No entanto, como ninguém até ao presente impugnou esse acto, deve considerar-se que ele já “transitou em definitivo” (sic). E a ilegalidade do acto ora sindicado resultaria do facto de ter ofendido o acto válido, porque “automaticamente sanado” e insindicável.
Vejamos.
É certo que o registo de nascimento e o consequente acto que concede a “residência permanente em Macau”, com a emissão do respectivo título, assentou num errado pressuposto de facto. Efectivamente, o recorrente não era filho de um cidadão chinês residente permanente em Macau. E por tal motivo, o eventual acto administrativo que lhe concedeu o título de residente permanente de Macau era, em termos gerais, anulável.
Só que o caso aqui, mais do que preencher um simples erro nos pressupostos de facto, revela especialmente a prática de um acto assente numa falsidade cometida por um dos progenitores do recorrente, quando na declaração registral o declararam filho de um residente permanente de Macau, quando essa não era a realidade: ele, o recorrente, era filho de outro pai, não residente!
O recorrente faz aqui um paralelismo com a insindicabilidade que resulta do acto firme e do caso resolvido, análogo ao caso julgado em direito processual civil. Mas labora em confusão.
Em primeiro lugar, costuma falar-se da figura do caso decidido ou resolvido a propósito de actos não impugnados pelo administrado, apesar de ter podido fazê-lo. Mas, o caso aqui é oposto. É ele quem invoca o caso decidido pelo facto de ninguém ao acto ter oposto impugnação. Mas, quem o haveria de impugnar neste caso concreto? A própria Administração? Como, se teve por boa e verdadeira a declaração registral, por não ter motivos para dela suspeitar? Não faz sentido e também não se vislumbra ninguém que o pudesse impugnar naquela ocasião.
Em segundo lugar, quando se aborda esta questão, habitualmente ela está relacionada com um acto administrativo específico, cuja não impugnação em concreto pode servir de matéria de excepção, invocável pela parte a quem ela aproveita, seja a entidade administrativa recorrida, seja, eventualmente, algum contra-interessado. Ora, o que está aqui em causa não é o acto que concedeu pela primeira vez, ou posteriormente nalguma das renovações, o BIRM ao recorrente. O que ora está em crise é o acto que o cancelou, e isso faz toda a diferença.
Em terceiro lugar, o fundamento remoto utilizado pelo acto sindicado é a nulidade do acto de atribuição do BIRM ao recorrente, porque assente na prática de um crime. Ou seja, na perspectiva da entidade recorrida, o acto de atribuição do BIRM (e das suas renovações) jamais se poderia ter tornado firme ou intangível. E neste pressuposto, a nulidade poderia ser invocada a todo o tempo, tal como resulta do disposto no art. 123º, nº2, do CPA.
Certo é que o acto ora sindicado, remetendo para o parecer que o precedeu, acolheu a ideia de que ao acto inicial de concessão de BIRM (e renovações posteriores) faltava um elemento essencial, dizendo-o nulo por isso.
Elemento essencial, não, face ao art. 122º, nº1. Todos os elementos essenciais do acto de atribuição do BIRM estavam todos reunidos; o que faltava, isso sim, era o pressuposto de facto verdadeiro. Ou seja, o pressuposto fáctico em que o BIRM foi atribuído não existia ou era falso: o recorrente não era filho de B. Aí residirá a confusão fundamentativa do acto em crise, pois ao falar na essencialidade da filiação verdadeira, o que verdadeiramente está o acto a dizer é que a filiação que justifique a atribuição do estatuto de residente permanente de Macau não pode ser errada. Mas isso é diferente da verificação, ou ausência dos elementos essenciais constitutivos do acto.
Mas aquele acto inicial pode ser efectivamente nulo.
Em primeiro lugar, face ao disposto no do art. 122º, nº 2, al. c), do CPA e Ac. do TUI, de 30/05/2018, Proc. nº 29/2018.
Trata-se, efectivamente, de uma invalidade absoluta que decorre antes da circunstância de o acto - que autoriza a emissão do BIRM pela primeira vez - derivar de um facto criminoso, que foi, precisamente, a declaração falsa acerca da paternidade do recorrente por parte da mãe e de B, que o nº2, do art. 11º, da Lei nº 2/90/M manda punir por equivalência à pena correspondente ao crime de falsificação de documento.
Em segundo lugar, enquanto consequência de um acto de registo também ele nulo, face ao disposto no art. 66º, al. a) e 67º, al. b), ambos do Código de Registo Civil (falsidade do registo por ter sido obtido em erro acerca da identidade das partes).
Quanto a este vício, portanto, improcede o recurso.
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2.2 - Do 2º de vício de violação de lei
Violação de lei, por cancelamento do BIR sem norma que o preveja, dada a natureza não constitutiva do título.
Sendo verdade que o cancelamento do BIRM não está previsto expressamente na Lei (Lei nº 8/2002 e DL nº 19/99/M), mas apenas a retenção, apreensão e destruição do documento, nos casos consignados nesses diplomas, a verdade é o cancelamento do BIRM tem aqui o sentido de acto contrário ao da sua emissão, o carácter de acto revogatório do acto de emissão/renovação explicado como execução da perda do direito de residência face à nulidade.
Se a emissão do BIRM compete expressamente à Direcção dos Serviços de Identificação (DSI), nos termos do arts. 1º, 2º, al. b), DL nº 31/94/M, de 20/06, alterado pelo DL nº 39/98/M, de 7/09, e art. 1º e 2º, alínea 2), do Regulamento Administrativo nº 29/2017, bem como do art. 2º, nº3, da Lei nº 8/2002, é logica e implícita a competência para a denegar e, sempre que for o caso, cancelar o BIRM já emitido, sempre que se conclua que a emissão foi estabelecida em erro e com base em actos administrativo e de registo civil nulos.
Na verdade, a competência dispositiva baseada na lei para a prática de actos administrativos pelos seus autores já contém, em geral, implicitamente (Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, I, 10ª ed., pág. 468; Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, I, 2ª ed., 2002, pág. 610) a competência para a sua revogação (cfr. art. 131º, nº1, do CPA). Ou seja, o poder que o órgão recebe da lei para decidir sobre determinados assuntos através de determinado acto administrativo já inclui implicitamente o poder de lhe pôr termo, nomeadamente através de cancelamento do BIRM, que, dentro da tipologia dos actos, não é mais do que um acto secundário desintegrativo.
De resto, este acto, bem ou mal, limita-se a extrair a consequência do acto nulo da concessão do BIRM. E para o fazer, não é preciso que a lei preveja o exercício desse poder desintegrativo, porque ele está imanente no quadro da competência explícita que a lei conferiu ao respectivo órgão administrativo (Freitas do Amaral, ob. e loc. cits.).
Improcede, pois, o vício em apreço.
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2.2.1 - (Cont.)
Acha a recorrente que o BIRM não é um documento constitutivo e que, por isso, não devia ser determinado seu cancelamento. É verdade que o BIR não constitui o direito, sendo mero documento que atesta ou certifica a qualidade do seu titular. Faz a prova da identidade e da residência do seu portador (art. 2º e 3º da Lei nº 8/2002 e art. 1º, nº1, do DL nº 19/99/M)
Mas, como parece lógico, uma vez que desapareça a causa da sua emissão, isto é, logo que o direito de residência deixe de fazer parte do acervo de direitos do recorrente, o seu cancelamento apresenta-se como uma decorrência lógica e natural. Assim, este argumento trazido pelo recorrente é irrelevante.
Improcede, pois, este fundamento.
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2.3 - Do 3º de vício de violação de lei
Por último, o recorrente entende que o acto administrativo sindicado incorre no vício de violação de lei, por ofensa ao conteúdo essencial de um “direito fundamental”, que é o de obter a emissão do BIRM a quem é residente (art. 24º da Lei Básica; art. 9º, nº2, al. 1), da Lei sobre Residentes Permanentes e Direito de Residência da RAEM; art. 3º, nº1, da Lei nº 8/2002 e 122º, nº2, do CPA).
Também aqui falta razão ao recorrente.
As normas citadas em nada dão apoio à posição que ele defende. Elas, simplesmente, estabelecem em abstracto os requisitos para a atribuição do direito de residência. Mas, a sua aplicação concreta, seja para conceder o direito, seja para o retirar, obedece a parâmetros rígidos que o aplicador deve observar com rigor.
Assim, o facto de lhe ter sido concedida a residência permanente e lhe ter sido proporcionado o direito às sucessivas renovações não é oponível à Administração, se esta tiver chegado à conclusão de toda a sua actuação anterior ter sido o resultado de um erro emergente de um crime praticado pelos declarantes no acto do registo de nascimento.
Não é pelo facto de a Administração cometer uma ilegalidade num dado momento, mesmo que involuntariamente, que ela deve ficar amarrada para todo o sempre àquela actuação, sem poder corrigi-la posteriormente. Assim se explica a circunstância de os órgãos administrativos poderem revogar os seus actos, seja quando a revogação é anulatória, seja quando ela é ab-rogatória.
Também o facto de o recorrente aqui ter vivido durante 7 anos consecutivos, para os efeitos do art. 1º, nº1, al. 2), da Lei nº 8/1999. É que o estatuto de residência permanente derivado de uma residência habitual em Macau durante aquele período não pode deixar de ter por pressuposição intrínseca uma residência fundada na legalidade. De outro modo, e levado à letra pura o preceito, quem clandestinamente entrasse em Macau por via marítima e aqui vivesse escondido numa casa abandonada durante 7 anos, também teria direito a obter o estatuto de residente permanente. E, obviamente, o direito não poderia dar cobertura a essa situação.
Improcede, pois, este vício.
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3 - Questão diferente, e mais problemática, é a circunstância de o recorrente em nada ter contribuído para a ilegalidade original de que emergiu a prática do acto que lhe concedeu o direito de residência permanente e atribuiu o título respectivo (BIRM).
Estamos em crer que o caso deste recorrente se enquadra perfeitamente no âmbito da previsão do art. 123º, nº3, do CPA, quando permite que o mero decurso do tempo acabe por conferir efeitos jurídicos a uma situação criada com actos nulos (os chamados efeitos putativos). Tem sido este problema enquadrado mais frequentemente no caso dos funcionários e agentes putativos, quando nomeados ou providos sem os requisitos essenciais, desde que tenham exercido o cargo durante pelo menos dez anos de forma pacífica, contínua e pública.
Mas, como é evidente, a via aberta pelo nº3 citado tem um espectro de aplicação geral, abstracto e amplo, destinando-se a proteger, por imperativos de justiça, todas aquelas situações que escapam ao regime da nulidade, sempre que o decurso do tempo tenha aliviado a necessidade de invalidação e aconselhado a eliminação concreta da rigidez do regime da nulidade, perante certas circunstâncias. Se o mero decurso do tempo tem que ser levado em consideração, há outras circunstâncias que devem sopesar na atribuição de efeitos jurídicos ao abrigo do citado art. 123º, nº3.
E não pode haver melhor exemplo do que este para fazermos uma integração tranquila na previsão do citado normativo. Com efeito, é preciso não esquecer que o recorrente é a vítima de um acto nulo para o qual em nada contribuiu. Que culpa pode ter ele por ter nascido em Macau, e ser declarado filho de um pai que não era o seu verdadeiro progenitor, e aqui sempre ter vivido, por ser a sua terra natal até ao presente?! Imagine-se só que este recorrente era funcionário público deste há vários anos. Poderíamos nós anular os efeitos jurídicos dos actos que ele tenha praticado? Então, pela mesma ordem de ideias, também não parece que o pecado original se reflicta negativamente na sua esfera ao fim de 22 anos! Seria tremendamente injusto que ele, como terceiro de boa fé, fosse castigado por um ilícito que não cometeu.
Da mesma maneira que os actos praticados pelo funcionário nomeado ilegalmente (através de acto nulo), podem ser salvos pela via da putatividade do nº3, do art. 123º referido, como salva pode ficar a sua qualidade de funcionário, assim também, ao abrigo do mesmo normativo, eventualmente, pode vir a ser merecedor do estatuto de residente permanente quem sempre o teve, ainda que ao abrigo de um acto originariamente nulo, ao qual ele sempre foi, e é estranho, a não ser que outra causa que diga respeito ao recorrente a tal obste.
E esta é uma solução está de acordo com as mais relevantes, sensatas e justas doutrinas, de que é exemplo, a posição de Marcelo Caetano (Manual de Direito Administrativo, 10ª ed., pág. 644; Sérvulo Correia (Noções de Direito Administrativo, pág. 366), António Rebordão Montalvão (Código de Procedimento Administrativo, Almedina, pág. 213), Paulo Veiga e Moura (Função Pública, Regime Jurídico, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 31; Paulo Otero (Legalidade e Administração Pública, Almedina, 2003, pág. 1031 a 1033).
Se a conduta na qual se funda a nulidade tivesse origem no próprio recorrente, então não parece que devesse aproveitar-se dos efeitos favoráveis do acto nulo (Mário Esteves de Oliveira e outros, Código do procedimento Administrativo, 2ª ed., Almedina, pág. 655). Mas tal não é o caso e é ai precisamente que reside a injustiça clamorosa do caso em não lhe reconhecer o direito à residência permanente apesar de ele reunir todos os requisitos, menos o original, cuja culpa lhe escapa.
Declarar o cancelamento num caso destes até poderá, eventualmente, vir a ser entendido como um exercício abusivo do direito, por manifestamente ofensivo da justiça (Antunes Varela, Obrigações, I, 1982, pág. 465; Manuel de Andrade, Obrigações, 1958, pág. 63-64; sobre o assunto, ver ainda anotações 12ª e 16ª ao art. 326º do Código Civil Anotado, de Gil Oliveira e Cândido de Pinho, CFJJ, 2018, pág. 26-27).
Cremos, no entanto, que o recorrente não pode obter por esta via (recurso contencioso contra o acto de cancelamento do BIRM) aquilo que só estará em causa, se e quando pedir à entidade administrativa competente que lhe atribua o direito à residência com fundamento no art. 123º, nº3 do CPA e 326º do CC, “a contrario sensu”, e se quando tal lhe for negado. Ou seja, só se não lhe for deferido esse pedido1 é que poderá tentar os mecanismos reactivos apropriados, seja pela via do recurso contencioso com a expressa invocação do respectivo vício, seja pela via da acção a que se refere o art. 103º, do CPAC, ou se tal for o caso, da acção reconhecimento de direito a que alude o art. 100º.
No âmbito do presente recurso, porém, não podemos invalidar o acto.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 4 UCs.
T.S.I., 26 de Março de 2020
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Joaquim Teixeira de Sousa


1 Que, além do resto, sempre se justificaria ao abrigo do poder discricionário fundado em circunstâncias especiais e humanitárias.
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Rec. Cont. nº 147/2018 36