打印全文
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A Ex.ma Juíza de 1.ª instância julgou procedente a providência cautelar requerida por A – doravante designada por requerente - e determinou que as requeridas, 1.ª, B, 2.ª, C, 3.ª, D, 4.ª, E e 5.ª, F se abstenham de praticar quaisquer actos que, directa ou indirectamente, constituam disposição ou oneração, onerosos ou gratuitos, de eficácia real ou obrigacional, de qualquer ou da totalidade das 6200 acções da A de que a primeira requerida foi ou é titular.
Este procedimento cautelar é dependência de uma acção cível, que está pendente, proposta pela requerente contra as requeridas, em que aquela pede que seja declarada a exclusão da 1.ª Requerida ou da 2.ª Requerida, como sócias da A, com a extinção da participação social.
Em recurso interposto pelas requeridas 1.ª, B e 2.ª C, o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância (TSI), revogou aquela Sentença, julgando, assim, improcedente a providência cautelar, por considerar que não se verificava um dos requisitos necessários para o decretamento de qualquer providência cautelar: não haver fundado receio da lesão grave e dificilmente reparável do direito da requerente. E não se pronunciou sobre a existência ou não do outro requisito (probabilidade séria da existência do direito da requerente), por ter considerado prejudicada a questão, face à necessidade da existência cumulativa dos dois requisitos.
Recorre agora, para o Tribunal de Última Instância (TUI), a A, formulando as seguintes conclusões (as restantes conclusões referem-se a outra questão, já ultrapassada):
4. O Acórdão Recorrido conclui por que não se ache verificado um dos requisitos de que a lei faz depender a decretação da providência requerida enquanto providência inominada: periculum in mora
Porém, sem razão; essencialmente porque:
5. Os factos provados e assentes sob os números 40 a 45 revelam, concludentemente, segundo regras objectivas de experiência, a existência (sic) “de uma estratégia, intencionalmente montada e logicamente concebida, e uma vez levada a cabo atempadamente e com êxito, é capaz de tornar inútil a acção judicial de exclusão de sócio.” e
6. No plano estritamente objectivo, independentemente da intentio subjectiva das Recorridas, aqueles factos são, atento o efeito jurídico a que dão causa - a transmissão da participação de que as ora Primeira e/ou Segunda Recorridas sejam titulares no capital social da ora Recorrente - a neutralizar a viabilidade da acção de exclusão judicial de sócio relativamente à qual os presentes Autos correm por apenso.
7. Na situação, que é a dos Autos, em que o direito que a Autora pretende fazer valer só possa, nos termos da lei, ser exercido por meio de acção judicial intentada para o efeito, a ocorrência de facto que determine (sic) “a absoluta inutilidade da acção de exclusão de sócio” constitui, de per se, facto bastante para a aferição positiva do periculum in mora.
8. Tão pouco pode entender-se que a Sentença proferida e transitada no Autos de procedimento cautelar comum com o número CV3-02-0015-CAO-A excluam a verificação nos presentes do requisito de periculum in mora ou, mais amplamente, de desnecessidade ou desadequação da providência aqui requerida. Porque:
a) Atento o carácter acessório dos procedimentos cautelares, aquele não pode valer como modo de tutela de acção relativamente à qual não corra (haja corrido) por apenso e para protecção de cujo efeito útil haja sido decretado;
b) A ora Recorrente foi Requerida naqueles Autos, assumindo nos mesmos uma posição passiva e está, por isso, subordinada, inelutavelmente, às vicissitudes do pedido e da instância que possa vir a ocorrer na acção principal relativamente à qual aquela constitui um apenso;
c) O âmbito subjectivo de aplicação daquela e desta providência são diferentes e, por força da limitação subjectiva do efeito de caso julgado, aquela não impõe qualquer constrangimento às ora Terceira, Quarta e Quinta Recorridas (o que, aliás, veio a ser expressamente reconhecido pelo Acórdão recorrido);
9. A eventual (mas não provada nestes Autos) subordinação dos negócios de transmissão assentes nos §§ 40 a 45 da matéria de facto a condição suspensiva de levantamento da providência decretada nos Autos de numeração CV3-02-0015-CAO-A não altera ou diminui o sentido das conclusões antes enunciadas; porque:
a) A condição suspensiva, enquanto elemento natural do negócio no âmbito do qual é inserida, mantém-se na integral disponibilidade das partes no mesmo intervenientes;
b) Os negócios de transmissão de acções representativas do capital social de sociedade anónima não estão subordinados a outro requisito de validade formal que não seja a realização do endosse e
c) Nos termos do disposto no Artigo 1105º do Código Comercial, o endosso sob condição é nula, sendo esta (condição) tida por não escrita.
10. Acresce, em outra linha - já assente pelo próprio Tribunal de Segunda Instância - que a previsão estatutária de direito de preferência, por parte da sociedade ora Recorrente e, em segunda linha, dos seus sócios, na transmissão a terceiros de acções representativas do seu capital social não permite excluir a verificação do requisito de periculum in mora que deve justificar a decretação da providência aqui requerida; Porque:
a) As condições de que depende e a que está subordinada a preferência não são as mesmas a que a lei subordina a exclusão judicial de sócio, designadamente, mas não só, quanto à onerosidade para a sociedade que promove a acção de exclusão;
b) Na situação em que a sociedade ou os sócios, por razões próprias suas, optem (ou tenham de optar) por não exercer os direitos de preferência que a cada qual assistam, o sócio excludendo ter-se-á exonerado da sociedade, eximindo-se à consequência sancionatória máxima que a lei prevê para a sua conduta violadora de deveres como sócios; e
c) Na situação em que a sociedade ou os sócios exerçam os seus direitos de preferência ficam os mesmos, de novo, objectivamente impedidos de fazer valer o direito de exclusão enquanto mecanismo sancionatório do sócio prevaricador.
11. O douto Acórdão recorrido não questiona a verificação in casu dos demais requisitos de que depende a decretação da providência requerida, designadamente o do fumus boni iuris e o da adequação e não despropocionalidade da medida concretamente requerida;
12. A ausência de regulamentação legal específica sobre a exclusão judicial de sócio em sociedade anónima não tem o significado de que a mesma seja inadmissível: tal conclusão incorreria, aliás, em fundamental petição de princípio.
13. A análise do tipo real (por oposição ao tipo legal/tipo ideal) de sociedade permite estabelecer se, em concreto, em razão do seu carácter intuitus personae essencial, se deverá, em determinadas circunstâncias sancionar o sócio de sociedade por quotas com a respectiva exclusão (desde que ordenada por decisão judicial);
14. Não há razões legais atendíveis que justifiquem a impossibilidade de decretação da exclusão de sócio em sociedade anónima na circunstância genericamente enunciada na conclusão anterior. Assim:
a) A cláusula geral de ordem pública constitucional da Região Administrativa Especial de Macau impede a validade de vinculações jurídicas perpétuas;
b) É falso que a exclusão de sócio possa determinar, em qualquer circunstância, uma descapitalização da sociedade: a lei, na disciplina que institui nos termos do conjugadamente disposto nos Artigos 429°, no. 2 e no no. 3 do Artigo 373°, ambos do Código Comercial, previne, irremediavelmente, o risco de descapitalização sequer como possibilidade;
15. A análise dos Estatutos da ora Recorrente, complementadas pelo Parecer de Direito junto com as contra-alegações apresentadas ao Tribunal de Segunda Instância, revela, exaustivamente, o carácter personalístico da sociedade Recorrida, carácter essencial esse evidenciado, em especial, pelos dados seguintes:
a) Titulação do capital social por acções nominativas e a insusceptibilidade da sua conversão;
b) Previsão de um direito de preferência para a sociedade e para os sócios;
c) Exercício da preferência pela sociedade por deliberação do Conselho de Administração;
d) Deferimento graduado da preferência aos accionistas em razão da maior concentração de capital, depois em razão da antiguidade da participação no capital e, só depois, por rateio;
e) Actuação da preferência independentemente do modo ou tipo de acto ou negócio de transmissão e, bem assim, do tipo ou do número de acções proposto transmitir;
f) Regime especial para a verificação da qualidade de novo accionista da sociedade;
g) O direito de preferência dos accionistas na subscrição de acções emitidas em aumento de capital;
h) A consagração de uma espécie particular de acções conferentes de direito patrimoniais e políticos especiais, titulando um “prix de fondateur”;
i) A limitação aos sócios do acesso ao estatuto de membro do Conselho de Administração;
j) A previsão de maiorias qualificadas para deliberação da Administração;
16. Os factos em que se revela a violação grave e irremediável da affectio societatis acham-se provados indiciariamente e foram julgados definitivamente assentes pelo Tribunal de Segunda Instância;
17. Atenta a impertinência, por inaplicabilidade, do incidente de substituição processual por habilitação previsto no Artigo 2125º do Código de Processo Civil, não pode colher-se em tal eventual arguição qualquer fundamento para um eventual juízo de desadequação, ou de desnecessidade, da providência requerida nos presentes Autos;
18. Do mesmo modo, e com maior amplitude conclusiva, não pode entender-se que a transmissão de participações a um terceiro por iniciativa do sócio excludendo - ou o exercício, por essa via, de um direito (que não tem) de exoneração do grémio societário - constitua um facto fungível com a exclusão judicial do sócio; Porque:
a) A sociedade que pretenda excluir um sócio seu, porque entenda que só essa solução se mostre apta a neutralizar os danos que a respectiva actuação lhe cause ou possa causar, vê-se na contingência poder não chegar a ver apreciado o bom fundamento da respectiva pretensão e de tal extrair as consequências sancionatórias que a lei prevê; e
b) Tendo em atenção que essa transmissão a terceiro da participação detida pelo sócio em vias de ser excluído poderia fazer-se sem qualquer limitação, ao sócio em questão bastará actuar tal transferência para uma estrutura societária totalmente detida e/ou por si controlada passando, assim, a deter uma participação indirecta no capital da sociedade que promove a acção de exclusão - para poder continuar, através de tal veículo, a actuar de modo gravemente lesivo para os interesses da sociedade.
Normas violadas: Art. 326.º, n.º 1 e art. 332.º, ambos do Código de Processo Civil.

II – Os factos
Os factos considerados provados pelos Tribunais de 1.ª e Segunda Instâncias, são os seguintes:
1. A requerente é uma sociedade anónima, constituída por escritura pública outorgada em 18 de Maio de 1962.
2. Desde a data da sua constituição até 2001, foi a única entidade concessionária dos jogos de fortuna e azar da Região Administrativa Especial de Macau detendo a exploração dessa concessão em regime de exclusividade.
3. O seu capital social é de $85.250.000,00, integralmente subscrito e realizado em dinheiro, dividido e representado por oitenta e cinco mil, duzentos e cinquenta acções de $1.000 cada uma.
4. A lª requerida adquiriu 6.263 acções representativas do capital social da requerente.
5. A lª requerida sempre teve uma participação activa no funcionamento da requerente fazendo parte dos órgãos societários da requerente, designadamente, no Conselho Fiscal, desde 1980 a 1989, tendo sido nomeada, desde 1983, como Presidente desse Conselho.
6. Em 1989, foi eleita Administradora da requerente posição que manteve até 5 de Fevereiro de 2002.
7. Em finais de 2001 mas antes de 31 de Outubro de 2001, a 1ª requerida alegou ter procedido, em 15 de Março de 1983, à transmissão das acções que tinha adquirido e pediu à requerente que procedesse à inscrição dessa transmissão no livro de registo de acções.
8. Em 15 de Março de 1983, o Presidente do Conselho de Administração, G, e o Administrador Delegado, H lançaram o pertence nos títulos representativos dessas acções respeitante a essa transmissão.
9. Em 31 de Março de 1983, foi pago o imposto por essa transmissão à Repartição de Finanças do Conselho de Macau.
10. Em 29 de Junho de 2001, a requerente pediu autorização do Governo da RAEM para essa transmissão de acções.
11. Por ofício de 18 de Outubro de 2001, a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos comunicou a sua não objecção à efectuação da transmissão.
12. Em 31 de Outubro de 2001, o Conselho de Administração da requerente deliberou que o registo da transmissão de acções ficaria suspenso enquanto não fossem expostas ao Governo da RAEM as razões por que considerava que esta transmissão seria prejudicial à requerente, e até serem atribuídas as novas licenças para exploração do jogo na RAEM.
13. Antes de 31 de Outubro de 2001, a 2ª requerida manifestou o seu interesse, por escrito, junto do Governo, em obter uma licença para exploração do jogo da RAEM.
14. Em 26 de Dezembro de 2001, as lª e 2ª requeridas intentaram uma acção judicial, registada sob o n° CV2-02-0004-CPE, contra a requerente para averbamento de títulos respeitante a uma transmissão que alega ter efectuado em 15 de Março de 1983.
15. Em 7 de Janeiro de 2002, a 1ª requerida intentou contra a requerente e o seu accionista e Administrador Delegado, H, acção especial de exame judicial à Sociedade, registada sob o n° CV3-02-0006-CPE.
16. Nessa data, a lª requerida mantinha-se como Administradora da requerente.
17. Em 21 de Janeiro de 2002, a lª requerida intentou contra a requerente e contra H, e I, respectivamente Administrador Delegado e Secretário da requerente, acção judicial para prestação de informações e entrega de documentos, registada sob o n° CV3-02-0010-CPE, por alegada recusa de um pedido de informação ou acesso a informação anteriormente feito pela 1ª requerida.
18. Por carta de 11 de Janeiro de 2002, e dada a factualidade que envolvia as relações entre requerente e 1ª requerida, foi proposto, pelo Conselho de Administração, que esse pedido fosse submetido à apreciação dos accionistas, em Assembleia Geral Extraordinária a convocar para o efeito para o dia 5 de Fevereiro de 2002.
19. Em 5 de Fevereiro de 2002, a Assembleia Geral da requerente deliberou, por unanimidade, em reconhecer à 1ª requerida o direito de consultar pessoalmente todos os registos e livros da requerente e, no que respeita ao fornecimento de cópias de documentos, que cada requisição fosse apreciada caso a caso de modo a não serem postos em causa os interesses da requerente.
20. A lª requerida requereu contra a requerente a decretação de uma providência cautelar de suspensão das deliberações sociais, tomadas nessa mesma Assembleia Geral, a qual foi então registada sob o n° CAO-004-02-4A.
21. Tendo a providência sido indeferida.
22. Em 4 de Março de 2002, a 1ª requerida intentou a correspondente acção principal de invalidade de deliberações sociais, então registada sob o n° CAO-004-02-4A, a qual foi julgada improcedente.
23. Em Junho de 2002, a lª requerida deduziu queixa-crime contra o accionista e Administrador Delegado da requerente, H, por crimes de sequestro, coacção e ameaça cujos processos foram entretanto arquivados.
24. Em 26 de Novembro de 2002, a requerente intentou 6 acções ordinárias contra a 1ª requerida para pagamento de créditos, a saber:
1) Processo n° CV1-02-0018-CAO-E, no valor de HKD3.000.000,00.
2) Processo n° CV1-02-0018-CAO-F, no valor de HKD1.000.000,00.
3) Processo n° CV1-02-0018-CAO-B, no valor de HKD5.000.000,00.
4) Processo n° CV1-02-0018-CAO-A, no valor de HKD2.000.000,00.
5) Processo n° CV1-02-0018-CAO, no valor de HKD3.000.000,00, e
6) Processo n° CV1-02-0018-CAO-C, no valor de HKD20.000.000,00.
25. Nessas acções a lª requerida deduziu reconvenção pedindo a compensação dos créditos correspondentes aos dividendos que alegava ter direito e não terem sido distribuídos.
26. A 1ª requerida participou em todas as Assembleias Gerais para aprovação de relatórios de gestão, contas do exercício e proposta de distribuição de resultados.
27. Votou sempre favoravelmente as propostas de aplicação de resultados e o valor de dividendos deliberado distribuir em cada ano.
28. Nunca deduziu qualquer oposição, nem requereu qualquer esclarecimento ou manifestou qualquer intenção de discordância quanto ao proposto.
29. Durante mais de 12 anos fez parte do Conselho Fiscal da requerente, formulando sempre pareceres favoráveis ao relatório, balanço e contas, para que os mesmos fossem aprovados.
30. A partir de finais de 2001, a requerente enfrentava um momento crucial na prossecução da sua actividade, com a perda da concessão dos jogos de fortuna.e azar, em regime de monopólio.
31. A lª requerida enviou à requerente cartas dirigidas às Assembleias Gerais de 21 de Março de 2002 e 21 de Março de 2003 informando-a da sua não comparência nas mesmas e da sua intenção de votar desfavoravelmente qualquer proposta que pudesse vir a ser apresentada.
32. Em 29 de Maio de 2002, através de advogados seus na Região Administrativa Especial de Hong Kong, a 1ª Requerida enviou uma missiva a K, Administrador da J pela qual alegava a verificação de desvios de fundos das contas da requerente pedindo à J a investigação do assunto.
33. Em 30 de Maio de 2002, a lª requerida enviou cópia dessa carta para H, L, M, N, O, P, Q, R, S, T e U, sendo alguns deles Administradores da requerente.
34. Em 26 de Junho de 2002, a 1ª requerida enviou uma carta a K, Administrador da J alegando que era claro que houve desvio de fundos da requerente ameaçando apresentar queixa às autoridades competentes.
35. Ameaça essa que veio a repetir por carta enviada em 4 de Julho do mesmo ano.
36. Em 11 de Julho de 2002, em missiva dirigida a K, Administrador da J, invocou a verificação de uma actuação em conflito de interesses por parte do mesmo.
37. Em 18 de Dezembro de 2002, a lª requerida enviou uma carta ao K, ameaçando apresentar queixa à autoridade reguladora do mercado organizado de valores mobiliários da Região Administrativa Especial de Hong Kong - a Stock Exchange and Securities Futures Commission - alegando que a J não prestou ao mercado informação exacta acerca da requerente, em particular, no que diz respeito ao respectivo regime estatutário em matéria de restrições à transmissão de acções.
38. Em 27 de Março de 2003, a Assembleia Geral da requerente, por unanimidade, deliberou mandatar o respectivo Conselho de Administração para, no uso das suas competências e, se necessário, com o suporte de juristas especializados, estude e averigúe todos os prejuízos já ocorridos e em que a sociedade, os seus accionistas e membros dos órgãos sociais possam vir a incorrer em consequência do comportamento da 1ª requerida, bem como seja averiguada a responsabilidade directa da mesma por tais prejuízos, tomando as medidas e acções que se mostrem necessárias à protecção dos interesses da A.
39. Em 30 de Maio de 2005, o Conselho de Administração da requerente, por unanimidade, deliberou em dar instruções para que seja intentada acção judicial de exclusão da lª requerida da sociedade e apresentar à Assembleia Geral, em reunião extraordinária a ser convocada, a decisão deste Conselho, para que esta se pronuncie nos termos que julgar convenientes, sobre essa acção.
40. Em 10 de Junho de 2005, a requerente intentou a acção ordinária, registada sob o n° CV2-05-0037-CAO de que os presentes autos são apenso, pedindo que seja declarada a exclusão da lª requerida ou da 2ª requerida, como sócia da requerente, com a consequente extinção da respectiva participação social.
41. Em 24 de Junho de 2005, a lª requerida intentou uma acção declarativa de simples apreciação negativa, registada sob o n° CV3-05-0040-CAO, pedindo que seja declarado que a requerente não tem o direito de excluir a 1ª requerida enquanto sócia.
42. Em 27 de Junho de 2005, a lª requerida enviou à requerente uma carta pela qual comunicava que, nesse mesmo dia, teria procedido à doação, a favor da 3ª requerida, de 6.000 acções representativas do capital social da requerente.
43. Mais declarando que tal transmissão de acções teria sido aprovada pela 2ª requerida e que, no caso em que um Tribunal pudesse vir a reconhecer a 2ª requerida como a titular das acções objecto da transmissão, se deveria entender a dita transmissão de 6.000 acções como tendo sido realizada pela 2ª requerida nessa mesma data de 27 de Junho de 2005.
44. Em 28 de Junho de 2005, a lª requerida enviou uma nova carta à requerente em que comunicava que teria procedido à venda de 100 acções à 4ª requerida; e de 100 acções à 5ª requerida.
45. A lª requerida tomou conhecimento da decisão tomada pela requerente de proceder judicialmente à sua exclusão como sócia antes da interposição da acção referida no ponto 41 e dos actos referidos nos pontos 42 a 44.
46. A requerente é titular de 80% de participação social da V.
47. A requerente pretende constituir uma sociedade em Hong Kong para ser listada na Bolsa de Valores, passando essa nova entidade a deter a participação social que a requerente detém na V.
48. Por decisão judicial decretada no âmbito do processo registado sob o n° CV3-02-00 15-CAO-A, a 1ª e 2ª requeridas encontram-se impedidas de vender, onerar ou, por qualquer modo, dispor da totalidade da sua participação social
49. A requerente tem conhecimento dessa decisão.
50. Em Abril de 2005, o Administrador Delegado da requerente pretendia vender duas acções ordinárias ao preço de HKDl.000.000,00 cada uma.
51. A requerente não impugnou tal pretensão apesar da enorme diferença com o preço estipulado pela avaliação.
52. A 1ª requerida exerceu o seu direito de preferência consagrado no art° 7° do Estatuto da requerente para as adquirir por aquele preço.

III – O Direito
1. A questão a resolver
A questão a decidir é a de saber se o Acórdão recorrido violou a lei ao considerar que não se verificava um dos requisitos para a concessão da providência cautelar solicitada: não haver fundado receio da lesão grave e dificilmente reparável do direito da requerente.

2. Poder de cognição do TUI. Matéria de facto. Matéria de direito
As recorridas entendem que o TUI não pode apreciar a questão central do recurso por se tratar de matéria de facto, relativamente à qual o Tribunal não dispõe de competência.
É sabido que em 2.º grau de recurso (3.º grau de jurisdição), em matéria cível, o TUI não dispõe, em regra, de poder de cognição em matéria de facto (arts. 47.º, n.º 2 da Lei de Bases da Organização Judiciária e 649.º do Código de Processo Civil).
Parece, por outro lado, indiscutível que saber se um ou mais factos constituem receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito, o chamado periculum in mora (n.º 1 do art. 326.º do Código de Processo Civil) integra uma conclusão de matéria de facto1, e sobre tal questão o TUI não se irá pronunciar.
Só que, como se verá, o Acórdão recorrido para chegar a tal conclusão não se limitou a fazer a mencionada avaliação de saber se factos constituem receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente, mas estendeu a sua apreciação a outros domínios, que integram questões de direito e relativamente às quais o TUI pode e deve conhecer.
Iremos, pois, apreciar a fundamentação do Acórdão recorrido no que ao mencionado requisito concerne, qualificar as questões como de facto ou de direito e, por fim, apreciar as que sejam matéria de direito.

3. A pronúncia do Acórdão recorrido
O texto pertinente do Acórdão recorrido é o seguinte:
“Como acima se referiu, tal periculum in mora deve ser fundado e deve ainda ser indiciado que, com tal perigo em mora, causaria prejuízo de difícil reparação.
Digamos ser prejuízo de difícil de reparação os que têm contornos de irreversibilidade.
Por um lado, não tem este carácter de difícil de reparação o eventual prejuízo em consequência do tornar absolutamente inútil a acção de exclusão de accionistas contra as requeridas propostas.
Por outro lado, como demonstra o facto provado no ponto 48º - por decisão judicial decretada no âmbito do processo registado sob o n° CV3-02-0015-CAO-A - a 1ª e 2ª requeridas encontram-se impedidas de vender, onerar ou, por qualquer modo, dispor da totalidade da sua participação social, independentemente de saber se a conduta da doação das acções cuja disponibilidade esteja proibida se encaixe na responsabilidade legalmente definida nos termos do artigo 336° do Código de Processo Civil, ficará a requerente sempre legalmente protegida por esta medida mais forçada, nomeadamente em relação às 1ª e 2ª requeridas.
E mesmo que possamos considerar ser útil ordenar nos presentes autos contra as mesmas e mais outras requeridas, também não nos podemos encontrar fundamento fáctico para verificar este exigente perigo em mora nem prejuízo de difícil reparação para alcançar a finalidade da manutenção do status quo enquanto ocorre a acção principal em que se conhecer do seu pretenso direito de exclusão do sócio.
É que dos factos não se demonstra que, pelo menos as 3ª, 4ª e 5ª requeridas, estão a preparar ou começar a negociar a transmissão das acções da A para outras pessoas, quer singular quer colectiva”.

4. Periculum in mora quando o direito a acautelar só possa ser exercido por via judicial
Analisemos, pois, em pormenor, o Acórdão.
O 1.º fundamento para negar a existência de fundado receio de lesão do direito da requerente é o seguinte:
Por um lado, não tem este carácter de difícil de reparação o eventual prejuízo em consequência do tornar absolutamente inútil a acção de exclusão de accionistas contra as requeridas propostas.
E tendo sido pedida a aclaração deste segmento da fundamentação, o TSI explicitou o seguinte:
“Esta (frase) quer precisamente dizer que a absoluta inutilidade da acção de exclusão de sócio relativamente à qual a presente providência corre por apenso não constitui um prejuízo irreparável para a ora Requerida”.
Trata-se manifestamente, de questão de direito saber o eventual prejuízo consistente em tornar completamente inútil a acção principal, de que o procedimento cautelar é dependência, é de difícil reparação. Apreciemos, pois, esta conclusão.
Não é fácil entender esta conclusão do TSI, porque a mesma não se encontra fundamentada.
O que temos por certo é que o direito que a requerente pretende acautelar com a presente providência cautelar é o direito a excluir de sócio as 1.ª ou 2.ª requeridas, direito esse que só pode ser exercitado por meio de acção judicial.
Ora, sendo assim, a ocorrência de um facto que determine a inutilidade da acção de exclusão de sócio constitui não apenas prejuízo de difícil reparação, mas irreparável mesmo.
Repara-se que não está em causa saber se a não exclusão das 1.ª e 2.ª requeridas como sócias da A constitui, em si, um prejuízo de difícil reparação para a requerente. Na verdade, o requisito legal não consiste em saber se a manutenção das 1.ª e 2.ª requeridas como sócias da A prejudica muito ou pouco a sociedade.
E provavelmente foi a esta questão que o Acórdão recorrido respondeu.
A questão é outra. É a de saber se, procedendo as 1.ª ou 2.ª requeridas à alienação das acções da A, este facto prejudica a possibilidade de as mesmas 1.ª e 2.ª requeridas poderem ser excluídas de sócias da sociedade, já que é este o direito que a requerente A pretende ver reconhecido na acção principal e, portanto, acautelado neste procedimento cautelar.
Vistas as coisas sob este prisma – e não há outro possível - é evidente que um facto que inutilize a acção principal prejudica irremediavelmente o direito que se pretende ver reconhecido por meio da mesma acção, quando, como é o caso, o direito só pode ser exercitado por via judicial.
É o que explica A. ANSELMO DE CASTRO 2“Os procedimentos cautelares nada mais são que simples medidas destinadas a prevenir os perigos da natural demora do julgamento ou do curso de qualquer acção ... A inevitável demora do processo, ou ainda a necessidade de recorrer a ele, não deve ocasionar dano à parte que tem razão: a realização jurisdicional do direito deve proporcionar ao autor satisfação idêntica de interesses à que ele obteria através da realização pacífica e pontual do seu direito. A isto tendem os procedimentos cautelares”.
Acrescenta A. ABRANTES GERALDES “A principal função da tutela cautelar3 consiste, pois, em neutralizar os prejuízos a suportar pelo interessado que tem razão, derivados da duração do processo declarativo ou executivo e que não sejam absorvidos por outros institutos de direito substantivo ou processual com semelhante finalidade”.
As providências cautelares ou visam acautelar os resultados da acção, mantendo o statu quo para que ele se não altere em condições tais que não seja susceptível de reintegração (medidas conservatórias), ou antecipam a realização do direito que venha, eventualmente, a ser reconhecido, dada a urgência na sua efectivação (medidas antecipatórias).4
A providência cautelar dos autos visou a primeira das finalidades, teve uma função conservatória, teve por objectivo manter as coisas no estado anterior até que a acção principal venha a definir o direito. É que, sem o decretamento da providência cautelar, podia haver, em abstracto (como é evidente não nos pronunciamos sobre a questão de facto concreta, por nos falecer poder de cognição para o efeito, como dissemos atrás) alienação das acções. Ora, esta alienação prejudicaria irremediavelmente o eventual direito da ora requerente, pois já não seria possível decidir na acção principal se as 1.ª ou 2.ª requeridas devem ser excluídas de sócias da sociedade. Tornaria completamente inútil a acção principal.
Logo, se o direito que a requerente pretende ver reconhecido na acção principal, só pode ser exercido por meio dessa acção, qualquer facto que torne completamente inútil a acção principal, de que o procedimento cautelar é dependência, causa lesão grave e dificilmente reparável àquele direito.
Interpretou mal, portanto, o Acórdão recorrido os arts. 326.º, n.º 1 e 332.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Não parece que o disposto no art. 215.º do Código de Processo Civil, segundo o qual no caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, a sentença produz efeitos em relação ao adquirente, afaste o periculum in mora.
Sem prejuízo de melhor estudo, incompatível com a urgência de um procedimento cautelar e, porventura desajustado por se tratar de processo provisório, não está em causa qualquer litígio sobre uma coisa ou um direito, que possam ser transmitidos. Radicando a acção de exclusão em actos e comportamentos da 1.ª requerida, os mesmos não podiam levar à exclusão de outras pessoas, singulares ou colectivas, a quem esses comportamentos não fossem imputáveis.

5. A relevância de outra providência decretada para afastar o periculum in mora na presente providência
O segundo fundamento para negar a existência de fundado receio de lesão do direito da requerente é o seguinte:
Por outro lado, como demonstra o facto provado no ponto 48º - por decisão judicial decretada no âmbito do processo registado sob o n° CV3-02-0015-CAO-A - a 1ª e 2ª requeridas encontram-se impedidas de vender, onerar ou, por qualquer modo, dispor da totalidade da sua participação social, independentemente de saber se a conduta da doação das acções cuja disponibilidade esteja proibida se encaixe na responsabilidade legalmente definida nos termos do artigo 336° do Código de Processo Civil, ficará a requerente sempre legalmente protegida por esta medida mais forçada, nomeadamente em relação às 1ª e 2ª requeridas.
No mencionado procedimento cautelar, em que são requerentes W e X e requeridos A, B, Y e C, ficaram os requeridos impedidos de alienarem ou onerarem as acções que B possui na A e que são, também as que estão em causa no presente procedimento.
Pois bem, antes de mais, esta decisão judicial não vincula as 3.ª, 4.ª e 5.ª requeridas do presente procedimento, D, E e F, já que não foram partes naqueloutro procedimento cautelar.
Por outro lado, tal providência decretada (já no ano 2002) pode não se manter até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na acção de exclusão de sócios, de que o presente procedimento cautelar é dependência. Na verdade, a acção de que aquele procedimento é dependência pode chegar ao seu termo mais rapidamente do que acção dos nossos autos e levar à caducidade da providência decretada em 2002, por exemplo, se tal acção for improcedente, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 334.º do Código de Processo Civil. Acresce que tanto tal procedimento, como a respectiva acção, podem ver a instância extinta por várias causas, incluindo por desistência dos seus autores, por motivos que a ora requerente não controla, já que naquele procedimento é mera requerida.
Não é, pois, certo o juízo emitido pelo Acórdão recorrido no sentido de que ficará a ora requerente sempre legalmente protegida pela providência tomada no processo n.° CV3-02-0015-CAO-A.
Trata-se de matérias de direito. E quanto a estas não se pode pôr o problema de serem questões novas, já que quem interpôs recurso da sentença de 1.ª instância foram as requeridas. Já o recurso do Acórdão do TSI foi interposto pela requerente. É, pois, evidente, que a requerente não podia ter suscitado o problema anteriormente. Além de que se não se tratam de questões, mas de fundamentos de uma questão.

6. Matéria de facto
Como 3.º e último fundamento, considerou o TSI o seguinte:
E mesmo que possamos considerar ser útil ordenar nos presentes autos contra as mesmas e mais outras requeridas, também não nos podemos encontrar fundamento fáctico para verificar este exigente perigo em mora nem prejuízo de difícil reparação para alcançar a finalidade da manutenção do status quo enquanto ocorre a acção principal em que se conhecer do seu pretenso direito de exclusão do sócio.
É que dos factos não se demonstra que, pelo menos as 3ª, 4ª e 5ª requeridas, estão a preparar ou começar a negociar a transmissão das acções da A para outras pessoas, quer singular quer colectiva”.
Estas apreciações constituem pura matéria de facto, pelo que o TUI não as pode sindicar.

7. Conclusão
Como se viu, dois dos três fundamentos invocados no Acórdão recorrido para negar a existência do periculum in mora, não procedem. Subsiste um dos fundamentos, que o TUI não pode conhecer. Como assim é, o Tribunal não está em condições de decidir se mesmo assim a decisão da 1.ª instância é de manter. Por duas ordens de razões:
Em primeiro lugar, o fundamento subsistente refere-se a matéria de facto e o TUI não pode decidir se o TSI, sem a existência dos outros dois fundamentos, ainda teria mantido o mesmo sentido da decisão, já que o TUI não conhece de matéria de facto.
Em segundo lugar, como se viu, o TSI não interpretou correctamente o disposto nos arts. 326.º, n.º 1 e 332.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Cabe, pois, ao TSI, em nova apreciação, tendo em atenção o fundamento que invocou e que subsiste e a interpretação dada pelo TUI aos arts. 326.º, n.º 1 e 332.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, decidir se revoga ou mantém a decisão recorrida.

IV – Decisão
Face ao expendido, dá-se provimento parcial ao recurso e determina-se que o TSI, com os mesmos Juízes, em nova apreciação, tendo em atenção o fundamento que invocou e que subsiste e a interpretação dada pelo TUI aos arts. 326.º, n.º 1 e 332.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, decida se revoga ou mantém a decisão recorrida. E, se for caso disso, deve conhecer das outras questões suscitadas no recurso.
Custas na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente, pela recorrente e pelas 1.ª e 2.ª recorridas, tanto nesta instância, como na anterior.

Macau, 23 de Julho de 2008.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai – Chu Kin

1 J. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra Editora, 1948, p. 678 e J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 37.
2 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra, Almedina, 1981, Volume I, p. 130.
3 A. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2006, volume III, p. 41.
   4 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito..., Volume I, p. 131.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




29
Processo n.º 23/2008