Processo n.º 399/2019 Data do acórdão: 2020-4-2
Assuntos:
– processo penal
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– princípio da livre apreciação da prova
– art.º 114.º do Código de Processo Penal
– acórdão de louvor
– art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil
– art.o 4.o do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. Há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
2. O princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do Código de Processo Penal não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
3. Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
4. O tribunal de recurso pode louvar o acórdão recorrido, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 399/2019
Recorrente (demandada civil):
Companhia de Seguros da XXXX (Macau), S.A.
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão condenatório proferido a fls. 426 a 444v do Processo Comum Colectivo n.° CR4-18-0144-PCC (com enxerto cível de indemnização emergente de acidente de viação) do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte em que se julgou ser o condutor A (A) do veículo automóvel pesado dos autos o único culpado pela ocorrência do acidente de viação em consideração, veio recorrer a demandada civil denominada Companhia de Seguros da XXXX (Macau), S.A., imputando a essa decisão judicial erro notório na apreciação da prova com alegação, no seu essencial, do seguinte, para rogar que se passasse a atribuir ao ofendido demandante B (B) parte da responsabilidade pela produção do acidente, devido à preconizada violação, por este, do disposto nos art.os 30.o, n.o 1, e 40.o, n.o 3, da Lei do Trânsito Rodoviário (cfr. o teor da motivação do recurso com original apresentado a fls. 463 a 469 dos presentes autos correspondentes):
– o ofendido não regulou a sua velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via e a quaisquer outras circunstâncias especiais, pudesse, em condições de segurança, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe surja em condições normalmente previsíveis e ainda porque, ao concluir a ultrapassagem, retomou o lugar na sua via de trânsito, no entanto, sem se certificar que o poderia fazer em segurança;
– a violação por parte do ofendido dos referidos preceitos da Lei do Trânsito Rodoviário foi, também, uma das causas da produção do acidente dos autos, sendo incompreensível ter o Tribunal a quo determinado que ao arguido coube 100% da culpa na produção do acidente.
Ao recurso, respondeu o demandante civil (a fls. 475 a 479 dos autos), no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, opinou a Digna Procuradora-Adjunta (a fl. 493) que não tinha legitimidade para emitir parecer, por estar em causa matéria só civil.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido ficou proferido a fls. 426 a 444v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, apreciando:
A recorrente, sendo seguradora do veículo automóvel pesado conduzido pelo arguido aquando da ocorrência do acidente de viação dos autos, veio esgrimir à decisão judicial recorrida erro notório na apreciação da prova, para pretender a redução da percentagem da culpa do arguido condutor na produção do acidente.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP) quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, vê-se que o Tribunal já explicou, até com detalhes, o processo da formação da sua livre convicção sobre os factos constitutivos do objecto probando dos autos. E vistos, em global e de modo crítico, todos os elementos probatórios dos autos examinados pelo Tribunal a quo como tal referidos na fundamentação probatória do aresto recorrido, é evidente que esse Tribunal não violou qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, nem violou qualquer regra da experiência da vida humana, nem violou quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto, porquanto o resultado do julgamento de factos a que chegou esse Tribunal sentenciador não é desrazóavel. Por isso, improcede o assacado vício de erro notório na apreciação da prova.
Com base na matéria de facto dada por provada em primeira instância, o Tribunal a quo considerou que o arguido condutor foi o único culpado pela produção do acidente de viação.
Para o presente Tribunal ad quem, em face da factualidade descrita como provada (sem qualquer erro notório na apreciação da prova, nos termos acima analisados), da qual se sobressaem os factos provados 3 a 5, aliás já bem demonstrativos da culpa exclusiva do arguido condutor pela produção do acidente de viação em causa, é de subscrever todo o juízo de valor e considerações pertinentes já emitidos pelo Tribunal sentenciador (e expressos nos últimos cinco parágrafos da fundamentação probatória do aresto recorrido, concretamente nas páginas 16 a 17 do respectivo texto, a fls. 433v a 434 dos autos), por essas considerações já rebaterem lógica e congruentemente toda a tese defendida pela recorrente na questão da culpa pela ocorrência do acidente.
Há, pois, que louvar o acórdão recorrido, nos termos permitidos pelo art.o 631.o, n.o 5, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP, sem mais indagação por desnecessária ou prejudicada.
Nota-se que conforme o douto Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Venerando Tribunal de Última Instância, de 2 de Março de 2011, no Processo n.o 69/2010, os juros legais da quantia indemnizatória total (de MOP790.805,50) por que vinha condenada a recorrente em primeira instância são contados desde a data de proferimento do acórdão recorrido, até integral e efectivo pagamento.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em negar provimento ao recurso, com custas do recurso pela recorrente.
Macau, 2 de Abril de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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