Processo n.º 110/2020 Data do acórdão: 2020-5-21
Assuntos:
– recurso manifestamente improcedente
– reclamação para conferência
– objecto da decisão da reclamação
S U M Á R I O
1. O recurso deverá ser rejeitado por decisão sumária do relator quando for manifestamente improcedente, nos termos dos art.os 407.o, n.o 6, alínea b), e 410.o, n.o 1, do Código de Processo Penal, podendo o recorrente reclamar da decisão de rejeição para conferência.
2. A reclamação da decisão sumária do recurso não pode implicar a alteração do objecto do recurso.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 110/2020
(Autos de recurso penal)
(Da reclamação para conferência da decisão sumária do recurso)
Recorrente (arguida e ora reclamante):
A (A)
Recorrido (assistente):
B (B)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 655 a 665v dos autos de Processo Comum Singular n.° CR1-19-0168-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a arguida A (A), aí já melhor identificada, ficou condenada como autora material de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.o 329.o, n.o 1, do Código Penal, na pena de um ano de prisão, suspensa na execução por dois anos.
Inconformada, veio essa arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), alegando, no essencial, na sua motivação de fls. 731 a 744v dos presentes autos correspondentes, que as provas produzidas na audiência de julgamento não eram suficientes para efeitos de condenação do referido crime, para pretender a sua absolvição penal, com fundamento na violação, pelo Tribunal sentenciador, dos princípios da investigação, da verdade material e de in dubio pro reo.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 754 a 759 dos autos, no sentido de não provimento do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 770 a 771, opinando também pela manutenção do julgado.
Por decisão sumária do ora relator de fls. 773 a 775v, foi rejeitado o recurso, por manifestamente improcedente.
Veio a arguida recorrente reclamar dessa decisão para conferência, através do petitório de fls. 780 a 785, alegando, no essencial, que o seu recurso deve ser julgado procedente com consequente absolvição dela do crime de denúncia caluniosa, com fundamento na violação dos princípios da investigação, da verdade material e mormente de in dubio pro reo.
Sobre a matéria dessa reclamação, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fl. 788 a 788v no sentido de improcedência.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. A sentença recorrida pela arguida ora reclamante encontrou-se proferida a fls. 655 a 665v dos autos, cujo teor (que inclui a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. A decisão sumária do relator, ora sob reclamação, teve o seguinte conteúdo, inclusiva e materialmente, como fundamentação da própria decisão:
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente julgador do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Da análise da motivação da arguida recorrente, sabe-se que ela anda a fazer sindicar da livre convicção do Tribunal sentenciador sobre os factos constitutivos do objecto probando da causa penal em questão.
Nota-se que, desde já, que para se poder ver alterada a decisão da Primeira Instância sobre os factos, há que aquilatar se essa decisão padece do vício de erro notório na apreciação da prova, aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão condenatória penal recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, e até com muita minúcia, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos probandos respeitantes ao crime de denúncia caluniosa por que condenou a arguida – cfr. o teor da mesma fundamentação probatória, sobretudo tecida nas páginas 15 (a partir do seu terceiro parágrafo) a 18 do texto do aresto impugnado, a fls. 662 a 663v dos autos, no referente à análise crítica das provas dos autos quanto a esse crime (tendo o mesmo Tribunal explicado, no terceiro parágrafo da página 17 do mesmo texto decisório a fl. 663, por quê é que considerou crível a versão fáctica declarada pelo assistente).
Como esse resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, improcede obviamente a pretensão absolutória penal da recorrente com a alegada violação, por esse Tribunal, dos princípios da investigação, da verdade material e de in dubio pro reo, tendo ela se limitado a tentar fazer impor o seu ponto de vista pessoal sobre a factualidade assente no aresto recorrido, ao arrepio do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.o 114.o do CPP.
É mesmo de rejeitar o recurso, sem mais indagação por ociosa ou prejudicada, devido ao espírito do n.º 2 do art.º 410.º do CPP.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Veio a arguida reclamar para conferência da decisão tomada pelo relator pela qual foi rejeitado o seu recurso, por manifestamente improcedente.
Uma vez deduzida a reclamação dessa decisão sumária, o recurso inicialmente julgado pelo relator tem que ser julgado agora pelo tribunal de recurso em colectivo.
Cumpre, pois, ao presente Tribunal ad quem conhecer do objecto do recurso então interposto pela arguida, dado que a reclamação da decisão sumária do recurso não pode implicar a alteração do objecto desse recurso.
Pois bem, vistos todos os elementos dos autos, é de improceder a reclamação sub judice, porquanto há que manter, nos seus precisos termos, a decisão sumária de rejeição do recurso, por essa decisão do relator estar conforme com a matéria de facto já dada por provada (sem qualquer erro notório na apreciação da prova) em primeira instância e o direito aplicável aplicado concretamente na fundamentação jurídica da mesma decisão sumária.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a reclamação, mantendo a decisão sumária do relator de rejeição do recurso.
Para além das custas, taxa de justiça e sanção pecuniária referidas no dispositivo da decisão sumária, pagará ainda a arguida recorrente as custas da sua reclamação, com três UC de taxa de justiça correspondente.
Macau, 21 de Maio de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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