Processo n.º 149/2020
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 23 de Abril de 2020
ASSUNTOS:
- Elementos corpus e animus em matéria de usucapião
SUMÁRIO:
I – A usucapião pressupõe a posse que, se adquire pelo facto e pela intenção, definindo-se pelos elementos essencias que são corpus na aquisição unilateral, ou a traditio na aquisição derivada, e o animus.
II – Faltando elementos fácticos necessários à comprovação do elemento animus, é razão bastante para julgar improcedente o pedido da usucapião formulado pelo Autor.
O Relator,
________________
Fong Man Chong
Processo nº 149/2020
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 23 de Abril de 2020
Recorrente : - B (B)
Recorridos : - C (C)
- Herdeiros desconhecidos de D ou D1
- Interessados incertos
*
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
B (B), Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 18/07/2019, dela veio, em 29/10/2019, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 155 a 186, tendo formulado as seguintes conclusões :
1. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida nos presentes autos, que julgou improcedente o pedido do autor, e com a qual este não se conforma, por entender existir contradição entre a fundamentação e a decisão e erro na apreciação dos factos e do direito.
2. Através da pressente acção, o autor veio peticionar que fosse declarado, para todos os efeitos legais, designadamente para efeitos de registo na Conservatória do Registo Predial de Macau, como único e legítimo proprietário da fracção autónoma designada por "BR/C", do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau, com os nºs 5 a 9 da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2****, por usucapião.
3. Após citação edital dos réus, foi proferido despacho saneador pelo qual foi dispensada a selecção de matéria de facto e considerados controvertidos os factos alegados na petição inicial.
4. Entende o recorrente, salvo melhor opinião, que a sentença recorrida é nula por conter oposição entre os factos considerados como provados e a decisão, conforme adiante se demonstrará - art. 571º, n° 1, al. a), do CPC.
5. A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, que está dependente do exercício da posse - sctricto sensu e não a posse precária ou detenção -, durante um certo período de tempo - art. 1212° do CC.
6. Ora, o tribunal a quo decidiu que não estavam reunidos os pressupostos legalmente exigidos da posse, para declarar a aquisição por usucapião sobre o imóvel a favor do recorrente.
7. No entanto, deu como provado que o recorrente ocupa o dito imóvel e nele reside com a sua família, pelo menos desde 1985. Ora, este facto, por si mesmo, significa que ficou demonstrada a posse.
8. A posse que interessa para efeitos da usucapião não é a posse causal, mas sim a posse formal, cujos elementos caracterizadores integram o corpus (elemento material) e o animus (intenção de exercer um determinado direito real como se fora seu titular).
9. O corpus coincide com o elemento material e identifica-se com os actos materiais praticados sobre a coisa. Conforme referem os autores Álvaro Moreira e Carlos Fraga1, o corpus traduz-se no exercício de poderes de detenção, guardando e conservando a coisa em seu poder ou ocupando-a, no caso dos imóveis. Por outras palavras, o corpus traduz-se num poder de facto sobre a coisa, que no caso dos imóveis será o de ocupar, manter, dispor e fruir dos mesmos.
10. Tendo ficado provado que o recorrente reside, com a sua família, no imóvel em causa, pelo menos desde 1985, até 2015, altura em que passou a estar internado numa casa de repouso, em virtude da sua idade - factos 5 e 7-, bem como os factos 6, 9 e 10, significa que ficou demonstrado que o recorrente tem o poder de facto sobre o imóvel em causa, ocupando-o, mantendo-o, dispondo e fruindo do mesmo, donde resulta de forma incontroversa que tem o corpus.
11. Acresce que, para além do exercício material de um poder de facto sobre a coisa é necessário também existir uma vontade de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados, ou seja, além do corpus, que representa o elemento físico, a posse carece de ser acompanhada do animus, que se trata de um elemento de natureza psicológica e se traduz na intenção.
12. Como ilustração do animus é comum fazer-se a distinção da intensão entre um arrendatário ou comodatário e um proprietário. Essa distinção não se encontra no elemento material, já que todos têm a ligação física com o bem, mas sim no elemento psicológico, visto que a intenção de exercer o direito de propriedade recai somente no proprietário.
13. Por esse motivo torna-se evidente que um arrendatário ou comodatário, apesar de terem o corpus, não têm animus e, como tal, não poderão ter a posse sobre o imóvel que ocupam.
14. Contudo, se o elemento físico - o corpus - é relativamente fácil de provar, já o elemento psicológico - o animus - pode assim não ser.
15. Conforme flui do acórdão do Tribunal de Segunda Instância (TSI), de 9 de Fevereiro de 2012, proferido no Proc. n.º 985/2010, e doutrina nele transcritos, da mera detenção / ocupação do bem - o corpus - infere-se o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados - o animus - quando estes são precisamente actos da vida quotidiana coincidentes aos de qualquer proprietário.
16. Como é evidente, sendo o animus resultante da vontade e, portanto, um elemento psicológico e totalmente subjectivo, torna-se difícil ou mesmo impossível demonstrar a sua materialização a partir da utilização/ocupação de um imóvel, apesar de sobre ele serem praticados actos susceptíveis de se considerem inerentes aos de um proprietário.
17. Acresce que, a manifestação da vontade de possuir o bem não tem necessariamente de ser de forma expressa, bastando que resulte da prática de actos correntes que são percepcionados exteriormente como aqueles que se atribuem a um efectivo proprietário.
18. Por outro lado, verifica-se que o legislador teve o cuidado de estabelecer no art. 1176°, nº 2, do CC. uma presunção legal, segundo a qual presume-se que detém a posse aquele que exerce o poder de facto sobre a coisa, o que acentua a correspondência entre o corpus e o animus.
19. Naturalmente que, conforme é salientado pelo TSI, ao representar uma inversão do ónus da prova a presunção da verificação da posse poderá ser ilidida, mediante a invocação de factos contrários à pretensão do autor-art. 337, n° 1, do CC.
20. É nesse contexto que se entende que cabe à contraparte demonstrar que a ocupação do imóvel não é feita com a intenção de o possuir - art. 343° do CC. Sucede que, não foram nestes autos alegados e muito menos provados quaisquer factos que afastassem tal presunção, designadamente que o autor e ora recorrente estivesse a exercer o poder de facto sobre o imóvel por outros motivos, como sendo por arrendamento ou comodato ou até no interesse de outrem - art. 407°, n° 2, al. b), do CPC.
21. Sendo assim, estando demonstrado nos autos que o recorrente ocupa e exerce o poder de facto sobre o imóvel em causa, decorre dos factos provados que, além do corpus (os actos materiais praticados sobre a coisa) o recorrente tem o animus (o intuito de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados), estando, assim, verificados, em simultâneo, os elementos caracterizadores da posse.
22. Assim, e na esteira do acima citado acórdão, havendo corpus, não é necessário deslindar se há animus, porque não ficou demonstrado o contrário.
23. Em suma, exercendo a posse há mais de 15 anos, resultam verificados os pressupostos necessários para declarar a aquisição por usucapião a favor do recorrente.
24. Nestes termos, e salvo melhor opinião, atentos os factos considerados como provados, deveria o tribunal recorrido considerar verificada a posse e assim os pressupostos necessários para declarar a aquisição por usucapião a favor do recorrente
25. Sem prescindir, considera o recorrente que, salvo o devido respeito, o tribunal a quo apreciou incorrectamente a prova produzida em sede de audiência e julgamento.
26. Entendeu, o tribunal a quo que, apesar de ter ficado provada a ocupação do imóvel, não pode considerar que o autor tenha o corpus, em virtude de este não ter demonstrado que era sobrinho do titular inscrito do imóvel em questão, D ou D1, e que este lho doou em 1990, data a partir da qual passou a actuar com a convicção de ser proprietário do mesmo, apontando que essa ocupação poderia decorrer da tolerância do proprietário como um contrato de arrendamento ou comodato.
27. Ora, salvo o devido respeito, o recorrente não pode concordar com tal asserção, por duas razões essenciais:
28. A primeira, porque parece ser entendimento do tribunal que cabia ao recorrente demonstrar que a ocupação do imóvel não decorria da tolerância do proprietário, designadamente em virtude de um arrendamento ou comodato.
29. Sucede que, esse ónus não cabe ao autor e ora recorrente, mas sim aos réus, conforme acima já foi referido, visto que, além de se tratarem de factos negativos, no caso impedem, extinguem ou modificam o direito invocado - art. 412°, nº 3, 2ª parte, do CPC.
30. Ora, uma vez que essa constitui matéria de facto e não de direito, a qual não foi invocada e muito menos provada por quem caberia - aos réus -, o tribunal a quo não poderia nela se sustentar para considerar a não verificação do corpus (quando, certamente por lapso, quereria referir-se ao animus).
31. Assim, e salvo melhor opinião, entende o recorrente que deveria ter sido considerada provados os factos demonstrativos dos pressupostos da posse.
32. A segunda razão deve-se a que, não obstante o acima exposto, entende o recorrente que, salvo melhor opinião, a relação de parentesco com o D ou D1 e a doação do imóvel deveria ter ficado demonstrada através dos depoimentos prestados por todas as testemunhas.
33. Conforme decorre dos depoimentos, as duas primeiras testemunhas confirmaram, desde logo e sem qualquer dúvida ou hesitação, que o D ou D1 era tio do A. e aqui recorrente, o que por si só atesta a referida situação de parentesco.
34. Aliás, a primeira testemunha esclareceu ainda o tribunal que o D ou D1 residia em Hong Kong e não era casado nem tinha filhos, tendo deixado como únicos descendentes os seus sobrinhos, B e C, respectivamente aqui A. e R.
35. Subsequentemente, as testemunhas, que conhecem o A. e a sua família e frequentam a sua casa há mais de 20 anos, afirmaram que o D ou D1 doou o imóvel sito na Travessa ......, n° 9, R/c-B ao A. e ora recorrente.
36. Mais, a primeira testemunha esclareceu ainda o tribunal que o D ou D1 doou os seus imóveis sitos em Hong Kong ao seu sobrinho C, e os situados em Macau ao seu outro sobrinho B e ora A.
37. De resto, todas as testemunhas inquiridas foram peremptórias ao afirmarem que o A. sempre manifestou a convicção e agiu como se fosse o proprietário do imóvel, assumindo-se perante familiares, vizinhos e conhecidos como tal e tratando de todos os assuntos conexos com a propriedade do mesmo.
38. Sucede que, não obstante estes depoimentos colhidos em audiência terem demonstrado que as testemunhas os prestaram de forma espontânea e com conhecimento directo e abrangente sobre os factos, o tribunal a quo entendeu não os acolher totalmente, justificando com a sua relação - supostamente familiar - com o recorrente, bem como a faltas de documentos legais de suporte.
39. Ora, apelando ao princípio da livre apreciação da prova - art. 558°, n° 1, do CPC -, o tribunal deve apreciar livremente as provas segundo a sua prudente convicção, de acordo com um critério de probabilidade lógica.
40. Com efeito, orientado pela descoberta da verdade material, o tribunal aprecia livremente a prova de acordo com a sua convicção, a qual, sendo pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável, ou seja, dependem da credibilidade que merecem ao julgador os meios de prova, tendo em conta juízos de valor, e, num segundo plano, as deduções e induções a partir dos factos probatórios, que se baseiam na correcção do raciocínio, de acordo com as regras da lógica, do princípio da experiência e conhecimentos científicos.
41. No caso em apreço, o TJB entendeu nem sequer conferir credibilidade aos depoimentos das testemunhas, pela relação que têm com o recorrente, não tendo, portanto, retirado qualquer alcance aos próprios depoimentos.
42. Porém, desde logo a lei não exige formalidade especial para prova da relação de parentesco entre o D ou D1 e o A., pelo que nada obsta a que a mesma seja testemunhal- art. 558°, n° 2, do CPC.
43. Por outro lado, salvo o devido respeito, contrariamente ao entendimento do tribunal, a relação próxima que as primeiras duas testemunhas têm com o A. é precisamente o que lhes permite ter um acesso privilegiado ao seio familiar e confere um conhecimento directo sobre os assuntos mais pessoais e reservados.
44. Seria, aliás, estranho que não fossem os membros da família mais chegada quem tivesse conhecimento de assuntos que, atenta a sua natureza privada e familiar, apenas são discutidos no seu seio e intimidade, tais como as relações com os demais membros da família e as doações e outros arranjos entre entes.
45. Pelo que, e sempre ressalvando o devido respeito, entende o recorrente que é precisamente pela sua relação com as primeiras testemunhas que estas deveriam ter merecido toda a credibilidade e os seus depoimentos acolhidos sem qualquer reserva, pelo tribunal a quo.
46. Por outro lado, salvo melhor entendimento, os depoimentos colhidos no julgamento foram suficientemente lúcidos e esclarecedores, deles permitindo fazer uma demonstração de acordo com as regras da lógica, do princípio da experiência, dos factos que se propunham provar.
47. Assim, deveriam ter-se considerados como provados os factos vertidos nos artigos 3º, 4º, 12º, 13º e 14º.
48. Finalmente, considera o recorrente que, ressalvando sempre o devido respeito, o tribunal não aplicou convenientemente o direito, porquanto, tendo em conta o que resulta do já acima exposto, os pressupostos necessários para a verificação da posse já se encontram provados nestes autos, sendo indiferente para a decisão sobre o mérito da causa demonstrar a relação de parentesco entre o D ou D1 e o Autor, assim como a doação do primeiro para o segundo.
49. Efectivamente, conforme já foi acima exposto, ambos os elementos caracterizadores da posse - o corpus e o animus - já resultam provados nestes autos, o que decorre da prova da ocupação do imóvel.
50. A posse, por seu turno, pode ser titulada ou não titulada, de boa fé ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, caracteres que influenciam o prazo necessário à verificação da usucapião ou o inicio da respectiva contagem - art. 1219° e ss., do CC.
51. Ora, como se verifica no caso sub judice, o Tribunal deu como provado, que o A. pratica actos materiais e exerce o poder de facto sobre o prédio a partir de data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985, e ninguém alegou ou sequer invocou que a posse fosse violente ou oculta - aliás, o que se demonstra pelos depoimentos prestados nos autos é precisamente o inverso, i.e., que a posse era pública e pacífica.
52. Desde 1985 já passaram mais de 35 anos, período que ultrapassa largamente o de 20 anos previsto para a posse de má fé.
53. Pelo que, salvo melhor opinião, deveriam ter sido considerados, desde logo, atentos os factos considerados provados, reunidos os pressupostos para declarar o Autor como legítimo proprietário do imóvel em apreço, por usucapião, pelo que, não o fazendo, foi a lei erradamente aplicada.
*
Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
* * *
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
- Através de escritura pública outorgada em 23 de Dezembro de 1964, D ou D1 adquiriu a fracção autónoma designada por “BR/C” do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau, com os nºs 5 a 9 da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2****, registo na matriz predial sob o n.º ****7, com o valor matricial de MOP28.080,00, encontrando-se a aquisição registada em nome de D ou D1 na Conservatória do Registo Predial sob a inscrição n.º ****9.
- Em data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985, o Autor passou a viver no imóvel como sua residência e da sua família.
- De Setembro de 1991 a Agosto de 2001, parte do imóvel foi utilizado como instalações da empresa do filho do Autor, denominada “Centro Computadores XX”.
- O referido imóvel serviu como residência do Autor até, pelo menos, 2015, passando o Autor a estar internado numa casa de repouso, em virtude da sua idade.
- O Autor chegou a fazer a obras de desentupimento das canalizações da fracção autónoma.
- Procedeu ao pagamento dos consumos de electricidade, água e de telefone para o imóvel.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
I – Relatório:
B (B), viúvo, de nacionalidade chinesa, residente em Macau na Travessa ......, nºs 5 a 9, BR/C;
vieram intentar a presente
Acção Ordinária
contra
C, residente em Hong Kong, em parte incerta; e
Herdeiros desconhecidos de D ou D1, e;
Interessados Incertos;
com os fundamentos apresentados constantes da petição inicial de fls.2 a 6,
concluiu pedindo que fosse julgada procedente por provada a presente acção e o Autor fosse declarado, para todos os efeitos legais designadamente, registar o direito de propriedade a seu favor na referida Conservatória, como único e legítimo proprietário da fracção autónoma designada por BR/C do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau com os nºs 5 a 9 da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2**** por o ter adquirido por usucapião.
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Citado pessoalmente o 1º Réu, C, este não veio contestar.
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Procedeu-se à citação edital dos Réus, herdeiros desconhecidos de D ou D1 e os interessados incertos os quais não vieram contestar.
Procedeu-se à citação do Ministério Público em representação dos Réus e dos interessados incertos nos termos do artigo 51º do CPC, não tendo sido apresentada qualquer contestação.
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Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária.
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Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
***
II – Factos:
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
(…)
***
III – Fundamentos:
Cumpre analisar a matéria que vem alegada, os factos provados e aplicar o direito.
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Legitimidade processual dos interessados incertos
Nos termos do artigo 58º do CPC, “Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurado pelo autor.”
Pede o Autor que seja declarado proprietário da fracção autónoma designada por BR/C do rés-do-chão B, para habitação, do prédio sito em Macau com os nºs 5 a 9 da Travessa ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2****, objecto da presente acção, inscrito em nome de D ou D1.
Assim, a relação material controvertida só pode estabelecer-se entre o Autor e D ou D1 ou entre o Autor e os herdeiros de D ou D1, se este tiver já falecido.
É, portanto, manifesto que os Interessados Incertos não são partes legítimas porque nada consta dos autos que permita qualificá-los como sujeitos da relação material controvertida.
Assim, é de julgar os Interessados Incertos partes ilegítimas.
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As restantes partes são dotadas de legitimidade "ad causam". O processo é o próprio. Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
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Usucapião
Pede o Autor que lhe seja reconhecido a aquisição originária da fracção autónoma designada por “BR/C”, objecto da presente acção, por meio de usucapião.
Para fundamentar a sua pretensão, alega o Autor e o 1º Réu eram sobrinhos de D ou D1, proprietário inscrito do imóvel, que faleceu em 10 de Janeiro de 1991; que, em 1990, D ou D1 lhe doou verbalmente a fracção autónoma entregando-lha; que a partir daí, o Autor passou a actuar como se fosse proprietário do imóvel tendo o Autor passado a utilizar o imóvel como sua residência e da sua família; que de Setembro de 1991 a Agosto de 2001, permitiu que parte do imóvel foi utilizado como instalações da empresa do seu filho; que o imóvel serviu como sua residência do Autor até 2015, altura em que passou a estar internado numa casa de repouso; que o Autor suportou as despesas das obras de conservação e reparação do mesmo pagou as despesas relativas ao consume de electricidade e água e ao serviço de telefone bem como as contribuições prediais que entretanto se venceram; que esses actos têm sido praticados à vista de toda a gentes, sem recurso a violência e coacção moral ou física.
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“Posse é o poder que se manifesta quando alguém actual por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.” – artigo 1175º do CC.
Conforme Álvaro Moreira e Carlos Fraga, in Direitos Reais, Livraria Almedina, Coimbra, pgs 181, 189 a 190, “Dos artºs 1251º e 1253º do CC (a que correspondem aos artigos 1175º e 1177º do CC de Macau), verifica-se que a posse exige o “corpus” e o “animus” identificando-se o corpus “... como os actos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa” e traduzindo o animus “... na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.”.
*
Dos factos provados, vê-se que, em data não apurada, mas não posterior a 1984 ou 1985, o Autor passou a viver no imóvel com sua residência e da sua família tendo deixado de aí viver, pelo menos, a partir de 2015 e que chegou a fazer obras de desentupimento das canalizações da fracção autónoma e pagar as despesas de electricidade, água e telefone do imóvel.
Portanto, o Autor não logrou demonstrar que era sobrinho do proprietário inscrito, que o imóvel lhe tinha sido doado em 1990, que, a partir, de então, passara a actuar como proprietário do imóvel com a convicção de o ser pagando a respectiva contribuição predial e autorizando o seu filho a instalar uma empresa no imóvel.
Perspectivando a situação a partir dos factos provados indicados no penúltimo parágrafo, nada permite concluir pela verificação do corpus possidendi acima referido. Pois, os actos praticados pelo Autor sobre o imóvel podem ser praticados por qualquer pessoa que esteja a residir no imóvel designadamente por tolerância do seu proprietário em virtude de um contrato de arrendamento ou de comodato.
O mesmo se diz em relação ao animus possidendi porque não existe nenhum facto em que o Autor se pode basear para se auto-intitular proprietário do imóvel. É que, o facto por si alegado para fundamentar essa atitude, o de lhe ter sido doado pelo proprietário, seu tio, não foi dado como demonstrado.
Assim, nem o corpus possidendi nem o animus possidendi está verificado para permitir ao Autor aceder à qualidade de possuidor.
Ora, não estando demonstrada a posse, nada permite concluir pela verificação dos demais requisitos para a aquisição do imóvel por via da usucapião, pois estes requisitos tem a ver com as características e a duração da posse.
Pelo que, sem necessidade de se debruçar sobre os demais requisitos, o pedido do Autor não pode deixar de improceder.
***
IV – Decisão (裁決):
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga improcedente a acção por não provada e, em consequência, decide:
1. Absolver os Interessados Incertos da presente instância; e
2. Absolver os Réus, C e Herdeiros desconhecidos de D ou D1, do pedido formulado pelo Autor, B.
Custas pelo Autor.
Notifique e Registe.
*
據上論結,本法庭裁定訴訟理由不成立,判決如下:
1. 駁回原告B針對不確定利害關係人提出之起訴;
2. 駁回原告針對被告C及D或D1之不知明繼承人提出之請求,開釋此等被告。
訴訟費用由原告承擔。
依法作出通知及登錄本判決。
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Quid Juris?
O Recorrente veio a imputar à sentença recorrida os seguintes vícios:
- Nulidade da sentença – artigo 571º/1-a) (sic, cremos que o Autor quer referir-se à alínea c)) do CPC (fls. 159);
- Incorrecta apreciação da prova (fls. 167);
- Erro na aplicação do Direito (fls. 174).
Ora, o argumento que a Exma. Juiza do Tribunal recorrido invocou para negar a pretensão do Autor é justamente a falta de factos para fundamentar o pedido da usucapião.
Os factos que o Tribunal recorrido considerou relevantes para a decisão da causa constam do despacho de fls. 95 a 96, em que se pronunciou POSITIVAMENTE sobre os factos constantes dos artigos 1º, 5º, 6º, 7º, 9º e 10º, e sobre outra matéria alegada, o Tribunal pronunciou-se no sentido de que, ou porque a matéria alegada ficou não provada, ou porque são matérias de natureza jurídica ou conclusiva.
Ao decidir a matéria de facto, a Exma. Juiz teceu as seguintes considerações:
“(…)
Em especial, no que toca à relação que o Autor alega manter com o 1º Réu e D ou D1 e à morte deste apenas a 1ª testemunha, genro do Autor, fez referência às mesmas e a 2ª testemunha, irmão do genro do Autor, declarou que D ou D1 era tio paterno do Autor. Nenhum documento foi junto para demonstrar tal relação apesar de o Autor, D ou D1 e o 1º Réu terem o mesmo apelido.
Apesar de o tribunal, com base nas declarações das testemunhas e dos documentos juntos, ter considerado demonstrado que o Autor vivia na fracção autónoma desde, pelo menos, o ano em que a 1ª testemunha declarou ter conhecido a filha do Autor e ter assistido o regresso de D ou D1 a Macau, pouco antes de morrer em 1990 ou 1991, para tentar proceder à transmissão da fracção autónoma ao Autor, tentativa esta falhada por causa de problemas relacionados com o atraso na constituição em propriedade horizontal do prédio onde está localizada a fracção autónoma, este facto não é o suficiente para comprovar a alegada relação de parentesco. E isso tendo em conta a relação que essas duas testemunhas mantêm com o Autor que fez com que as suas declarações não fossem acolhidas sem reserva quando não estão acompanhadas de outras provas.
Também não foi dado como provada a doação do imóvel alegada pelo Autor porque apenas a 1ª testemunha deu conta da pretensão de transmissão referida no parágrafo anterior a par da transmissão ao 1º Réu de outros bens sitos em Hong Kong pertencentes a D ou D1. É que, apesar dessas declarações, nenhuma outra prova foi apresentada para demonstrar nem as doações nem a relação de parentesco que tornariam plausíveis estes actos de liberalidade. Novamente, dada a relação que a 1ª testemunha mantém com o Autor, as declarações da mesma sem apoio noutra prova não foram acolhidas sem reservas.
A ocupação do imóvel está demonstrada por alguns dos documentos juntos, pelas declarações das testemunhas bem como a inspecção judicial. Contudo, por não ter considerado demonstrada a doação, o tribunal não deu como provado o pagamento da contribuição predial apesar da junção dos documentos de fls 24 a 28 e o pagamento de despesas com obras de conservação e de reparação do imóvel. É que, sendo D ou D1 o proprietário registado e não estando demonstrada a doação, não se pode excluir que essas despesas tenham sido suportadas por este ou por alguém em sua representação.
Os demais factos relacionados com a ocupação demonstrativos da posse, novamente, por o imóvel estar registado em nome de D ou D1 e por não estar demonstrada a doação, o tribunal não conseguiu concluir que a ocupação correspondia ao alegado.” (sublinhado nosso)
O Autor, quando foi notificado desta decisão sobre os factos, não chegou a reclamá-la. Nem neste recurso veio a impugnar a decisão de matéria de facto.
Lido com atenção o teor da PI, é fácil concluir que os seguintes factos são importantes para proceder a pretensão do Autor:
4.º
A partir de então, o Autor passou a praticar sobre o imóvel todos os actos correspondentes ao exercício dos direitos de propriedade com a convicção de que era proprietário do mesmo.
8.º
Os actos de posse sobre o imóvel são praticados à vista de toda a gente e sem oposição de terceiros.
12.º
Ao exercer os actos de posse sobre o imóvel, a Autor esteve sempre convicto de ser o legítimo proprietário do mesmo.
13.º
Posse que foi adquirida sem recurso à violência e coacção, moral ou física, e sem oposição de terceiros.
14.º
Tendo a Autor, durante todos os anos em que exerce a posse sobre o imóvel, actuado convencido de que a mesma não lesava - nem lesa - direitos de terceiros.
15.º
A posse sobre os referidos imoveis é, por isso, titulada, pública, pacífica e de boa fé, correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre a fracção autónoma em causa por um período contínuo de tempo superior a quinze anos
16.º
Factos que se mantêm inalterados até hoje.
Só que a convição do Tribunal recorrido vai no sentido de que careciam de provas suficientes para considerar assentes tais factos. Ou seja:
- Desconhecem-se as circunstâncias concretas que determinaram o acesso ao imóvel por parte do Autor e com que “espírito” (intenção) é que ele agiu sobre o mesmo, sendo certo que foi alegada a docação verbal, mas este ponto não ficou provado. Eis a dúvida subsistente de animus.
- Faltam também elementos comprovativos de que o Autor se comportava como “dono” do imóvel em causa (titular do direito real), não obstante ele chegar a realizar despesas ligadas ao mesmo, mas tal tanto pode ser uma pessoa qualquer, como pode ser por arrendatário ou usufrutuário.
Pelo que, como a matéria fixada não foi questionada, não se verifica erro na apreciação de provas, nem erro na aplicação de Direito, muito menos vício da nulidade da sentença prevista no artigo 571º/1-c) do CPC, o que verdadeiramente está em causa é a falta de elementos fácticos para fundamentar a pretensão do Autor.
Nestes termos, é do nosso entendimento que, em face das considerações e impugnações do ora Recorrente, a argumentação produzida pelo MMo. Juíz do Tribunal a quo continua a ser válida, a qual não foi contrariada mediante elementos probatórios concretos, trazidos por quem tem o ónus de prova, razão pela qual é de manter a posição assumida na sentença recorrida.
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Síntese conclusiva:
I – A usucapião pressupõe a posse que, se adquire pelo facto e pela intenção, definindo-se pelos elementos essencias que são corpus na aquisição unilateral, ou a traditio na aquisição derivada, e o animus.
II – Faltando elementos fácticos necessários à comprovação do elemento animus, é razão bastante para julgar improcedente o pedido da usucapião formulado pelo Autor.
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Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pelo Autor.
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Registe e Notifique.
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RAEM, 23 de Abril de 2020.
(Relator)
Fong Man Chong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho
1 ln Direitos Reais - Almedina, Coimbra - pago 181
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2020-149-usucapião-factos-insufientes 1