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Processo n.º 295/2020 Data do acórdão: 2020-4-29 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– crime de incêndio
– art.o 264.o, n.o 1, alínea a), do Código Penal
– crime de dano
– critério para aferição da relação de consunção
– crime tentado de incêndio
– crime consumado de incêndio
– dano provocado após a tentativa do incêndio
– critério para determinação do valor do dano causado à coisa
S U M Á R I O
1. O crime de incêndio do art.o 264.o, n.o 1, alínea a), do Código Penal consome o crime de dano, quando a acção incendiária pôs, de modo concreto, em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado e destruiu também bens patrimoniais alheios.
2. No caso dos autos, como a danificação do veículo automóvel A ocorreu, pela primeira vez, por causa da conduta tentada, em 17 de Janeiro de 2019, de provocação de incêndio, e, em segunda e última vez, por causa da conduta consumada de provocação de incêndio na alta madrugada de 20 de Janeiro de 2019, estes dois crimes (um tentado, e outro, consumado) de provocação de incêndio já consomem a conduta de danificação, por duas vezes, sucessivamente em duas datas diferentes, desse veículo.
3. Por identidade da razão, como a danificação do veículo automóvel B na alta madrugada de 20 de Janeiro de 2019 o foi por causa da conduta consumada de provocação de incêndio, o cometimento deste crime já consome a conduta de danificação deste veículo nessa madrugada.
4. E quanto à danificação deste veículo B na anterior noite de 17 de Janeiro de 2019: apesar do fracasso do incêndio na noite em causa, este veículo não deixou de sofrer danificação, por exemplo, na pintura do seu corpo, por efeito exclusivo do líquido combustível lançado para provocação do incêndio, pelo que todo o dano provocado a este veículo por efeito do lançamento do líquido não deve ser sancionado autononamente pelo tipo legal de dano, independentemente do respectivo valor concreto; contudo, o facto de se ter partido a parte de pára-brisas do mesmo veículo, exclusivamente por acção feita pelo arguido após o malogro da provocação do incêndio, já não pode ser sancionado através do tipo legal de crime tentado de provocação de incêndio, mas sim, propriamente, mediante o tipo legal de dano (sobre este veículo).
5. É, assim, aí, um crime de dano simples, porque da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, não se descortina qual o valor concreto do dano patrimonial provocado à parte de pára-brisas deste veículo.
6. Com efeito, o referente do valor elevado ou consideravelmente elevado a respeito do crime de dano há-de ser não a coisa-objecto-da-acção mas o prejuízo causado pela acção, sendo de entender que só assume relevância típica o dano directamente infligido à coisa e não os prejuízos mediatos ou os lucros cessantes.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 295/2020
(Recurso em processo penal)
Recorrentes:
2.o arguido B
3.o arguido C
4.o arguido D
6.o arguido F
Não recorrentes:
1.o arguido A
5.o arguido E
Ofendida assistente G




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I. RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 2169 a 2196v do Processo Comum Colectivo n.° CR2-19-0282-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram, na parte penal do seu dispositivo, condenados:
– o 1.o arguido A:
– como co-autor material de um crime tentado de provocação de incêndio, p. e p. pelos art.os 264.o, n.o 1, alínea a), 21.o e 22.o do Código Penal (CP), na pena de dois anos de prisão;
– como co-autor material de um crime consumado de provocação de incêndio, p. e p. pelo art.o 264.o, n.o 1, alínea a), do CP, na pena de três anos e nove meses de prisão;
– como co-autor material de um crime consumado de dano de valor consideravelmente elevado (a respeito do veículo automóvel MT-XX-XX), p. e p. pelo art.o 207.o, n.o 2, alínea a), do CP, na pena de três anos de prisão;
– como co-autor material de um crime consumado de dano de valor elevado (respeitante ao veículo automóvel MK-XX-XX), p. e p. pelo art.o 207.o, n.o 1, alínea a), do CP, na pena de um ano e nove meses de prisão;
– como autor material de um crime consumado de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.o 137.o, n.o 1, do CP, na pena de nove meses de prisão;
– como autor material de um crime consumado de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.o 11.o, n.o 1, alínea 1), da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de um ano e seis meses de prisão;
– e como autor material de um crime consumado de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.o 14.o, n.o 1, da Lei n.o 17/2009 (na redacção dada pela Lei n.o 10/2016), na pena de cinco meses de prisão;
– e, em cúmulo jurídico dessas penas, finalmente na pena única de seis anos e seis meses de prisão;
– o 2.o arguido B e o 3.o arguido C:
– como co-autores mediatos de um crime tentado de provocação de incêndio, p. e p. pelos art.os 264.o, n.o 1, alínea a), 21.o e 22.o do CP, na pena individual de dois anos e três meses de prisão;
– como co-autores mediatos de um crime consumado de provocação de incêndio, p. e p. pelo art.o 264.o, n.o 1, alínea a), do CP, na pena individual de quatro anos de prisão;
– como co-autores mediatos de um crime consumado de dano de valor consideravelmente elevado (a respeito do veículo automóvel MT-XX-XX), p. e p. pelo art.o 207.o, n.o 2, alínea a), do CP, na pena individual de três anos e três meses de prisão;
– e como co-autores mediatos de um crime consumado de dano de valor elevado (respeitante ao veículo automóvel MK-XX-XX), p. e p. pelo art.o 207.o, n.o 1, alínea a), do CP, na pena individual de dois anos de prisão;
– e, em cúmulo jurídico dessas penas, finalmente na pena individual única de seis anos e seis meses de prisão;
– o 4.o arguido D, o 5.o arguido E e o 6.o arguido F:
– como co-autores materiais de um crime tentado de provocação de incêndio, p. e p. pelos art.os 264.o, n.o 1, alínea a), 21.o e 22.o do CP, na pena de dois anos de prisão para os 4.o e 6.o arguidos, e na pena de dois anos e três meses de prisão para o 5.o arguido;
– como co-autores materiais de um crime consumado de provocação de incêndio, p. e p. pelo art.o 264.o, n.o 1, alínea a), do CP, na pena de três anos e nove meses de prisão para os 4.o e 6.o arguidos, e na pena de quatro anos de prisão para o 5.o arguido;
– como co-autores materiais de um crime consumado de dano de valor consideravelmente elevado (a respeito do veículo automóvel MT-XX-XX), p. e p. pelo art.o 207.o, n.o 2, alínea a), do CP, na pena de três anos de prisão para os 4.o e 6.o arguidos, e na pena de três anos e três meses de prisão para o 5.o arguido;
– e como co-autores materiais de um crime consumado de dano de valor elevado (respeitante ao veículo automóvel MK-XX-XX), p. e p. pelo art.o 207.o, n.o 1, alínea a), do CP, na pena de um ano e nove meses de prisão para os 4.o e 6.o arguidos, e na pena de dois anos de prisão para o 5.o arguido;
– e, em cúmulo jurídico dessas penas, finalmente na pena única de cinco anos e nove meses de prisão para os 4.o e 6.o arguidos, e na pena única de seis anos e três meses de prisão para o 5.o arguido.
Inconformados, vieram os 2.o, 3.o, 4.o e 6.o arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O 2.o arguido B alegou, no essencial, na sua motivação apresentada a fls. 2227 a 2234 dos presentes autos correspondentes, que:
– o acórdão recorrido padece, a título principal, do erro notório na apreciação da prova (porque, sobretudo, o 1.o arguido declarou na audiência de julgamento que não conhecia o próprio recorrente, significando isto que o 1.o arguido não tinha agido a comando do próprio recorrente, sendo certo que nas imagens visuais gravadas não se conseguiu ver qualquer envolvimento do próprio recorrente na aquisição de combustíveis para uso do 1.o arguido, e os contactos por telemóvel entre o próprio recorrente e o 4.o arguido não passaram de contactos feitos normalmente entre superior hierárquico e inferior hierárquico dentro de uma mesma companhia comercial), devendo ele ser absolvido penalmente, por força do princípio de in dubio pro reo;
– o facto provado 3 tem teor demasiado vago, por não apontar quem é que foi parte culposa nos conflitos aí falados em causa, sendo este facto relevante para a decisão da causa penal em questão, visto que se a parte culposa nos conflitos não fosse o próprio recorrente, então na eventual condenação penal dele, mereceria ele a atenuação especial da pena nos termos do art.o 66.o, n.o 2, alínea b), do CP;
– e, subsidiariamente falando, o acórdão recorrido não deixa de enfermar do vício de violação do art.o 29.o, n.o 1, do CP (ao ter decidido em condenar a título autónomo os dois crimes de dano, apesar de se dever entender que esses dois crimes de dano já ficariam absorvidos pelo crime de provocação de incêndio).
Por outra banda, foi alegado, essencialmente, o seguinte na motivação una apresentada a fls. 2238 a 2257 dos autos pelos 3.o arguido C, 4.o arguido D e 6.o arguido F:
– o Tribunal recorrido errou notoriamente na apreciação da prova, com insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (porquanto as provas dos autos não deram para se dar por provado que foram os 2.o e 3.o arguidos quem comandaram a acção incendiária e danificadora nos veículos), pelo que o 3.o arguido ora recorrrente não deveria ter sido condenado por co-autoria mediata da conduta incendiária e danificadora;
– e fosse como fosse, houve excesso na medida da pena do 3.o arguido ora recorrente, um delinquente primário, com violação do art.o 65.o do CP, pelo que se deveria passar a reduzir a pena de quatro anos de prisão do seu crime consumado de provocação de incêndio a três anos de prisão apenas, e a reduzir a sua pena única de prisão a cinco anos e seis meses de prisão somente;
– o Tribunal recorrido errou também notoriamente na apreciação da prova sobre a comparticipação do 4.o arguido ora recorrente (visto que as provas dos autos não deram para se dar por provado que ele tinha fornecido aos 5.o e 6.o arguidos dados sobre os veículos dos autos e sítios de estacionamento dos mesmos para efeitos de acção incendiária, sendo certo que mesmo que o próprio 4.o arguido tenha ido por duas vezes ao local de estacionamento dos veículos, isto representaria que ele fez isto apenas a comando do seu patrão, a fim de investigar o paradeiro dos veículos objecto de conflitos comerciais entre o utente dos veículos e os 2.o e 3.o arguidos), ao que acresceu o vício de contradição insanável da fundamentação da decisão condenatória recorrida (dado que as fotografias tiradas pelo 4.o arguido foram sobre os veículos MP-XX-XX e MO-XX-XX, enquanto os veículos finalmente incendiados e danificados foram MT-XX-XX e MK-XX-XX), pelo que o 4.o arguido ora recorrrente deveria ser absolvido;
– e na eventual hipótese de manutenção da decisão condenatória, não deixaria o 4.o arguido de merecer a redução das suas penas, por ser um delinquente primário, com papel menos relevante na comparticipação dos factos, devendo-se, pois, passar a impor um ano e seis meses de prisão ao seu crime tentado de provocação de incêndio, três anos de prisão ao seu crime consumado de provocação de incêndio, dois anos de prisão ao seu crime de dano de valor consideravelmente elevado, e um ano e seis meses de prisão ao seu crime de dano de valor elevado, e finalmente, em sede de novo cúmulo jurídico das penas, quatro anos de prisão única;
– o Tribunal recorrido errou também notoriamente na apreciação da prova sobre a comparticipação do 6.o arguido ora recorrente nos factos de acção incendiária da primeira vez (da noite de 17 de Janeiro de 2019) (visto que as provas dos autos não deram para se dar por provada a comparticipação dele nesses factos), devendo ser ele absolvido do crime tentado de provocação de incêndio;
– ao mesmo tempo, mereceria o próprio 6.o arguido a redução das suas penas, designadamente por ser um delinquente primário, com papel menos relevante na comparticipação dos factos, devendo-se, pois, passar a impor três anos de prisão ao seu crime consumado de provocação de incêndio, dois anos de prisão ao seu crime de dano de valor consideravelmente elevado, e um ano e seis meses de prisão ao seu crime de dano de valor elevado, e finalmente, em sede de novo cúmulo jurídico das penas, três anos e seis meses de prisão única;
– por fim, todos os ora três recorrentes acharam excessivo o montante de trezentas mil patacas fixado pelo Tribunal a quo para reparação, por responsabilidade solidária dos arguidos demandados, de danos morais da ofendida assistente (dona dos veículos dos autos, e também esposa do utente real dos mesmos), pelo que esse montante deveria passar a ser de cem mil patacas, aos padrões dos art.os 477.o e 489.o do Código Civil (CC).
Respondeu a Digna Delegada do Procurador a fls. 2289 a 2302v, no sentido de improcedência da argumentação recursória penal dos quatro arguidos ora recorrentes.
Respondeu também a ofendida assistente G, defendendo, a fls. 2313 a 2333, a manutenção do julgado penal e civil.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 2377 a 2381, no sentido de improcedência dos vícios de julgamento de matéria de facto alegados pelos recorrentes, para além de manifestar a sua concordância com a tese de consunção dos crimes de dano pelos crimes de provocação de incêndio, com excepção da conduta de danificação da parte de pára-brisas do veículo MT-XX-XX, feita pelo 1.o arguido só depois do malogro da provocação do incêndio inclusivamente sobre esse veículo na noite de 17 de Janeiro de 2019, conduta danificadora essa que deveria ser punida a título autónomo, para além do crime tentado de provocação de incêndito dessa noite.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão ora recorrido se encontrou proferido a fls. 2169 a 2196v dos autos, cujo teor (incluindo a respectiva fundamentação fáctica e probatória) se dá por aqui integralmente reproduzido.
Nesse mesmo aresto, o Tribunal seu autor fixou em trezentas mil patacas o valor pecuniário destinado à reparação dos danos não patrimoniais da ofendida assistente G, a ser pago solidariamente pelos seis arguidos dos autos.
III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Desde já, debruça-se sobre o vício de contradição insanável da fundamentação do acórdão recorrido, apontada pelo 4.o arguido.
Sobre esta questão, após feita a leitura atenta da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, não se detecta, para este Tribunal de recurso, qualquer incompatibilidade lógica entre a matéria de facto provada e a não provada, nem entre a própria matéria de facto provada, nem tão-pouco entre a própria matéria de facto não provada, pelo que nunca pode o acórdão recorrido sofrer do vício aludido na alínea b) do n.o 2 do Código de Processo Penal (CPP), sendo de notar que o facto de serem apenas dois os veículos (MT-XX-XX e MK-XX-XX) acabados finalmente por ser incendiados e danificados não afasta a lógica dos restantes factos provados, pelo que o sentido e alcance dos factos penais provados 7 e 8 não têm qualquer contradição, por exemplo, com os factos penais provados 1 a 6, 9 e 10.
Improcede, sem mais, esta parte da argumentação recursória do 4.o arguido, sendo certo que em caso de co-autoria, é natural que não é necessário que cada um dos comparticipantes tenha que praticar todos os factos dos crimes comparticipados.
Por outra banda, o 3.o arguido esgrimiu à decisão condenatória recorrida o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Contudo, da leitura atenta da fundamentação fáctica do mesmo aresto recorrido, resulta nítido que o Tribunal sentenciador já investigou todo o tema probando dos autos, sem omissão alguma, pelo que nunca pode o mesmo Tribunal cometido o vício referido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP (e sobre o alcance e sentido do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cfr., por exemplo, de entre muitos outros, os acórdãos deste TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
Aliás, o tipo de argumentação tecida pelo 3.o arguido para sustentar a verificação desse vício não tem a ver propriamente com o alcance nem o sentido desse vício, mas sim com o vício, também invocado por ele na motivação, de erro notório na apreciação da prova da alínea c) do n.o 2 do mesmo art.o 400.o.
É altura de conhecer agora do vício de erro notório na apreciação da prova, imputado pelos 2.o, 3.o, 4.o e 6.o arguidos.
Pois bem, sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, analisada a fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, e até com minúcia, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos, depois de ter sumariado o conteúdo dos diversos elementos probatórios analisados em global e de modo crítico.
O resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, cabendo a este TSI frisar o seguinte:
– o desconhecimento por parte do 1.o arguido da própria pessoa do 2.o arguido não tem a pretendida virtude de afastar o facto de ser o 2.o arguido um dos dois “mentores” e emitentes de instruções determinantes do plano delinquente de acção incendiária e danificadora de diversos veículos usados pelo marido da ofendida assistente (cfr. o facto penal provado 4), tendo o 1.o arguido agido como executor material da acção incendiária e danificadora, em comparticipação com outros co-autores materiais (nomeadamente com os 5.o e 6.o arguidos) (cfr. o facto penal provado 5) que agiram sob instruções dos 2.o e 3.o arguidos (cfr. o facto penal provado 4);
– como “mentores” e emitentes de instruções do referido plano delinquente, é natural que nas imagens visuais gravadas não se conseguiu ver qualquer envolvimento físico da própria pessoa do 2.o arguido ou do outro co-mentor na aquisição de combustíveis para uso do 1.o arguido como executor da acção incendiária;
– e quanto à da natureza de contactos por telemóvel entre o 2.o arguido e o 4.o arguido, isto é do foro da livre convicção do julgador judicial;
– o facto penal provado 3 não é vago, pois da sua leitura se colhe a ideia nítida de que houve conflitos entre o marido da ofendida assistente e os 2.o e 3.o arguidos (independentemente da causa concreta desses conflitos, causa que não se conseguiu apurar – cfr. o sentido e alcance desse facto penal provado);
– tal como já se referiu acima, o 3.o arguido foi, sem dúvida, um dos dois “mentores” e emitentes de instruções da execução do plano delinquente da acção incendiária e danificadora de veículos usados pelo marido da ofendida assistente;
– a tese fáctica sustentada pelo 4.o arguido já fica prejudicada pela natureza da relação de co-autoria delinquente, já abordada acima aquando da apreciação do vício de contradição insanável da fundamentação assacado por ele à decisão condenatória recorrida;
– pela mesma lógica de co-autoria material, a tese fáctica invocada pelo 6.o arguido também fica prejudicada pela lógica de operação em co-autoria material delinquente.
É, pois, de julgar a causa penal dos autos tudo em acordo com a matéria de facto já dada por assente no acórdão recorrido, sem qualquer dos vícios referidos no n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Assim, a propósito da questão de alegada devida consunção do tipo-de-ilícito de dano pelo de provocação de incêndio, concorda o presente Tribunal ad quem com a tese jurídico-doutrinária de que o crime de incêndio consome o crime de dano (em sentido convergente, veja-se o primeiro parágrafo, de autoria de JOSÉ DE FARIA COSTA, da página 880 do Tomo II do COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, Coimbra Editora, 1999), quando a acção incendiária pôs, de modo concreto, em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado e destruiu também bens patrimoniais alheios.
No caso dos autos, como a danificação do veículo automóvel MK-XX-XX ocorreu, pela primeira vez, por causa da conduta tentada, em 17 de Janeiro de 2019, cerca das 20:37 horas, de provocação de incêndio (cfr. os factos penais provados 11, 12 e 14), e, em segunda e última vez, por causa da conduta consumada de provocação de incêndio na alta madrugada de 20 de Janeiro de 2019 (cfr. sobretudo os factos penais provados 30 e 31), é de julgar que estes dois crimes (um tentado, e outro, consumado) de provocação de incêndio já consomem a conduta de danificação, por duas vezes, sucessivamente em duas datas diferentes, desse veículo MK-XX-XX.
Por identidade da razão, como a danificação do veículo automóvel MT-XX-XX na alta madrugada de 20 de Janeiro de 2019 o foi por causa da conduta consumada de provocação de incêndio, o cometimento deste crime consumado já consome a conduta de danificação deste veículo nessa alta madrugada.
E quanto à danificação deste veículo na anterior noite de 17 de Janeiro de 2019?
Há que “separar bem as águas”, de seguinte modo: apesar do fracasso do incêndio na noite em causa, este veículo não deixou de sofrer danificação, por exemplo, na pintura do seu corpo, por efeito exclusivo do líquido combustível lançado para provocação do incêndio (cfr. os factos penais provados 12 e 14), pelo que todo o dano provocado a este veículo por efeito exclusivo do lançamento do líquido combustível destinado à provocação do incêndio não deve ser sancionado autononamente pelo tipo legal de dano, independentemente do respectivo valor concreto; contudo, o facto de se ter partido a parte de pára-brisas do mesmo veículo, exclusivamente por acção fisicamente feita pelo 1.o arguido após o malogro da provocação do incêndio em questão, já não pode ser sancionado através do tipo legal de crime tentado de provocação de incêndio, mas sim, propriamente, mediante o tipo legal de dano (sobre este veículo).
Razões por que há que passar a condenar o 2.o arguido pela autoria mediata de um crime de dano simples (sobre este veículo), p. e p. pelo art.o 206.o, n.o 1, do CP, praticado na noite de 17 de Janeiro de 2019 por acção física do 1.o arguido, embora devam ser absolvidos os dois crimes qualificados de dano referidos no dispositivo do acórdão recorrido.
Nota-se que é um crime de dano simples, porque tal como entendeu a Digna Procuradora-Adjunta no seu judicioso parecer emitido, da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, não se descortina qual o valor concreto do dano patrimonial provocado à parte de pára-brisas deste veículo (sendo citente este Tribunal de recurso de que sobre a questão de valor elevado e valor consideravelmente elevado a respeito do crime de dano, é de seguir o seguinte comentário doutrinário de MANUEL DA COSTA ANDRADE, na página 245 do Tomo II da Obra acima citada: <>, cabendo frisar ainda que <>).
E por se tratar, no caso dos autos, de comparticipação criminosa, assim, por força da regra do art.o 392.o, n.o 2, alínea a), do CPP, a procedência (parcial) da questão, suscitada pelo 2.o arguido, de consunção do tipo legal de dano pelo tipo legal de provocação do incêndio, aproveita também aos outros cinco comparticipantes.
Assim, uma vez por todas, é de passar a absolver todos os seis arguidos de um crime consumado de dano de valor consideravelmente elevado, e de um crime consumado de dano de valor elevado, e a condenar todos os seis arguidos, como co-autores (sendo os 2.o e 3.o arguidos co-autores mediatos, e os 1.o, 4.o, 5.o e 6.o arguidos co-autores materiais) de um crime consumado de dano simples, previsto pelo art.o 206.o, n.o 1, do CP e como tal punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (praticado na noite de 17 de Janeiro de 2019 contra a parte de pára-brisas do veículo automóvel MT-XX-XX), na pena de dez meses de prisão para os 2.o, 3.o e 5.o arguidos, e na pena de nove meses de prisão para os 1.o, 4.o e 6.o arguidos (após ponderadas todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância, com pertinência à medida concreta da pena deste crime aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, tendo em conta também as necessidades da prevenção do mesmo tipo legal de crime).
Sendo de verificar que não se pode optar pela aplicação da pena de multa em detrimento da pena de prisão, dadas as circunstâncias fácticas sob as quais foi praticado este crime pelos seis arguidos em co-autoria, circunstâncias que têm que ser censuradas com sanção da pena de prisão, sob pena de não se poder realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, mormente em vertente de prevenção geral – cfr. o critério material postulado no art.o 64.o do CP para efeitos de decisão sobre a escolha da espécie da pena.
Por outro lado, cabe frisar que não se pode abraçar como boa a tese jurídica do 2.o arguido segundo a qual se o marido da ofendida assistente fosse o culpado pelos conflitos comerciais entre ele e o próprio 2.o arguido e o 3.o arguido, então mereceria o próprio 2.o arguido a atenuação especial da pena na hipótese da sua condenação penal, à luz do art.o 66.o, n.o 2, alínea b), do CP (por ser de entender que os factos criminais delinquentes teriam sido praticados por “provocação” do marido da assistente). É que independentemente da indagação, por desnecessária agora, sobre se a culpa por conflitos entre o marido da assistente e os 2.o e 3.o arguidos é subsumível ao conceito de “provocação injusta” plasmado nessa alínea b), não pode proceder a pretensão do 2.o arguido de atenuação especial da pena, por a sua intervenção como co-autor mediato na prática dos factos dos crimes (um tentado e outro consumado) de provocação de incêndio e de dano simples) exibir elevado grau de culpa dele na produção dos mesmos factos delinquentes, daí a necessidade de se aplicar as penas dele dentro da respectiva moldura ordinária, para assegurar suficientemente a realização das finalidades da prevenção geral desses crimes, cometidos a seu comando e instruções, inclusivamente (cfr. o critério material vertido no n.o 1 do referido art.o 66.o). Portanto, é irrelevante o facto de não estar provada a causa dos conflitos entre o marido da assistente e os 2.o e 3.o arguidos (cfr. o facto penal provado 3).
E, finalmente, em sede de novo cúmulo jurídico das penas (isto é, da pena do crime de dano simples acima analisado e dos outros crimes por que já vinham condenados os seis arguidos em primeira instância sem qualquer alteração na presente lide recursória), feito nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, com ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade dos seis arguidos, é de passar a condenar:
– o 1.o arguido, na nova pena única de cinco anos e um mês de prisão;
– os 2.o e 3.o arguidos, na nova pena única de cinco anos de prisão;
– o 5.o arguido, na nova pena única de quatro anos e nove meses de prisão;
– e os 4.o e 6.o arguidos, na nova pena única de quatro anos e seis meses de prisão.
Com o acima decidido, fica prejudicado, por desaparecimento superveniente do objecto inicial para decisão, o conhecimento do pedido, formulado pelos 3.o, 4.o e 6.o arguidos, de redução das suas penas parcelares dos dois crimes qualificados de dano e das suas penas únicas por que vinham condenados em primeira instância, então achadas pelo Tribunal recorrido sob a égide do cúmulo jurídico das penas parcelares, inclusivamente desses dois crimes qualificados de dano.
Resta conhecer do pedido, dos 3.o, 4.o e 6.o arguidos, de redução do montante indemnizatório dos danos não patrimoniais da ofendida assistente:
Embora não haja qualquer fórmula sacramental e precisa na fixação do montante indemnizatório de danos não patrimoniais cuja gravidade mereça a tutela do Direito, por estar em causa o uso do critério de ex aequo et bono, afigura-se, ao presente Tribunal de recurso, mais equilibrado e equitativo, à luz do disposto no art.o 489.o, n.o 1 e n.o 3 (primeira parte), do CC, o valor pecuniário de duzentas mil patacas para efeitos de reparação de danos não patrimoniais da ofendida assistente, depois de levar em ponderação, em especial, que o sentimento de insegurança pessoal causado pela conduta (comparticipada dolosamente pelos seis arguidos) incendiária e danificadora dos veículos acarretou naturalmente (como ditam as regras da experiência da vida humana – cfr. os art.os 342.o e 344.o do CC) impacto acrescido na mente da ofendida, por se encontrar ela grávida, aquando da ocorrência dos factos delinquentes correspondentes a essa conduta dos seis arguidos (cfr. o facto civil provado 2), não sendo de olvidar que ela teve que mudar o seu local de habitação, de Macau para Zhuhai, por preocupações com a segurança pessoal (cfr. o facto civil provado 3), mudança de habitação essa que lhe causou, também naturalmente (como ensinam as regras da experiência – cfr. os mesmos art.os 342.o e 344.o do CC), transtornos e incómodos a nível psicológico, isto tudo a despeito de o grau de sofrimento mental dela não dever ser compensado por trezentas mil patacas.
A procedência parcial dessa questão levantada pelos 3.o, 4.o e 6.o arguidos não deixa de aproveitar, atento o art.o 392.o, n.o 2, alínea a), do CPP, aos outros três co-arguidos.
Uma nota a final: é de observar que como a quantia indemnizatória fixada no aresto recorrido para reparação dos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida assistente fica alterada de trezentas mil patacas para duzentas mil patacas pela presente decisão de recurso, os juros legais deste montante passam a ser contados não a partir da data do aresto impugnado, mas sim a partir de hoje, em obediência à jurisprudência obrigatória veiculada no douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 2 de Março de 2011, do Processo n.o 69/2010.
IV. DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar parcialmente providos os recursos do 2.o, 3.o, 4.o e 6.o arguidos, e, por conseguinte, e por força também do art.o 392.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal:
– os 1.o, 2.o, 3.o, 4.o, 5.o e 6.o arguidos passam a ser absolvidos de um crime consumado de dano de valor consideravelmente elevado e de um crime consumado de dano de valor elevado;
– e passam todos os seis arguidos a ser condenados, para além dos outros crimes por que vinham condenados no dispositivo do acórdão recorrido, pela co-autoria (sendo mediata por parte dos 2.o e 3.o arguidos, e material por parte dos 1.o, 4.o, 5.o e 6.o arguidos) de um crime consumado de dano simples, p. e p. pelo art.o 206.o, n.o 1, do Código Penal (crime este perpetrado na noite de 17 de Janeiro de 2019 contra a parte de pára-brisas do veículo automóvel MT-XX-XX), na pena de dez meses de prisão para os 2.o, 3.o e 5.o arguidos, e na pena de nove meses de prisão para os 1.o, 4.o e 6.o arguidos, e, finalmente, em sede de novo cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos e um mês de prisão para o 1.o arguido, na pena única de cinco anos de prisão para os 2.o e 3.o arguidos, na pena única de quatro anos e nove meses de prisão para o 5.o arguido, e na pena única de quatro anos e seis meses de prisão para os 4.o e 6.o arguidos;
– e o montante fixado em trezentas mil patacas no acórdão recorrido para reparação, por parte dos seis arguidos, a título de responsabilidade solidária, dos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida assistente passa a ser reduzido a duzentas mil patacas, com juros legais desta quantia contados somente a partir de hoje.
Pagarão o 2.o arguido três quartos das custas do seu recurso (com 6UC de taxa de justiça correspondente a esse decaimento parcial), o 3.o arguido as custas da parte penal do seu recurso (com 6UC de taxa de justiça), o 4.o arguido as custas da parte penal do seu recurso (com 6UC de taxa de justiça), e o 6.o arguido as custas da parte penal do seu recurso (com 4UC de taxa de justiça).
Pagará a ofendida assistente duas UC de taxa de justiça nos termos do art.o 491.o, n.o 1, alínea b), do Código de Processo Penal (por ver decaído a sua posição defendida na resposta aos recursos, a respeito da conduta de danificação da parte de pára-brisas do veículo MT-XX-XX).
As custas do pedido cível nas Primeira e Segunda Instâncias ficam contadas em função do presente julgado.
Comunique a presente decisão ao Processo de liberdade condicional n.o PLC-187-14-2-A do Tribunal Judicial de Base (respeitante ao anterior Processo n.o CR3-13-0160-PCC do ora 5.o arguido).
Macau, 29 de Abril de 2020.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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